Três clássicos para entender o bolsonarismo

por Marcel Novaes (12/06/2020)

Bolsonaro não é fascista stricto sensu. Mas o espírito fascista não precisa encarnar sempre no mesmo corpo.

O presidente Jair Bolsonaro é atualmente avaliado como ótimo ou bom por cerca de um quarto do eleitorado. Parte desses apoiadores o são de forma resignada, só porque não gostam das opções. Mas há os que têm entusiasmo o bastante com o seu governo para serem chamados de bolsonaristas. O que é o bolsonarismo? Foi com essa pergunta na cabeça que voltei a três obras clássicas, a ver se jogavam um pouco de luz no tocante a isso daí.

O primeiro livro que abri foi A Rebelião das Massas, publicado por José Ortega y Gasset em 1930. Logo no prefácio, li o seguinte: “O característico do momento é que a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem a audácia de afirmar o direito à vulgaridade e o impõe em toda parte”. Assaltaram-me visões de pão com leite condensado, chinelos rider, lives mal ajambradas, piadas sem graça e reuniões com muitos palavrões. Vulgaridade? Pareceu-me que estava na pista certa.

O que Ortega y Gasset argumenta nesse livro é que o progresso técnico e científico havido no século XIX facilitou muito a vida de grande parte da população, a tal ponto que hoje usufruímos de comodidades que consideramos indispensáveis mas cujo funcionamento ignoramos. “Muito poucos homens duvidam de que os automóveis serão, entro de cinco anos, mais confortáveis e mais baratos que os de hoje. Crê-se nisso da mesma forma que no próximo nascer do sol.” Esse processo teria possibilitado a ascensão do homem-massa.

Os homens-massa de Gasset não são “as massas” no sentido esquerdista, os proletários. Há homens-massa em todas as classes sociais: “É intelectualmente massa aquele que, diante de um problema qualquer, se contenta com pensar o que encontra facilmente em sua cabeça”. Assim, “o homem seleto não é o petulante que se crê superior aos outros, mas o que exige de si mesmo mais que os outros (…) é indubitável que a divisão mais radical a se fazer na humanidade é esta, em duas classes de criaturas: as que se exigem muito e acumulam sobre si mesmas dificuldades e deveres, e as que não se exigem nada especial, sendo que, para elas, viver é ser em cada instante aquilo que já são” (creio ver na minha frente o bolsonarista radical, vestido de verde e amarelo, de olho rútilo e lábio trêmulo, a gritar que seu “mito” viveu quase 30 anos como deputado mas continua sendo o que sempre foi, homem do povo, tiozão do churrasco).

São características do homem-massa: desconfiar da democracia representativa, desprezar a universidade e a erudição, estar eternamente satisfeito consigo mesmo, acreditar-se sempre credor de mais direitos, ignorar tudo que não disser respeito direto à sua área de atuação e evitar o quanto possa o debate de ideias, recebendo as suas sempre prontas de outrem. “Ter uma ideia é acreditar possuir suas razões e, portanto, acreditar que exista uma razão, um mundo de verdades inteligíveis. Idear, opinar, é a mesma coisa que apelar a essa instância, subordinar-se a ela, aceitar seu código e sua sentença”, ou seja, não apelar jamais a fake news e “crer, portanto, que a forma superior da convivência é o diálogo em que se discutem as razões de nossas ideias. Mas o homem-massa se sentiria perdido se aceitasse essa discussão” e é “um tipo de homem que não quer dar razões nem ter razão, mas que se mostra, simplesmente, resoluto em impor suas opiniões”.

Não há como fugir ao clichê: A Rebelião das Massas foi escrito há noventa anos mas permanece muito atual, talvez até mais do que já foi.

Passei então a um segundo livro. No começo da década de 1950, Eric Hoffer nos brindou com The True Believer: Thoughts on the Nature of Mass Movements (“O Verdadeiro Crente: Reflexões sobre a Natureza dos Movimentos de Massa”; por incrível que pareça não há edição em português), no qual apresenta uma penetrante análise do funcionamento psicológico e social dos movimentos revolucionários. O bolsonarismo não é exatamente de massas e nem revolucionário, será antes reacionário. Ainda assim, é possível encontrar ressonância com algumas das observações de Hoffer.

Por exemplo, uma das características do bolsonarismo é o ódio àqueles que identificam como “comunistas”. Bem, diz justamente Hoffer que “o ódio é o mais acessível e abrangente dos meios de unificação. Movimentos de massa podem surgir e crescer sem a crença em um Deus, mas nunca sem a crença num demônio”. O comunismo domina as universidades, a mídia nacional e internacional, a ONU e a OMS, sem contar a NASA, os escoteiros e o clube de pingue-pongue de Jaboticabal? Mas é claro, uma vez que “assim como a divindade ideal, o demônio ideal é onipotente e onipresente”.

O que mais caracteriza o bolsonarismo? Dirá o leitor que costumam ter uma certa aversão às minorias. Nossa pedra não cairá muito longe do alvo se a atirarmos na direção do machismo, do racismo e da homofobia. Segundo Hoffer, “Não há maneira mais segura de nos infectarmos com ódio violento a uma pessoa do que infligir a ela alguma injustiça. Que os outros tenham queixas justas contra nós é mais um motivo potente para que os odiemos (…) Não tornamos alguém humilde e pacato ao exibirmos sua culpa e envergonhá-lo. É mais provável que despertemos sua arrogância e agressividade (…) Há uma consciência culpada por trás de todas as palavras e atos furibundos e por trás de toda manifestação de santimônia”.

Muito bem. E que outros ingredientes estão presentes no bolsonarismo? E quanto à liderança? O próprio Bolsonaro não chega a ser um formulador intelectual, mas isso não é problema, pois explica Hoffer que “inteligência excepcional, caráter nobre ou originalidade não parecem ser indispensáveis”, uma vez que “a qualidade das ideias parece ter papel pequeno na liderança do movimento de massas. O que conta é o gesto arrogante, o completo desprezo pela opinião dos outros, o desafio jogado ao mundo (…) Algum grau de charlatanismo é indispensável para a liderança eficiente”.

O leitor terminou o parágrafo anterior já se lembrando de Olavo de Carvalho, o histórico líder intelectual do bolsonarismo. Haverá alguma passagem em The True Believer que possa ser interpretada à sombra da sua influência? Várias. Destaco algumas:

“Há um profundo desejo em todos os homens de palavras que determina sua atitude em relação à ordem estabelecida. É o desejo de reconhecimento; o desejo de um status claramente marcado acima do povaréu”. O desejo de ser chamado de o maior filósofo do Brasil, por exemplo?

“Há um momento na carreira de todos os críticos homens de letras em que um gesto deferente ou conciliatório por parte dos poderosos o trará para o lado deles. A uma dada altura [ele] está pronto a se tornar um cortesão”. O cortesão pode mesmo chegar a dizer, como disse Olavo, que ter votado em Bolsonaro foi a coisa mais sábia que o povo brasileiro já fez e que o presidente virá a inaugurar uma era de grandeza, justiça e harmonia que ultrapassará nossos sonhos mais otimistas.

“É fácil ver que o crítico homem de palavras, por meio de denúncias e ridicularizações constantes, abala as crenças e lealdades correntes, e familiariza as massas com a ideia da mudança. O que não é tão óbvio é que o processo (…) muitas vezes prepara o terreno não para uma sociedade de indivíduos que pensam livremente, mas para uma sociedade fechada que valoriza a unidade completa e a fé cega”. E basta.

A última obra que revisitei não chega a ser um livro. É um texto curto de Umberto Eco chamado Fascismo Eterno, produzido originalmente para uma conferência, em 1995. Depois de apresentar reminiscências da juventude, o autor discute algumas diferenças entre vários movimentos totalitários, que têm o fascismo italiano como referência.

Lá vem o bolsonarista, babando na gravata, explicar que este governo não é fascista. Sei disso. Bolsonaro não é fascista stricto sensu. Mas a advertência principal de Eco é justamente para o fato de que o espírito fascista não precisa encarnar sempre no mesmo corpo. Esse “fascismo eterno” é metamorfo e “filosoficamente desconjuntado, porém emocionalmente preso a algumas bases arquetípicas”. Eco identifica quatorze dessas bases. Vejamos quantas delas têm correlação com o bolsonarismo.

O fascismo eterno rejeita o modernismo. “O Iluminismo, a Idade da Razão, é visto como o começo da moderna depravação”. A cultura e os intelectuais são vistos com suspeita, enquanto a ação é considerada superior à inútil reflexão abstrata. A democracia parlamentar seria intrinsecamente corrupta e a ciência teria usurpado o lugar da religião. Deus acima de todos?

Explora-se e exacerba-se o natural medo da diferença: “Para o fascismo eterno, discordância é traição”. A retórica nacionalista é intensa: “Na raiz da psicologia do fascismo eterno está a obsessão com um plano maligno, possivelmente internacional”. Brasil acima de tudo?

“O fascismo eterno se origina da frustração individual ou social. É por isso que um dos [seus] traços típicos é o apelo a uma classe média frustrada, uma classe que sofre de crise econômica e sentimentos de humilhação política, e está assustada pela pressão de grupos sociais inferiores”. Correto.

“Uma vez que guerra permanente e heroísmo são jogos difíceis de se jogar, o fascismo eterno transfere seu desejo de poder para questões sexuais. Essa é a origem do machismo (…) Como mesmo o sexo é um jogo difícil de jogar, o herói de espírito fascista tende a brincar com armas – o que se torna um exercício fálico substituto”. Tiro certeiro.

Fechei os três volumes no final do dia com a sensação de que entendo um pouco melhor o fenômeno do bolsonarismo. As notícias cotidianas são importantes, mas os clássicos são insuperáveis.

(As expressões “de olho rútilo e lábio trêmulo” e “babando na gravata” são de Nelson Rodrigues, outro clássico. O que ele escreveria sobre os dias que correm!)

Marcel Novaes

Professor, autor de Do czarismo ao comunismo (Três Estrelas, 2017) e O grande experimento (Record, 2016), sobre a revolução americana.

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