[Entrevista feita por e-mail e publicada em outubro de 2006 no site da Caros Amigos] por Daniel Lopes – As escolhas para quem quer ler um livro sobre o islã fundamentalista, terrorista, misógino, são muitas, infinitas. Se você procura uma visão da religião fundada por Maomé que vá contra a ideologia do “choque de civilizações”, terá que […]
[Entrevista feita por e-mail e publicada em outubro de 2006 no site da Caros Amigos]
por Daniel Lopes – As escolhas para quem quer ler um livro sobre o islã fundamentalista, terrorista, misógino, são muitas, infinitas. Se você procura uma visão da religião fundada por Maomé que vá contra a ideologia do “choque de civilizações”, terá que se esforçar um pouco mais na busca, mas quando encontrar e ler No god but God: The origins, evolution and future of Islam (2005), é provável que a obra lhe baste.
Escrito pelo pesquisador Reza Aslan – iraniano desde 1979 radicado nos Estados Unidos, onde conseguiu um bacharelado e dois mestrados, um deles em Estudos Teológicos pela Universidade de Harvard – o livro (recentemente lançado em paperback pela Arrow Books) traça um alentado percurso pelos caminhos a que se propõe no subtítulo. É uma escrita de rara beleza em uma obra de não-ficção, e nos vários momentos em que lida com reconstituições de acontecimentos históricos, a qualidade é nada menos que literária. O que, junto com uma abrangente e respeitada bibliografia de apoio, só ajuda na tarefa a que o autor se propôs: desconstruir a visão monolítica que grande parte dos ocidentais temos do mundo mulçumano.
Em meio a uma corrida rotina – pesquisador na Universidade do Sul da Califórnia, candidato a um doutorado em História das Religiões na Universidade da Califórnia e colaborador de veículos como New York Times, Washington Post e The Nation – Aslan me concedeu por e-mail uma entrevista, onde aborda temas como Irã, Israel, a condição da mulher no mundo mulçumano e o desenvolvimento da democracia no Oriente Médio.
1- Como é ser um estudioso heterodoxo do Islã nos EUA de W. Bush?
A administração Bush alienou todo o mundo mulçumano com sua beligerância e sua política externa míope. A maioria dos estadunidenses, independente de suas crenças religiosas, deu as costas a este presidente. Entretanto, não há nenhum país no mundo – incluindo o mundo mulçumano – no qual os mulçumanos podem praticar sua fé com mais liberdade e mais abertura do que nos EUA. Aliás, apesar da retórica anti-islâmica que frequentemente se revela em certos setores da sociedade estadunidense, os estadunidenses se orgulham de sua capacidade de inclusão e de seu pluralismo. Hoje, o Islã é a religião mais popular para se estudar nas universidades estadunidenses. É importante entender que os mulçumanos estadunidenses configuram a maior minoria religiosa nos EUA. Há cerca de quatro milhões de mulçumanos a mais do que judeus. Mais do que isso, os mulçumanos estadunidenses estão completamente integrados em todos os níveis da sociedade. De modo que, nos Estados Unidos de George Bush, não sinto qualquer reação violenta contra mim enquanto um universitário e ativista mulçumano-estadunidense. Pelo contrário, são pessoas como eu que tem desempenhado um importante papel na tentativa de fazer retroceder a onda de anti-americanismo no mundo mulçumano.
2- Os conservadores diriam que liberais como você, com pontos de vista tolerantes em relação ao Islã, sempre tiveram um espaço predominante no campo de idéias (mídia e academia), o que eles dizem ter levado a uma subestimação do Islã radical e, em última instância, ao 11 de Setembro. O ponto de vista heterodoxo do Islã é predominante no debate estadunidense hoje?
Primeiro eu gostaria de dizer que o Islã, ao contrário do Cristianismo, não é uma religião de credo. E nem há algo como uma autoridade religiosa centralizada – um papa ou um Vaticano – no Islã, para definir o que é e o que não é islâmico. Certamente existem muitas pessoas que pensam falar pelos mulçumanos de todo o mundo, mas elas não têm autoridade política ou religiosa sobre aquela que é inquestionavelmente a mais diversa e eclética comunidade religiosa que o mundo já viu. Isso dito, simplesmente não é verdade que os chamados moderados ou liberais têm um espaço predominante na sociedade. Universidades não são um espaço predominante; muito pelo contrário. Quanto à mídia nos EUA, sua preocupação prioritária é vender produtos, não distribuir informação. E não é moderação ou liberalismo que vende produto, mas sim violência e medo. E é isso que é entregue pelos radicais e militantes que são a maior parte das vozes mulçumanas na TV estadunidense.
3- Nos primeiros capítulos de Not god but God, no meio de várias informações e estórias que nos são contadas, uma se sobressai, aquela de como os ensinamentos de Maomé foram desvirtuados por uma série de hadiths dos chamados Companheiros, que você identifica como “a primeira geração de mulçumanos”. De que maneira e por que esses homens deturparam as idéias de Maomé?
As hadiths são anedotas orais acerca do profeta Maomé e seus primeiros companheiros. Elas foram transmitidas oralmente por centenas de anos antes de serem finalmente reunidas em duas ou três confiáveis edições. Atualmente existem centenas de milhares de hadiths que dizem ter origem no profeta Maomé, mas que na verdade foram fabricadas pelos sucessores do Profeta para legitimarem suas próprias agendas sociais ou políticas. Na verdade, um grande número dessas hadiths contradiz o Corão, particularmente no que diz respeito ao tratamento dispensado às mulheres. Mas a razão de elas serem tão poderosas é que o Corão, ao contrário do Torá [livro sagrado do Judaísmo], não é um livro de leis. Existem umas poucas passagens tratando de questões legais, mas em sua maior parte o Corão é inadequado para responder às questões que foram levantadas na época em que o Islã espalhou-se de uma pequena comunidade na Arábia para ser o maior império que o mundo tinha visto até então. Muitas hadiths foram fabricadas para justificar ações e crenças que já eram inteiramente aceitas e para as quais não havia uma resposta óbvia no Corão. Infelizmente, nos dias de hoje muitos mulçumanos tradicionalistas parecem dar mais ênfase a essas hadiths que ao próprio Corão. Isso vai contra tudo o que o Profeta pregou.
4- Isso pode nos lembrar de alguma forma a famosa afirmação de Nietzsche no Anticristo, de que “o Evangelho morreu na cruz” junto com Cristo. O autor aborda como Paulo distorceu ensinamentos de Jesus para avançar sua própria agenda. Essa é uma analogia correta?
Sim, é. Nós temos uma tendência para pensar que profetas “inventam” religiões. Nada poderia estar mais longe da verdade. Profetas não criam religiões. Profetas são reformistas que reinterpretam o meio religioso, cultural, social, político e mesmo econômico em que vivem. Moisés não inventou o Judaísmo; ele reformou a religião tribal israelita. Jesus não inventou o Cristianismo; ele reformou o Judaísmo. Buda reformou o hinduísmo. E Maomé, como ele próprio admitiu, nunca criou uma nova religião, mas meramente remodelou o Judaísmo e o Cristianismo para os povos árabes, “um povo sem um livro”. São aos seguidores dos profetas que é confiada a impossível tarefa de pegar as palavras e os feitos do profeta e, a partir deles, criar uma religião unificada. E é precisamente na institucionalização dessa ideologia que as idéias do profeta às vezes se perdem.
5- Seria correto afirmar que o Islã é uma religião na qual seus seguidores têm um maior sentimento de grupo e de união, mais do que, digamos, nas outras duas grandes religiões monoteístas?
Desde o início, o Islã vê a si mesmo como uma religião comunal. Para explicar de uma maneira fácil, a comunidade é a igreja no Islã. Ela é a fonte de salvação. Parte disso tem a ver com as origens tribais do Islã. Mas mesmo quando o Islã espelhou-se para além do mundo árabe, ele tentou desesperadamente manter sua identidade comunal. Isso começou a mudar durante o último século, quando os mulçumanos foram forçados a olhar a si mesmos menos como membros de uma comunidade de alcance global do que como cidadãos de estados-nação. Isso criou um inflado senso de individualismo que começou a prejudicar essa fé antes quintessencialmente universal. Aliás, essa fragmentação geopolítica levou a um grande racha no mundo mulçumano sobre quem possui a autoridade para definir a fé: as instituições ou os indivíduos.
6- Então as últimas ações israelenses no Líbano não ajudam muito na boa imagem de Israel no mundo mulçumano, ajudam?
Durante as duas últimas décadas Israel tem trabalhado energicamente para derrotar seus inimigos. Agora é tempo para ele trabalhar melhor para fazer amigos. Se a tendência demográfica de Israel/Palestina não mudar, em cinqüenta anos não haverá mais uma maioria judaica em Israel. As lideranças israelenses devem começar a pensar sobre sua sobrevivência a longo prazo mais do que quaisquer ganhos ou perdas no curto prazo. Há apenas uma maneira de Israel sobreviver no século XXI: canalizar todas as suas energias e recursos para garantir que exista um estado palestino estável e próspero, com muitos empregos, hospitais, livrarias e escolas. Isso é tão importante para a sobrevivência de Israel que deveria ser sua prioridade. Apenas quando os palestinos estiverem bem vestidos, alimentados e abrigados, eles irão parar de olhar Israel como um inimigo.
7- Você é um iraniano. Qual sua visão de seu país natal hoje? É ele todo esse amontoado de problemas que vemos nas notícias? Você colocaria Mahmoud Ahmadinejad como um “acidente” ou como um personagem previsível na cena iraniana?
O Irã é uma sociedade extremamente complexa: ao mesmo tempo moderna e tradicional, secular e religiosa. Não há nada de simplista ou monolítico acerca da sociedade ou do governo iranianos. Os iranianos são ferozmente nacionalistas e, ainda que eles abominem seu governo, não apoiariam nenhuma ameaça à sua soberania. Quase 70% dos iranianos têm menos de trinta anos de idade. Então é inevitável que o Irã segue no caminho para mais democracia e liberdade – se deixado sozinho!
8- Você fala sobre deixar o Irã sozinho, se nós o desejamos mais democrático. Você pensa o mesmo de países como Arábia Saudita e Síria? Salameh Nematt, do jornal londrino em língua árabe Al-Hayat, disse em 2004 numa entrevista à Newsweek que “a propaganda de que a democracia [no Oriente Médio] deveria ter origem doméstica, e não ser imposta de fora, é uma piada”, e disse também que as duas primeiras democracias que nós iríamos ter na região, Afeganistão e Iraque, só ocorreriam por conta da intervenção dos EUA.
O Irã não é a Arábia Saudita. Este país está apodrecido desde seu centro de poder e provavelmente entrará em colapso graças a sua própria corrupção, ao invés de por qualquer ameaça externa. O Irã também não é a Síria, que está sob um severo controle militar que parece não estar perdendo o controle sobre a sociedade. O Irã tem um processo político vivo, uma população politicamente ativa, uma imprensa vibrante e a maioria dos movimentos pelos direitos da mulher do mundo mulçumano. Mas o isolamento do Irã da comunidade internacional arruinou completamente sua economia e fortaleceu a elite clerical não-eleita. Os iranianos precisam de emprego, não de uma intervenção dos EUA. Apenas quando puderem alimentar suas famílias eles irão voltar seus esforços para livrar o país desse odioso regime.
9- Em seus textos lemos com freqüência que a “exportação da democracia” propagada pelos EUA está fadada ao fracasso, porque o conceito de democracia radicalmente secular não agrada aos mulçumanos. Que tipo de democracia o mundo mulçumano teria a oferecer?
Apenas nos EUA a democracia estadunidense é possível; ela não pode ser isolada das tradições e valores estadunidenses. A democracia não é uma peça única que serve a todos. Ela não pode ser importada; ela deve ser erguida de dentro de um país. O fato é que a vasta maioria dos mais de um bilhão de mulçumanos no mundo aceita os princípios fundamentais da democracia. A maioria dos mulçumanos adequam sem nenhum problema a linguagem da democracia aos termos islâmicos. Ideais tais como representação popular, participação política, sufrágio universal. Constitucionalismo, prestação de contas do governo, pluralismo e direitos humanos são amplamente aceitos no mundo mulçumano. O que não é necessariamente aceito, entretanto, é a distinta noção ocidental de que a religião e o estado devem ser inteiramente separados, de que o secularismo deve ser a base de uma sociedade democrática. Mas uma chamada democracia islâmica não está destinada a ser uma “teo-cracia”, e sim um sistema democrático baseado numa estrutura moral islâmica, devotada a preservar ideais islâmicos de pluralismo e direitos humanos, e aberto ao inevitável processo de secularização política. O Islã pode até esquivar-se do secularismo, mas não há nada nos valores islâmicos fundamentais que se oponha ao processo de secularização política.
10- Você também costuma analisar os mulçumanos moderados, liberais. Hoje, eles estão em condições de se contrapor ao poder dos fundamentalistas? E como o ocidente ajuda ou atrapalha o desenvolvimento de um Islã mais aberto?
A chamada “Guerra ao Terrorismo” fortaleceu os jihadistas e os ajudou a espalhar a propaganda de que o ocidente, e especialmente os EUA, está conduzindo outra cruzada contra o mundo mulçumano. Claro, foi exatamente esse o propósito dos ataques de 11 setembro de 2001. Por admissão do próprio bin Laden, os ataques foram especificamente planejados para provocar os Estados Unidos a retaliarem exageradamente contra o mundo islâmico de modo a mobilizar os mulçumanos a, nas palavras de George W. Bush, “escolherem lados”. Infelizmente isso é exatamente o que aconteceu, à medida que mais e mais mulçumanos convencem-se – graças ao Iraque, Guantánamo, Abu Ghraib, etc. – de que a “Guerra ao Terror” é, na verdade, uma guerra contra o Islã. Nesse tipo de ambiente, torna-se muito difícil vozes moderadas serem ouvidas acima da cacofonia de violência e extremismo.
11- Seu livro lida também com o complexo tema do papel da mulher no Islã. Você levanta uma curiosa história acerca daquele que é o símbolo da opressão à mulher, o véu. Conte um pouco sobre as origens do véu e como você vê o atual estado da mulher nas sociedades mulçumanas.
Embora visto como o mais peculiar emblema do Islã, o véu, surpreendentemente, não é usado por mulçumanas em nenhuma passagem do Corão. A tradição de pôr véu e isolar (conhecidas conjuntamente como hijab) foi introduzida na Arábia muito antes de Maomé, principalmente através de contatos árabes com a Síria e o Irã, onde o hijab era um sinal de status social. Afinal de contas, apenas a uma mulher que não precisava trabalhar nos campos poderia ser permitida a permanência em isolamento e com o véu. Entre os mulçumanos não havia uma tradição de se usar o véu até por volta de 627 D.C., quando o chamado “verso de hijab” repentinamente desceu sobre a comunidade. Esse verso, entretanto, era destinado não a todas as mulheres em geral, mas exclusivamente para as esposas de Maomé: “Crentes, não entrem na casa do Profeta… a menos que pedidos. E se forem convidados… não se demorem. E quando forem perguntar algo às esposas do Profeta, o faça por detrás de uma hijab. Isso garantirá a pureza de seus corações bem como os delas” (33:53).
É difícil dizer com certeza quando o véu foi adotado pelo resto da Ummah [comunidade formada por Maomé e seus primeiros seguidores], embora provavelmente tenha sido muito depois da morte de Maomé. As mulçumanas começaram a vestir o véu provavelmente como uma forma de emular as esposas do Profeta, que eram reverenciadas como “as Mães da Ummah”. Mas o véu não era nem obrigatório nem, tampouco, inteiramente aceito até gerações após a morte de Maomé, quando um grande número de eruditos responsáveis pelas escrituras e pela autoridade legal começaram a usar sua autoridade religiosa e política para retomar o domínio que haviam perdido na sociedade em decorrência das reformas igualitárias do Profeta.
Hoje, o véu é tanto um símbolo da “degradação das mulheres” quanto um que significa a castidade feminina, devoção, e, mais do que tudo, um desafio à imagem ocidental de mulher (dependendo a quem você pergunta). Ambas as imagens são enganosas e simplistas. O véu pode não ser nada disso ou pode ser tudo isso, mas são as mulçumanas que têm de decidir por elas mesmas.
12- Qual é o futuro do Islã?
O Islã, como todas as grandes religiões, está em constante estado de evolução. Ele sempre está se adaptando a quaisquer situações sociais, políticas ou econômicas em que se encontre. E continuará a ser assim. Acho que nós estamos vendo uma rápida individualização no mundo mulçumano, particularmente entre mulçumanos no ocidente, que está fadada a ter um forte impacto no futuro da fé. Ainda mais importante é o papel das mulheres mulçumanas em definirem elas mesmas o significado e a mensagem do Islã, ao invés de dependerem dos eruditos. É difícil dizer o que acontecerá. Mas a maré de reforma no Islã não pode ser contida.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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