por Daniel Lopes – Minha agendinha cultural lembra que exatamente hoje faz 55 anos da morte de Graciliano Ramos (1892-1953). Como, na minha opinião, trata-se de um dos cinco maiores escritores que o Brasil já teve/tem, não vou deixar passar a oportunidade de falar mais uma vez sobre ele. De suas sete obras mais relevantes, […]
por Daniel Lopes – Minha agendinha cultural lembra que exatamente hoje faz 55 anos da morte de Graciliano Ramos (1892-1953). Como, na minha opinião, trata-se de um dos cinco maiores escritores que o Brasil já teve/tem, não vou deixar passar a oportunidade de falar mais uma vez sobre ele.
De suas sete obras mais relevantes, não li ainda as Memórias do cárcere (1953). Caetés (1933), romance, e Insônia (1947), contos, não são leituras indispensáveis por qualquer critério que se adote. Vidas secas (1938) e Infância (1945) são de fato excelentes livros, principalmente o último, mas por si não garantiriam a Graciliano lugar de destaque em nossa literatura.
Magníficas mesmo são S. Bernardo (1934) e Angústia (1936), que colocam o autor alagoano não apenas entre os grandes daqui como em pé de igualdade com qualquer clássico mundial. São dois romances de muita qualidade, e diferentes em forma e linguagem. De fato, parecem ter sido escritos por pessoas distintas. Que tenham saído da pena de um mesmo sujeito, apenas prova a genialidade deste.
S. Bernardo foi o primeiro de Graciliano que li, no início de 2006. Aquele narrador Paulo Honório me cativou. Quer dizer, ele é um cretino, mas gostei da sua lábia. De origem humilde, passa de empregado a patrão nas terras de Alagoas. Entra em contendas territoriais com os vizinhos, corrompe autoridades públicas, administra a peãozada com mão de ferro. O senhorzinho casa-se com Madalena, uma jovem e bela professora que conhecera numa viagem à cidade. Sonha com o amor eterno da esposa e, claro, com um herdeiro varão, corado, para levar adiante suas empreitadas.
O conflito entre o casal aparece por conta do caráter da mulher, avessa à pedagogia pelo cacete que o esposo adota com os empregados. O marido vê a estes menos como gente que como bichos. A cisão entre os dois parece irreversível, e o Paulo Honório que narra S. Bernardo é um homem de prosa amarga, rude, mas que nunca abre mão da franqueza; e é aí que reside a graça. É como rir para não chorar.
Depois de alguma enrolação, Paulo principia a narrar sua história:
(…) Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De resto isto aqui vai arranjado sem nenhuma ordem, como se vê. Não importa. Na opinião dos caboclos que me servem, todo caminho dá na venda.
(…) O que é certo é que, a respeito de letras, sou versado em estatística, pecuária, agricultura, escrituração mercantil, conhecimentos inúteis deste gênero. Recorrendo a eles, arrisco-me a usar expressões técnicas, desconhecidas do público, e a ser tido por pedante. Saindo daí, a minha ignorância é completa. E não vou, está claro, aos cinqüenta anos, munir-me de noções que não obtive na mocidade.
(…) Ocupado com esses empreendimentos, não alcancei a ciência de João Nogueira nem as tolices do Gondim. As pessoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir isto em linguagem literária, se quiserem. Se não quiserem, pouco se perde. Não pretendo bancar escritor. É tarde para mudar de profissão.
Os capítulos de S. Bernardo são curtos, leves.
* * *
Os capítulos de Angústia são longos, densos. Melhor dizendo, não há capítulos, o texto é corrido, interrompido vez em quando apenas por uns asteriscos – e, na edição que consegui num sebo, por ilustrações de Marcelo Grasmann, traços rápidos, desconfortantes, perturbadores, como saídos de um sonho ruim, tal qual o texto.
Não há por que não debitarmos parte do pessimismo dessa obra ao contexto de perseguição que o escritor vinha sofrendo. Em meados de 36, quando o livro foi publicado graças à ajuda de amigos, Graciliano estava preso no Rio de Janeiro, nos porões da ditadura Vargas (por acusação de militância comunista).
Também é narrado em primeira pessoa, desta vez por Luís da Silva, pobre homem de origem rural que, residindo em Maceió, paga a estadia numa pensão barata com o dinheiro que consegue escrevendo artigos para um jornal, nos quais bajula políticos. Amargurado e solitário, a vida de Luís muda quando entra em cena uma insinuante moça chamada Marina, a quem ele faz a corte, oblíquo, tímido, reticente, cauteloso… Não importa a quantidade de termos, Marina acaba mesmo é nas garras de um conquistador barato acostumado a engravidar mulheres para em seguida abandoná-las.
O desprazer, o ódio, que Luís tem da vida, contamina sua opinião da agora interesseira Marina e, ainda com mais intensidade, de maneira cega, vai determinar o modo com que pretende lidar com o garanhão inescrupuloso.
A intensidade das cenas de Angústia, de sua prosa e ambientação sufocantes, já foi exaustivamente comparada àquelas que encontramos em Dostoievski, notadamente em Crime e castigo. Entre os dois eu até fico mesmo com o nosso escritor nordestino, bairrismo à parte. Porque vou confessar aqui um sacrilégio: Dostoievski nunca me empolgou muito; com a exceção de Memórias do subsolo (e ainda surrupiaram meu exemplar). Mas essa é outra conversa.
[publicado 20/03/2008 no blog do autor]
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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