Alteridade, indução, Orkut e xenofobia
por Raphael Douglas – É óbvio, e todos sabem, que nordestinos são pobres, mal nascidos, medem 1,65 cm, comem sobretudo farinha com rapadura e vivem em cidades cadavéricas cujo solo é permanentemente seco e rachado por conta da eterna ausência de chuvas. Os paulistanos são todos nazistas, vaidosos, workaholics e prepotentes. Os cariocas são, sem exceção, traficantes ou apreciadores de drogas, falecem constantemente devido a balas perdidas, têm como atração principal os bailes funk, torcem todos para o mengão (o time com a maior torcida do universo), acham que uma tropa de elite é o melhor paradigma de segurança e um a cada três mora em favelas. É fato notório que no norte do país só há latinfundários, pistoleiros e índios convivendo com jacarés no meio das cidades. Todos nós conhecemos a informação que todos os gaúchos são separatistas e espelham-se no modo de vida argentino. Todo paraibano é péssimo motorista. Todo negro é ladrão, todo cabeleireiro é homossexual, todo norte-americano é imperialista e cultua o uso de armas de fogo, todo jogador de futebol é mercenário, todo judeu é muquirana, todo alemão é um pouco nazista, todo francês é pedante, todo paraguaio é sacoleiro, todo colombiano é usuário de cocaína, todo cubano ama Fidel, todo pernambucano é o maior bairrista da América Latina, todo baiano é preguiçoso, todo cearense é comediante, todo argentino é execrável, todo árabe é muçulmano e todo muçulmano é terrorista.
Calma, respirem e não me odeiem!
Não sou eu quem diz isso. O primeiro parágrafo desse texto denota bem o discurso generalista e totalitário que, de maneira deprimente, toma conta das nossas percepções médias, automáticas e inadvertidas. O indutivismo apressado é uma regra tão dolorosa que chego a pensar que faz parte da própria constituição existencial do homem.
Mas calma novamente! Fico apenas triste ao constatar que o ser humano médio não se dá ao trabalho de entender em que consiste a diferença. Aliás, existe mesmo essa tal de diferença? É ela tratada e exposta de maneira correta e legítima? Mais mórbido ainda é notar que a maioria dos seres humanos ou optam em permanecer desta maneira (mesmo depois de desalienadas de certas informações errôneas) ou continuam sendo enganadas pela mídia, que tende geralmente a incutir uma visão de mundo mais fácil na cabeça dos indivíduos e trabalha por uniformizar nossas percepções sobre todas as coisas presentes a nossa volta.
Será que, como pensa o filósofo judeu Emmanuel Lévinas, “a filosofia [e o fazer ético] ocidental foi no mais das vezes uma ontologia: uma redução do Outro ao Mesmo, pela interposição de um termo mediano e neutro que assegura a inteligência do ser”? Será que a coexistência e suas implicações foram sempre mal concebidas entre nós devido a certa exacerbação da egoidade, de um excessivo conhece-te a ti mesmo?
É claro que, como ainda remarca o próprio Lévinas, “a relação com o outro não é uma idílica e harmoniosa relação de comunhão, nem uma simpatia pela qual, colocando-nos no seu lugar, nós o reconhecemos como semelhante a nós, mas exterior a nós; a relação com o outro é uma relação com um mistério. É sua exterioridade ou, antes, a sua alteridade…que constitui todo o seu ser”. Será que desvendamos o mistério do Outro de maneira equivocada? Ou seria destinamental que certas refregas e estranhamentos sempre aconteçam em qualquer micro-região do mundo ou entre qualquer amontoamento de seres humanos?
É óbvio que nem todos os nordestinos não passam fome e que nem todos os árabes têm tendência ao terrorismo. No caso supracitado dos nordestinos, por exemplo, sabe-se, operando uma simples busca das mais superficiais, que a indústria da seca entope os bolsos dos políticos da região. Imaginemos que se chega a Brasília a notícia que nessa região há boas universidades, grandes metrópoles e uma produção intelectual crescente, o que aconteceria? Fico me perguntando se as pessoas que moram em coberturas em Boa Viagem (Recife-PE) ou em lugares como o bairro da Graça (Salvador-BA) sequer cogitam migrar até São Paulo para tentar uma espécie de “vida melhor”. Ainda no Nordeste, observamos de maneira burlesca baianos sendo taxados de preguiçosos, quando os mais bem informados sabem que esse estado reúne umas das maiores forças econômicas do país em seus parques industriais e turismo. Entretanto, a imagem que a mídia continua a repassar denota um estado que vive em eternos festejos, a música é monomaniacamente a mesma e os sujeitos vivem estendidos em redes.
Por que o raciocínio induzido ingenuamente é mais fácil? Por que generalizamos informações analisadas apenas algumas vezes? Se eu conheci dezoito cabeleireiros e todos eram homossexuais, isto quer dizer que todos sejam? Se eu conheci dezoito mil políticos e todos eram corruptos, isto quer dizer que todos são? No caso dos políticos, por favor, contenha o sorriso sarcástico! Por que nos é tão difícil aprofundar e expurgar nossa visão em relação ao que nos é estranho? Desde que certas condições sejam satisfeitas, é legítimo generalizar a partir de uma lista finita de proposições de observação singulares para uma lei universal. Em suma, é a famosa passagem dos fatos à lei. Eis aí o risco da fórmula indutivista, comum em qualquer tipo de pesquisa quantitativa. Se um saco de feijão é 85% de feijão preto e 15% de mulatinho, o saco será considerado, no todo, como sendo de feijão preto. Daí surgem deduções extremante arriscadas e insolentes. Todo nordestino passa fome, o autor desse texto é nordestino, logo, o autor desse texto passa fome. Toda indução é abusiva e toda dedução, incerta.
*
A apreciação que até aqui foi levada a cabo apenas se decepciona com o fato de que o solipsismo, misantropia, ensimesmamento, incivilidade, rebeldia, contravenção, beligerância, descortesia e isolacionismo são as alternativas mais cômodas de serem adotadas como postura de vida. Tentar suportar o outro, aquele que “destrói” nossa identidade, que devasta nosso ego, requer força máxima e para isso somos demasiadamente indispostos. A mesmidade, ou seja, a cultura egocêntrica garante uma liberdade comodamente auto-assegurada. É infeliz concluir que uma cabeça obtusa e bruta é a via mais fácil de existir no mundo, através de um discurso ditatorial e totalizante, em suma, covarde.
Pois bem, quem faz uso do Orkut consegue sentir bem que as expressões xenofóbicas já descritas são demasiadamente difundidas. Sabe-se que denúncias contra toda sorte de discriminações contidas nesse site de relacionamentos vêm crescendo com um ânimo preocupante. Sou da opinião que esse espaço virtual não é o demiurgo e nem criador de qualquer tipo de discriminação. Todavia, é ali onde a raiva, a catarse odiosa e a necessidade de rebaixar figuras que são “socialmente reprováveis” encontra lugar e pega corpo, assim como a dengue se refestela em água limpa. O Orkut funciona como um catalisador e um “passe adiante” da humilhação, do ódio, da refrega, da separação, da aversão, da animosidade, da fúria. Uma simples comunidade de futebol pode ser um antro de “foda-se nordestino comedor de farinha” ou “esses paulistas são uns nazistas mesmo”, ou ainda “cariocas são uma sub-raça que deve ser exterminada.”
Sem o Orkut não é tão fácil que mais de cinco mil pessoas se reúnam num espaço físico “real”, numa praça por exemplo, para humilhar um ser humano por perpetrar ideias ou apenas ter tecido um comentário que não agradou. “Só podia ser coisa de emo!”, “bane esse bizarro!”, “esse tipinho de gente deveria ser eliminada!”, “só podia ser um puto de um paraíba mermo!”. Essas são frases muito comuns de se encontrar e não é necessário se esforçar muito para se deparar com comunidades que operam livremente dessa maneira. Umas são explícitas, outras nem tanto. Não cabe aqui colá-las, não vale a pena perder tempo com perpetração de aversão ou odiosidade, mas que um alerta deve ser ligado, deve. Alias, me deixem citar apenas uma: Devolvam o Nordeste pra África (abaixo).
Assusta de alguma maneira notar, ainda hoje, a quantidade de reais apreciadores da filosofia purificatória do Nazismo, de movimentos separatistas, de abominadores de expressões religiosas e filosóficas e de depreciadores de classes sociais diferentes.
No Orkut a bestialidade da falta de respeito por outrem tem seu exercício facilitado pelo anonimato, pela distância e pela cúmplice miserabilidade de uma parcela de seres humanos: um verdadeiro déficit de alteridade.
Alguém pode estar se questionando: duvido que quem escreve esse texto não use o Orkut, duvido ainda mais que ele não entre num estádio de futebol e, de maneira vociferante, fale mal de um juiz. Duvido que ele, em dia de jogos entre Brasil e Argentina, não deixe escapar sequer um xingamento aos hermanos. Duvido que ele esteja num ponto de ônibus às duas da manhã e veja ao longe um homem negro e descalço e não desconfie dele. É um hipócrita! Todavia, afirmo que alguém que disser que não possui sequer um único pré-conceito não é ser humano. Entretanto, é inteligente notar que existe uma diferença abissal entre pré-conceito e discriminação. Eu pré-concebo que se comer um pedaço de tijolo, além de quebrar os dentes, prejudicarei o estômago. Eu pré-concebo que, se votar em Collor, ele defraudará novamente qualquer setor da política que faça parte.
Como se resolve isso? Qualquer resposta aqui vai ser considerada proselitismo, excesso de alteridade, discurso de classe oprimida ou pacifismo fast-food on-line. Não estarei também cometendo certa generalização? Uma questão filosófica, mesmo que de antropologia filosófica, se ocupa mais em sofisticar a pergunta para que o fenômeno se evidencie de maneira clara do que oferecer repostas diretas e apodíticas. Discutamos.
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