por Daniel Lopes – Na década de 1990, quem não acreditava que o mercado iria nos salvar, a nós brasileiros e ao mundo? Os “dinossauros”, claro. E no entanto, eis que o mercado está mais uma vez nu. E os dinossauros, mais zuadentos do que nunca. Dois deles, Tony Judt e Paul Krugman, têm livros […]
por Daniel Lopes – Na década de 1990, quem não acreditava que o mercado iria nos salvar, a nós brasileiros e ao mundo? Os “dinossauros”, claro. E no entanto, eis que o mercado está mais uma vez nu. E os dinossauros, mais zuadentos do que nunca. Dois deles, Tony Judt e Paul Krugman, têm livros saindo no Brasil, num lance de felicidade e senso de oportunidade de duas de nossas maiores editoras: respectivamente, Reflexões sobre um século esquecido: 1901-2000 (original de 2008) e A consciência de um liberal (2007). Reflexões é na verdade o penúltimo livro de Judt; o mais recente, lançado este ano, é Ill fares the land, ainda inédito no Brasil, mas que aproveitarei para abordar neste texto.
Antes de mais nada é preciso lembrar que esses dois intelectuais são liberais no sentido estadunidense do termo: defendem o Estado de bem-estar social e a regulamentação dos mercados financeiros – defesa feita, na Europa, por social-democratas e democratas cristãos e, no Brasil, por correntes com maior ou menor influência do trabalhismo. Os dinossauros, enfim. Qualquer trecho de um dos livros acima que saísse como artigo em páginas de opinião brasileiras nos anos FHC seria prontamente ridicularizado. Ou não? Escreve Judt em Ill fares the land:
Uma geração mais antiga de economistas de livre mercado costumava observar que o que há de errado com o planejamento socialista é que ele requer o tipo de conhecimento perfeito (tanto do presente quanto do futuro) que os mortais comuns nunca possuem. Eles estavam certos. Mas o mesmo é verdade dos teóricos do mercado: eles não sabem tudo e, como resultado, eles realmente não sabem nada.
(Imagine o tom de deboche do Gustavo Franco noventista em sua coluna na mais dispensável de todas as revistas diante de tal raciocínio.)
Ou ainda, agora em Reflexões:
(…) a oferta pública de serviços médicos universais, pensão aos idosos, seguro contra desemprego e doenças, educação gratuita, transporte público subsidiado e outros pré-requisitos para uma ordem civil estável não representam o primeiro estágio do socialismo do século XX, e sim a culminação do liberalismo reformista do final do século XXI.
(Agora, Franco acusaria Judt ou sua versão brasileira de “revisionista”, que só poderia encontrar espaço mesmo em meios acadêmicos encharcados de intelectuais esquerdistas apologistas do estatismo.)
Os dois livros de Judt concentram-se quase que exclusivamente no universo britânico-estadunidense. O de Krugman, exclusivamente no estadunidense. Porém, a leitura dos três mune a nós brasileiros de uma lupa ideal para observar os privatistas das bandas de cá do mundo, lotados em partidos “social-democratas” e “democratas” e, claro, em vastos setores da imprensa que se quer bem informada do estado da civilização ocidental – para defendê-la, ao que parece.
Observe, por exemplo, essa amostra do tipo de leitura que nossa direita faz do último desastre econômico. Dia desses, em uma tevê aqui de Teresina, o ex-governador e senador Hugo Napoleão – figura do DEM com trânsito fácil na executiva nacional do partido e, nas próximas eleições, candidato a deputado federal – disse que a crise mostra na verdade que o sistema de desregulamentação funciona! Já que “a última crise havia sido em 1929”, e uma hecatombezinha de século em século prova o quão acertada está a ideologia dos mercados livres das mãos de governos.
Pobre Hugo.
Como Krugman lembra em A consciência de um liberal, a desregulamentação é precisamente o que desencadeou a crise de 29 nos EUA, de onde irradiou para o mundo, e foi a intervenção do Estado, capitaneada por Franklin Roosevelt e seu New Deal, que fez diminuir as desigualdades de renda obscenas dos EUA de então e colocou sob vigilância as ações de grandes grupos econômicos, o que proporcionou a ampliação da classe média (com membros vindos das classes pobres) e um sistema econômico livre de grandes bolhas e sobressaltos. As sucessivas bolhas e estouros das últimas décadas – na América Latina, Ásia e nos próprios Estados Unidos – foram, uma vez mais, frutos da desregulamentação dos mercados, e seus impactos no tecido social foram agravados pelo desmonte a que as redes de proteção foram submetidas por ativistas como Reagan, Tatcher, Menen e FHC.
A obra de Krugman é em sua maior parte um projeto de desconstrução dos dogmas neoliberais. Entre eles, está o que prega que a crescente desigualdade de renda que os EUA têm testemunhado nas últimas décadas deve-se meramente a mudanças tecnológicas, que levaram à (extrema) valorização do trabalho qualificado. Portanto, não há a quem culpar, fora os próprios pobres, que não se qualificaram o suficiente para acompanhar um mercado de trabalho versátil. E como a versatilização é algo que não deveríamos nem poderíamos evitar, sob pena de voltar à Idade da Pedra ou à economia planejada socialista, só podemos lamentar a má sorte dos perdedores e seguir adiante.
Nada disso, escreve Krugman. O que gerou tanto a igualdade (no pós-Guerra) quanto a desigualdade (anos 1970 em diante) econômica nos EUA foi ação política cuidadosamente orquestrada e executada, não apenas as mudanças tecnológicas e outras forças “impessoais” do mercado. Essa ação política se deu através de mudanças nas instituições e normas – por exemplo, fortalecimento dos sindicatos por Roosevelt e seus sucessores imediatos, e guerra do governo ao lado dos empregadores contra os mesmos sindicatos, principalmente a partir de Reagan:
(…) assim que Ronald Reagan assumiu o poder, a campanha contra os sindicatos foi ajudada e encorajada pelo apoio político dos mais altos níveis governamentais. Particularmente, a repressão do governo Reagan ao sindicato dos controladores aéreos foi o sinal para um amplo assalto aos sindicatos em toda a economia. O recuo dos sindicatos, que eram uma poderosa barreira contra a desigualdade, foi político no sentido mais amplo do termo. Foi um exercício de uso do poder tanto dentro do governo como na sociedade como um todo.
Não existe governo neutro. Ou o governo está favorecendo prioritariamente quem verdadeiramente precisa dele, ou aqueles que não precisam (mas que financiam campanhas e detêm veículos de comunicação). E não devemos confundir inação com neutralidade. A propósito da dureza de Reagan com os controladores de voo, não custa lembrar o encanto com que tal procedimento foi lembrado aqui no Brasil em 2006, quando, em meio ao “apagão aéreo”, uma greve de controladores piorou ainda mais a situação. Rubens Barbosa, embaixador de FHC em Washington, lembrou a ação de Reagan em artigo para o Estadão – à guisa de conselho ao governo do presidente Lula, escreveu: “A maior crise da história do transporte aéreo nos EUA deveria servir de exemplo e de ensinamento para a gerência de crises no setor”.
As origens e consequências do neoliberalismo estão bem documentadas em Ill fares the land, que também é uma bela defesa do Estado de bem-estar social, racional e apaixonada ao mesmo tempo. Embora nunca seja bom exagerar em suposições, é possível que não apenas a recente crise econômica, mas a própria situação pessoal de Tony Judt tenha tido influencia decisiva para escrita desse livro de 230 páginas. É sabido que o autor foi diagnosticado em 2008 com esclerose lateral amiotrófica, uma doença progressiva e fatal que ataca os neurônios (ele escreveu um tocante ensaio sobre sua situação na NY Review of Books). A obra – que se define como “um guia para os perplexos” – foi executada como um diálogo com as novas gerações, e não é exagero vê-la como o testamento intelectual de Judt. Propõe a revitalização da social-democracia; nos leva a pensar o Estado e o governo não apenas em termos econômicos, mas éticos; tece críticas a partidos social-democratas que não conseguem se articular corretamente e defender o projeto com a força que ele merece – mesmo após o desencadeamento da crise, os partidos se saíram mal em eleições na Europa, embora pesquisas mostrem que a população do continente é amplamente favorável a serviços públicos de saúde, educação, transporte e outros. Essa presença vigorosa no debate e a missão envolvida na conversa com os jovens dá uma dimensão do espírito público de Judt.
O neoliberalismo teve berço ideológico na Universidade de Chicago, a partir do trabalho de um punhado de economistas estadunidenses influenciados pelo pensamento de imigrantes da Europa Central, como Friedrich Hayek (1899-1992), Joseph Schumpeter (1883-1950) e Peter Drucker (1909-2005). Estes haviam sido marcados para sempre pelos acontecimentos trágicos da Áustria do Entre-guerras, quando um governo fascista assumiu o comando onde antes predominava uma cultura liberal. Karl Popper (1902-1994), outro influente imigrante nos EUA, defendeu a tese, compartilhada por seus amigos, de que os socialistas foram os responsáveis pelo cataclismo, pois enquanto os fascistas agiam, os esquerdistas, presos em sua confiante bolha das “leis históricas”, meramente assistiam os eventos. Para Hayek, um Estado tal como defendiam socialistas e social-democratas estava fadado ao fracasso e à estagnação e, com isso, a pavimentar o caminho para os fascistas tomarem o poder.
John Maynard Keynes (1883-1946), por outro lado, se fez as mesmas perguntas dos pais do neoliberalismo, mas concluiu que a melhor defesa contra o extremismo político e o colapso econômico era uma expansão e aprimoramento do papel do Estado, e não a completa liberalização da economia e a crença em que as relações de mercado bastariam para cria um tecido social estável. Escreve Judt:
Nos anos seguintes a 1945, parecia aos observadores mais inteligentes que os austríacos haviam cometido um erro básico de categoria. Como tantos de seus companheiros refugiados, eles presumiam que as condições que levaram ao colapso do capitalismo liberal na Europa do Entre-guerras eram permanente e infinitamente reprodutíveis. Assim, aos olhos de Hayek, a Suécia era mais um país fadado a seguir o caminho da Alemanha rumo ao abismo, graças ao sucesso político de sua maioria social-democrata e o ambicioso programa legislativo desta.
Esses pensadores passaram bastante tempo no oblívio e, continua Judt,
Apenas quando os estados de bem-estar cujo fracasso eles tão laboriosamente previram começaram a encontrar dificuldades, é que eles uma vez mais encontraram audiência para seus pontos de vista: alta taxação inibe crescimento e eficiência, regulamentação governamental sufoca iniciativa e empreendendorismo, quanto menor o estado mais rica a sociedade e assim por diante.
Dessa forma, o neoliberalismo enfim passou a ter conquências políticas e econômicas. E embora algumas empresas e agências estatais em diversas partes do mundo realmente fossem mais motivo de vergonha que de orgulho para as sociedades cujos estados as comandavam, e serviriam melhor ao interesse social se tocadas pelo setor privado, quanto não foi privatizado por pura ideologia? – por exemplo, as estatais brasileiras vendidas a preço de banana e que pouco tempo depois, já em mãos privadas, tiveram seus preços e bens reavaliados para cima, muito para cima.
No Reino Unido de Judt – o Reino Unido pós-Tatcher, o Reino Unido do “novo trabalhismo” de Tony Blair e Gordon Brown, recentemente falido –, o resultado de muitas das endeusadas PPPs (Parcerias Público-Privada) foi “o pior tipo de ‘economia mista’: empreendimento individual indefinidamente segurado por fundos públicos”. O lucro que as estradas de ferro deram a seus controladores privados foi bom enquanto durou, mas quando o negócio entrou em sérias dificuldades o governo (o público) ficou com a conta nas mãos. Quando isso ocorre, escreve Judt, o resultado é uma “re-nacionalização de facto, mas sem nenhum dos benefícios do controle público”; ou seja, quando as dívidas tiverem sido sanadas, as empresas voltarão a tocar o negócio adiante, sem qualquer obrigação de levar o serviço para locais que necessitam dele mas rendem pouco ou nenhum lucro – “(…) um serviço social prestado por uma companhia privada”, lemos algumas páginas adiante, “não se apresenta como um bem coletivo ao qual todos os cidadãos têm direito”.
Difícil pensar em tal sistema injusto e ineficiente sendo defendido a não ser com base em pura ideologia – mais ou menos como os comunistas de todo o mundo faziam com a economia coletivizada da URSS.
Há dois fetiches acoplados ao neoliberalismo: globalização e riqueza. Isto é, globalização tal como prescrita pelo credo neoliberal (acompanhada de desregulamentação financeira, por exemplo) e excessiva riqueza pessoal – duas ocorrências, reza a lenda, que existem para o bem geral da humanidade.
A globalização – quem não lembra? – levaria ao fim das rivalidades nacionais e a um mundo de paz, prosperidade econômica e liberdade individual. Dois livros para você ler sobre esses temas: O fim da história e O último homem (1992), de Francis Fukuyama, um dos ideólogos pós-Guerra Fria da inevitabilidade do capitalismo reaganiano-tatcherista dominar o mundo, por livre vontade deste; e As consequências econômicas da paz (1919), de Keynes, que nos permite ver que a globalização-como-motor-da-paz-e-da-prosperidade é uma ilusão que já havia sido acalentada por europeus vivendo na beirada do fatídico 1914. Judt cita Keynes explicando que, no pré-1914, “a internacionalização [da vida social e econômica] estava na prática quase completa.” “Para invocar um termo não ainda em uso”, ironiza Judt, “o mundo parecia plano” – implicitamente lembrando Thomas “Mundo Plano” Friedman.
Quanto ao culto da riqueza e do estilo de vida dos ricos, Judt lembra que o próprio Adam Smith o reprovou: “A disposição para admirar, quase para idolatrar, os ricos e poderosos, e para desprezar, ou, ao menos, negligenciar, pessoas de condição pobre e inferiores [é] a maior e mais universal causa da corrupção de nossos sentimentos morais” (em A teoria dos sentimentos morais). Não uma frase que os durões liberais à brasileira gostariam de ser lembrados com frequência. Assim como nas páginas de Dostoiévski o Messias sofre nas mãos do Grande Inquisidor, não é difícil imaginar o escárnio com que o Smith reencarnado seria recebido em alguns setores da contemporaneidade que se dizem defensores de sua herança.
Aliás, Ill fares the land está provocadoramente pontilhado de epígrafes de economistas clássicos. Tome essa de John Stuart Mill: “É uma ideia essencialmente repulsiva, a de uma sociedade mantida junta apenas pelas relações e sentimentos derivados de interesse pecuniário.” Ou ainda mais essa de Adam Smith: “Sentir muito diante dos outros e pouco por nós mesmos; refrear nosso egoísmo e exercitar nossas afetuosidades benevolentes, constitui a perfeição da natureza humana.” Compare isso com essa afirmação de Friedrich Hayek, o santo padroeiro do instituto que leva seu nome: “Devemos encarar o fato de que a preservação da liberdade individual é incompatível com uma total satisfação de nossos conceitos de justiça distributiva” – ops!, isso definitivamente não é um incentivo para a adoção, aprofundamento e aprimoramento da social-democracia e do estado de bem-estar social, que preconizam tanto a liberdade do indivíduo e a contínua (para alguns, obsessiva) busca de uma “justiça distributiva” que nos permita dizer que vivemos em uma nação ou em uma civilização avançada.
Ainda sobre grandes teóricos do neoliberalismo, é uma pena que, em A consciência de um liberal, Paul Krugman apenas aborte muito ligeiramente Milton Friedman (1912-2006) – para dizer essencialmente que “no início da década de 1960, Friedman voltara quase completamente ao fundamentalismo de livre mercado, com o argumento de que até mesmo a Grande Depressão foi causada não por deficiência do mercado, mas por falha do governo. Seus argumentos eram astuciosos e, digamos, beiravam a desonestidade intelectual” –, mas devo dizer que Krugman é autor de um esclarecedor perfil desse economista, “Who was Milton Friedman?”, que saiu na edição de fevereiro de 2007 da NY Review of Books e é leitura fundamental.
Reflexões sobre um século esquecido: 1901-2000, até por ser a reunião de ensaios e resenhas que Judt publicou entre 1995 e 2006 em diversos veículos (como The Nation, Foreign Affairs e, principalmente, NY Review of Books), é mais diverso tematicamente do que Ill fares the land. O problema da contemporaneidade com o século passado, segundo o autor, não é a classificação dele como um século de barbáries – que o foi também –, mas a mensagem de que tudo isso ficou para trás e agora podemos seguir adiante despreocupados.
Sendo assim, relembrá-lo é preciso. Em um texto elogioso sobre Edward Said, palestino radicado nos EUA, ao mesmo tempo defensor da causa de seu povo e bastante crítico de várias de suas lideranças, Judt, judeu, aproveita para dizer algumas desconfortáveis verdades sobre Israel – “Após 37 anos de ocupação militar, Israel nada ganhou em termos de segurança; perdeu tudo em termos de civilidade doméstica e respeito internacional; e abandonou sua posição de superioridade moral para sempre.” Esse texto é originalmente de julho de 2004; de lá para cá, Israel, com seus assassinatos em massa em Gaza e no Líbano (pra não mencionar as incessantes humilhações a palestinos e a violação das resoluções internacionais que proíbem a expansão de colônias em terras reservadas a um futuro estado palestino), nada fez que pudesse levar Judt a reconsiderar sua opinião. Mais à frente nas Reflexões, há um ensaio, “O país que não queria crescer”, que é uma das críticas mais incisivas e fundamentadas a Israel que já li vinda de um judeu. O texto é de maio de 2006 (dois meses do bombaideio no Líbano) e apareceu no Haaretz, diário liberal israelense cuja seção de opinião é um oásis da maravilhosa tradição intelectual humanista judaica; quando o Haaretz deixar de ser o que é hoje, ou o Oriente Médio terá mudado para muito melhor ou já não terá restado qualquer vestígio de democracia em Israel.
“O silêncio dos inocentes” (de 2006), um dos últimos ensaios, é uma reflexão sobre os liberais estadunidenses e a “Guerra ao Terror” de Bush júnior. Ou melhor, sobre a adesão de alguns liberais à Guerra, notavelmente Paul Berman em Terror & Liberalism, Peter Beinart em The good fight, e Christopher Hitchens em… bem, em meio mundo, ainda que não em algum livro em especial. Muitas dessas figuras foram em décadas passadas esquerdistas linha-dura, e Judt pensa que a forma estreita com que a esquerda doutrinária (qualquer doutrina, a propósito) vê o mundo deixou marcas profundas nesses intelectuais, mesmo agora em que eles se dizem mais ao centro. Eles “estão familiarizados – e confortáveis – com uma divisão binária do mundo conforme linhas ideológicas”, escreve provocadoramente.
Um mundo assim dividido é familiar a eles desde o tempo de seus pais; em alguns casos eles chegam a revisitar seu trotskismo juvenil na busca de um padrão e referência para os antagonismos históricos mundiais. Para que a “luta” atual (vale notar o léxico leninista reciclado: conflitos, lutas, confrontos e guerras) faça sentido é preciso haver um inimigo único universal cujas ideias possamos estudar, teorizar e combater; e o novo confronto precisa ser redutível, assim como seu predecessor do século XX, a uma justaposição familiar que elimine a complexidade e a confusão exóticas: Democracia x Totalitarismo, Liberdade x Fascismo, Eles x Nós.
Sou um grande admirador de alguns liberais citados por Judt, principalmente de Hitchens (os textos sobre religião, a crítica literária e as reportagens internacionais – vocês já leram aquele ensaio sobre a Coreia do Norte, ou aquele outro sobre A Paixão de Cristo do Mel Gibson? estão ambos em Amor, pobreza e guerra) e de outros que ele não cita, como Martin Amis, mas às vezes realmente me toca a forma como esses autores reduzem um universo de complexidades entre uma sentença e outra. E tem ainda aquela praga: quando estamos engajados em uma luta que queremos de vida ou morte, tendemos a ver o inimigo do nosso inimigo como nosso amigo, e assim fazer vista grossa a seus deslizes – talvez esperando o momento histórico adequado para trazê-los à tona. Assim é que Michael Walzer buscou racionalizar, em artigo de julho de 2006 na New Republic, o bestial ataque Israelense ao Líbano naquele ano.
Tony Judt reserva parte de suas energias para abordar o que ele considera o pior da esquerda do século XX. Em um trecho do qual muita gente pode discordar, ele afirma que “os valores e instituições importantes para a esquerda – da igualdade perante a lei ao fornecimento de serviços públicos como questão de direito – e que hoje estão ameaçados, nada devem ao comunismo. Setenta anos de ‘socialismo real’ em nada contribuíram para o bem conjunto da humanidade. Em nada.” Isso em um ensaio (na maior parte elogioso) dedicado a Eric Hobsbawm. Em outro (demolidor), dedicado a Louis Althusser:
Para dar mais corpo ao seu relato estruturalista, Althusser inventou algo que ele e seus seguidores chamaram de “Aparelhos Ideológicos do Estado”. (…) No dogma althusseriano a presença desses ogros repressivos e amplamente espalhados era considerada parcialmente responsável pela inconveniente estabilidade e durabilidade da democracia liberal.
Porque nada é mais urgente e sagrado para Judt – assim como para Paul Krugman – do que a defesa e aprimoramento (sempre) da democracia liberal, e seus oponentes devem ser enfrentados no campo do debate, seja em que lado do espectro político se encontrem. Em Ill fares the land, o historiador lembra que durante a Depressão da década 1930,
muitos auto-intitulados marxistas recusaram-se propor ou mesmo debater soluções para a crise. Da mesma forma que banqueiros à moda antiga e economistas neo-clássicos, eles acreditavam que o capitalismo tem leis que não podem ser desviadas ou quebradas e que não havia sentido em interferir em seu funcionamento. Esse comprometimento inflexível tornou muitos socialistas, então e nos anos por vir, insensível a desafios morais: política, eles declaravam, não é uma questão de direitos ou mesmo justiça. É uma questão de classe, exploração e formas de produção.
Ou seja, muitas vezes o revolucionário faz o jogo dos conservadores. Ao contrário dos mágicos, dos redentores, Judt é um apologista das “melhorias incrementais sobre circunstâncias insatisfatórias”. Foi assim que as políticas de assistência social e capitalismo regulado iniciadas em Roosevelt levaram à drástica redução da desigualdade de renda e à transformação dos EUA num país de muito ricos e muito pobres em um país de classe média. Conquistas que a “revolução” iniciada em Reagan solapou rapidamente, e hoje a desigualdade nos Estados Unidos voltou a ser assombrosa. Porque é assim que os revolucionários agem.
Ill fares the land é um alerta para que não deixemos a política apenas na mão dos políticos. É um alerta de que quando o Estado não cumpre seu papel de “poder moderador” e o mercado desenfreado cria um time de super ricos e um exército de super pobres, não há garantias de que a população miserável e insegura vá às ruas defender a democracia diante dos ataques de demagogos. E é um desengano para a esquerda ou “nova esquerda” que esmoreceu na luta por uma ordem social justa, devido aos “novos tempos” que a teriam tornado démodé. A direita pode sobreviver sem idealismo, lembra Judt, mas não a esquerda:
Ainda que todo regime conservador e reacionário do mundo implodisse amanhã, sua imagem pública irremediavelmente manchada por corrupção e incompetência, as políticas conservadoras sobreviveriam intactas. O argumento para “conservar” permaneceria tão viável quanto sempre foi. Mas para a esquerda, a ausência de uma narrativa historicamente fortalecida deixa um espaço vazio. Tudo o que resta são políticas: a política do interesse, a política da inveja, a política da reeleição. Sem idealismo, a política é reduzida a uma forma de contabilidade social, a administração diária de homens e coisas. Isso também é algo com que um conservador pode viver bem o bastante. Mas para a esquerda é uma catástrofe.
::: A consciência de um liberal ::: Paul Krugman :::
::: Record, 2010, 364 páginas ::: Compre na Livraria Cultura :::
::: Reflexões sobre um século esquecido: 1901-2000 ::: Tony Judt :::
::: Objetiva, 2010, 504 páginas ::: Compre na Livraria Cultura :::
::: Ill fares the land ::: Tony Judt :::
::: Penguin Press, 2010, 256 páginas ::: Compre na Livraria Cultura :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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