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A história e a espinha dorsal do Bule Voador

por Eli Vieira (13/07/2011)

Como surgiu e o que mantem de pé um dos coletivos mais polêmicos e visitados do Brasil

INTRODUÇÃO: Hoje, 13 de julho, é aniversário do Amálgama. Estamos completando 3 anos de vida. Para marcar a data, um texto sobre outro coletivo, o Bule Voador. Eli Vieira, um dos editores, conta um pouco do Bule, sítio que está entre os favoritos de vários leitores do Amálgama, para não falar dos colaboradores. Dentro da temática religião/secularismo/ciência, há grande afinidade entre Amálgama e Bule. Há naquele espaço uma defesa destemida dos direitos humanos universais que me faz vê-lo, nestes tempos relativistas, como um dos endereços mais importantes do país. Além disso, o blog oficial da Liga Humanista Secular do Brasil é uma realização diária do que nós mesmos tentamos alcançar por aqui: colaboradores assíduos, conteúdo relevante e bem produzido, debates vivos e, sim, design inteligente. [Daniel Lopes]

*

por Eli Vieira

“Existe uma larga diferença entre as pessoas que se juntam e passam
a pensar da mesma forma, e aquelas que, por pensarem de forma similar, se unem.”
Pedro Almeida, diretor geral da LiHS

— Preâmbulo —
Maior blog ateu do Brasil, blog de todas as letras, e até “bullying voador”, esses foram alguns apelidos dados ao nosso Bule Voador ao longo de mais de um ano e meio de existência. Mas eu deveria dizer mais de um ano e meio de reencarnação – o Bule teve uma vida passada como blog de ceticismo tocado sob a batuta solitária do jornalista Marcelo ‘Druyan’ Esteves, de Belo Horizonte, e já era hospedado, como ainda é hoje, pelo projeto HAAAN do nosso mecenas Kentaro Mori.

Foi o Marcelo o responsável não só pelo nome, em alusão à famosa analogia de Bertrand Russell, mas também pela maior parte dos empurrões iniciais (ou “velocidade de escape”, diria) que levaram o blog aos seis dígitos de visitas mensais atualmente. De uma gestação de discórdia e debate que durou alguns meses, o Bule renasceu e então decolou num voo calmamente ascendente. Estas são algumas das minhas memórias e reflexões sobre o que aconteceu durante este voo, escritas em resposta a um convite do Daniel Lopes, a quem agradeço. É uma alegria para mim que este seja meu primeiro texto no Amálgama. Trago as felicitações de toda a equipe do Bule pelo triênio de existência deste nosso irmão virtual.

Minhas memórias e opiniões aqui expressadas não têm a intenção de representar por completo a história do Bule Voador, muito menos as opiniões de todos os seus editores. Aqui estou, como testemunha, completamente limitado a mim mesmo. E é por isso que escolhi um formato de recortes algo caóticos. Meu desejo é que agrade a alguém da mesma forma que me agradou, numa certa madrugada, encontrar aqui uma resenha que o Daniel fez das obras do saudoso Campos de Carvalho.

— 1. Do atrito se faz luz e calor —
Era um grupo de cerca de cinco pessoas, responsáveis pelo “blog oficial” (ênfase pomposa em “oficial”) da União Nacional dos Ateus (UNA), uma comunidade de Orkut que tinha o projeto de ser uma associação alternativa à conhecida ATEA. Como em qualquer outra tribo de Homo sapiens, discórdias vêm e vão, e nossa mais marcante foi com a diretoria da União por diminuir a importância do blog, que já estava chamando a atenção por causa do talento jornalístico do Marcelo e de textos de outras figuras como Cristiano “Catupiry” Souza, Guilherme Roesler, Neilson Vilela, Silvia Chaucoski e eu.

Nosso rompimento com a UNA se refletiu dentro da “redação”, e outro atrito emergiu, mas foi ótimo. Não estou cantando odes a Éris, deusa da discórdia: foi ótimo porque um dos editores, autointitulado marxista, alegou que a ênfase explícita e renovada do Bule no humanismo secular (HS) o obrigava a se afastar, pois essa visão de mundo seria, segundo ele, claramente capitalista.

O HS é simples em sua proposta epistemologicamente cética e científica e eticamente partidária dos direitos humanos e da democracia – se alguém se afasta desta base simples por compromissos ideológicos anteriores, por prioridades maiores que isso, é algo a ser comemorado num blog humanista secular, até porque esses rompimentos dão liberdade para que a diversidade cresça e cada um ache seu nicho. Tais rupturas lembram o evolucionista francês Lamarck, mas só falarei o porquê no fim deste texto.

Foram poucos e bons rompimentos que criaram o Bule Voador, e é importante deixar isso claro, pois creio que, por mais que atritos e rompimentos sejam desagradáveis à primeira vista, são recursos legítimos de atos de criação e trabalho tanto quanto a força feita pela união. Num tom francamente irônico ao marxismo anti-humanista do antigo colega de blog, é possível tratar da história do Bule Voador em termos de uma dialética de divergência e convergência, conflito e agregação.

E agregação não faltou. Marcelo, olheiro de bons editores, foi quem chamou ao grupo nomes como Alex Rodrigues, sempre sensível às minorias; Eduardo Patriota, com análises pacientes; Pedro Almeida, com sua solicitude pró-ativa; Rayssa Gon, com sua franqueza inteligente e bem-humorada; e colaboradores esporádicos como o inimitavelmente paciente Homero Ottoni, estrela dos comentários. Junto ao blog nascia a LiHS (Liga Humanista Secular do Brasil), e mais editores foram ou atraídos pelos valores defendidos ali ou convocados de outros cantos virtuais por defenderem esses valores.

A defesa de minorias sempre esteve em pauta no Bule Voador, e trouxe controvérsia desde o começo. Não era para ser um blog apenas ateu? Não exatamente, sempre temos que explicar. Foi pela crítica desagregadora de um agregador de conteúdo chamado Central Ceticismo, que nos acusou de ser um “blog GLS”, que tivemos de nos reafirmar como blog de todas as letras, e sempre o fomos. Åsa Heuser, vice-presidente da LiHS, por exemplo, é conhecida não apenas como a “ateia de bom humor”, mas também por lutar contra a homofobia há anos, tendo fundado o blog Paul Cameron Refutado para munir o ativismo LGBT contra os argumentos deste pseudocientista.

O assunto homofobia tem voltado sempre à pauta, ultimamente com textos do Luiz Henrique Coletto. Neste tema a última grande controvérsia veio com nossa vídeo-resposta à deputada homofóbica Myrian Rios. O vídeo atraiu centenas de milhares de espectadores e o Bule Voador pretendeu colocar uma pedra na questão da recorrente comparação da homossexualidade à pedofilia trazendo dados científicos sólidos.

Nesta e em outras questões, nós bulescos não tememos uma dose de atrito: seja nas críticas da médica Meire Gomes aos exorcismos, nas análises aprofundadas do literato Camilo Gomes Júnior sobre a sexualidade humana, nas explicações da Rayssa Gon sobre por que não se mata se é ateia, ou na provocação do advogado Fabio Portela quanto ao financiamento público da pseudocientífica homeopatia.

Muito disso só é possível porque temos uma comunicação de via dupla com leitores dedicados que ampliam nossa capacidade de observação das questões relevantes ao humanismo e ao secularismo no Brasil. Eles tornam-se também editores na coluna semanal “Colher de Chá”, dedicada a todos os que se motivaram a escrever para nós.

A pauta do blog segue uma linha clara e multifacetada. Argumentamos pelo ateísmo, mas não poupamos os ateus de críticas. Opinamos em questões como a tomada das favelas cariocas pelas forças armadas e as atividades de Julian Assange e o WikiLeaks, e temos tempo para mensagens seculares de fim de ano. Pedimos o fim do apedrejamento nas teocracias islâmicas, mas não esquecemos o infanticídio indígena no Brasil.

A intenção é que o leitor perceba o que é a cosmovisão humanista secular não só por explícita declaração, mas principalmente por ambientação. Promovemos a ideia de que o sofrimento diminuirá quando abandonarmos as tradições que não respeitam a dignidade do indivíduo humano. Para nós o respeito à pessoa deve ser maior que o respeito a ideias – toda ideia, principalmente a tradicional, deve ser desafiada. Não merece respeito a alegação sem substância de que o universo está sob o controle de uma mente gigantesca, que se importa conosco, e que apesar de sua perfeição alegada concebeu como melhor ideia de “salvação” o plano ridículo de que um inocente deve pagar pelos erros dos outros. Cabe a nós arregaçar as mangas para nos salvar do que precisamos ser salvos – de um mundo desigual, supersticioso e sectário. É falsa a ideia de que todo ser humano necessita ser salvo – ser gente não é uma maldição, mas uma maravilhosa e improvável benesse de extrema raridade neste universo.

Para entrar no velho clichê do atrito produzindo luz e calor, é assim, com uma postura pautada na luz do debate e no calor humano, que aquecemos nosso chá diário.

— 2. Legados, ambições e vértebras —
Nomes já citados anteriormente que hoje têm algo a ver com o Bule ou a LiHS – Åsa, Kentaro, Marcelo; e outros como Vides Júnior (todos membros eméritos da associação) são herdeiros de um legado doméstico e internacional. Todos se envolveram direta ou indiretamente com a Sociedade da Terra Redonda (STR), a primeira tentativa ora extinta de organizar secularistas e céticos no Brasil, que começou no fim da década de 1990. Também converge nesta trilha o atual presidente da ATEA, Daniel Sottomaior. A influência estrangeira é quase toda anglófona: nomes como David Hume, Bertrand Russell, Richard Dawkins, Daniel Dennett são os mais óbvios, mas, no entanto, deve ser evitada a percepção linear de influência do secularismo internacional na tortuosa linha histórica que gerou o Bule Voador como um de seus frutos. Muitos não se lembram de referências de simpáticos descrentes como Mário Quintana no Brasil e Fernando Pessoa em Portugal (particularmente com seu Alberto Caeiro).

A convergência retrógrada da história pode também passar uma falsa impressão de dogmatismo centrífugo. Como sabem os envolvidos, essas ideias são reinventadas todos os dias, e prescindem de qualquer referência única – como acontece com o que se convencionou chamar de verdade ao longo dos séculos. É delicioso traçar uma linha entre o que se diz no Bule Voador e o que dizia Denis Diderot séculos atrás ou Yang Zhu na China e os Carvakas na Índia milênios atrás. No entanto, a força de cada um dos valores epistemológicos, éticos e políticos defendidos pelo Bule Voador está no fato de que são passíveis de descoberta independente por qualquer sociedade que se proponha a enaltecer o debate crítico acima das autoridades. O melhor ateísmo, o melhor humanismo e a melhor democracia são os centrípetos: múltiplas fontes independentes, mesmas conclusões.

É assim que nossa ambição de criar um nicho humanista, secularista e laico no Brasil tem sido atendida: pela convergência de mentes independentes que brotam neste continente e convergem à revelia da opinião dominante inculcada em cinco séculos de doutrinação. Temos o orgulho de receber advogados da fé como Alex Altorfer e André Tadeu de Oliveira entre nós, pois não pretendemos fingir que os ideais humanistas são exclusivos de um modo de pensar secularista. Exclusivismos não cabem numa visão de mundo crítica e antidogmática.

Não faltam planos. A estética vista em vinhetas, logotipos e layouts, por conta de Alexandre Gabarra Marcati, Marcos da Mata e o veterano Cristiano “Catupiry” Souza, continuará levando a marca do nosso ativismo humanista secular que cresce e se ramifica para fora da rede no Brasil. No Twitter o editor Francisco Boni lança o encurtador de links Athéis.me. Nossos atritos, ironizando os fundamentalistas evangélicos com coisas como nossa Marcha Anticanhotismo ou agindo judicialmente com a LiHS pela efetivação da laicidade do Estado, continuarão gerando cada vez mais luz e calor para aquecer o nosso chá.

E por falar em chá, como conta David Salsburg no livro Uma senhora toma chá (Zahar, 2009), foi uma simples pergunta sobre chá que “motivou” a estatística a tomar as rédeas das ciências no século XX, deixando para trás, para sempre, o determinismo duro da era newtoniana e introduzindo a complexidade probabilística e a (im)previsibilidade limitada às melhores teorias. Foi isso, em parte, o que salvou a ciência da negação do livre-arbítrio, e o Bule vai servir este chá num futuro breve. Estamos dispostos a ir até as bases de nossos princípios, que implicam necessariamente uma crença em alguma forma de liberdade de arbítrio. Está claro que a percepção popular do tema deve ser reformada, e a ética deve ser debatida conforme este fenômeno fundamental da experiência de ser humano for melhor descrito pelas pesquisas. Pesquisas que são a pauta de nosso novo projeto de divulgação científica Periódico Bule, que vem para complementar nossas postagens de teor acadêmico.

Ciência, ateísmo, história da Liga Humanista e do Bule Voador, tudo isso me leva ao prometido fim deste texto com Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet, o Cavaleiro de Lamarck (1744-1829). Uma analogia com um “erro” de Lamarck pode deixar bem claro por que motivo o Bule Voador precisou nascer de um berço de discordâncias entre ateus.

Há 200 anos, Jean-Baptiste Lamarck, naturalista francês, dividiu os animais em vertebrados e invertebrados. Note que a divisão é desigual de uma maneira importante: vertebrado é uma classificação positiva, baseada na presença de um órgão observável que é a coluna vertebral. Invertebrado é uma classificação negativa, ou seja, é um nome para os bichos que não têm esse órgão.

Após a teoria da evolução e outros avanços, a biologia aprendeu que a classificação “invertebrados” é chauvinista, nada explicativa, e não junta os animais de uma forma que reflita sua história ou suas características. Nós biólogos ainda chamamos animais de invertebrados nas nossas disciplinas, mas sabemos que é uma forma artificial de chamá-los e que, para compreendê-los, de nada adianta saber o que eles não têm (coluna): precisamos saber o que esses animais nos mostram ter, de forma positiva (positiva no sentido de afirmativa). Ou seja, a categoria dos invertebrados é meramente instrumental.

A minha conclusão é que os termos “ateu” e “ateísmo” são da mesma natureza de “invertebrado”. Unir pessoas com base numa falta de crença tem que ser meramente instrumental, não se pode esperar que grandes realizações resultem disso. É preciso mais que criticar: é preciso propor. Ninguém que é ateu deve se sentir obrigado a pensar criticamente, a ser cético, a gostar de ciência, a se importar com direitos humanos, democracia e Estado laico. Esse conjunto de valores em conhecimento e conduta forma a coluna vertebral do humanismo secular que mantém de pé o Bule Voador e seu sucesso.

Nos levantamos graças a esta espinha dorsal e nos articulamos com ela para construir valor e sentido em nossas existências finitas. Receberemos de braços abertos quem quiser compartilhá-la conosco.

Eli Vieira

Biólogo (UnB), geneticista (UFRGS e University of Cambridge), humanista, pensador.