Sherlock Holmes ganha um novo romance, 82 anos depois da morte de seu criador
No conto “A ponte de Thor”, John H. Watson revela que “em algum ponto das abóbadas do banco Cox & Cia., na Charing Cross, existe uma caixa de estanho com vários documentos” relacionados a seu amigo de toda uma vida. Seriam casos que, por um motivo ou outro, jamais deveriam vir a público na forma de um texto escrito pelo biógrafo do gênio de Baker Street. Publicada originalmente na edição de Strand Magazine de fevereiro/março de 1922, aquela história curta interessa particularmente aos brasileiros por nos dar a oportunidade de vermos o Grande Detetive investigando a morte de uma compatriota nossa, uma certa Maria Pinto, casada com um milionário americano e morando em um vilarejo inglês. Já para os apreciadores em geral das histórias criadas por Arthur Conan Doyle (1859-1930), a narrativa tem esse sabor extra de tornar oficial o desejo de muitos leitores: o de que houvesse novas aventuras da dupla para além do chamado Cânone, formado pelos quatro romances e 56 contos oficialmente aceitos como sendo casos de Sherlock Holmes. Passados mais de 80 anos da morte do autor original daqueles personagens, eis que um dos famosos documentos daquela caixa de estanho vieram a público na forma de um novo livro, ficcionalmente escrito por Watson, mas na realidade assinado por um continuador do Cânone, Anthony Horowitz.
Anunciado como “o novo romance de Sherlock Holmes” na capa, A casa da seda conta mesmo com a aprovação oficial da Conan Doyle Estate Ltda., a entidade que protege os direitos do autor principalmente nos países nos quais a obra dele ainda não esteja em domínio público. Horowitz, um premiado escritor e roteirista de seriados policiais para a TV, junta-se assim a Andrew Lane, autor da série de livros Young Sherlock Holmes, que vem sendo publicada no Brasil pela Intrínseca, como os únicos privilegiados a obter a autorização oficial para dar continuidade ao legado de uma das maiores e mais famosas criações literárias de todos os tempos. Porém, o trabalho visto neste romance é ainda mais ambicioso que o da série de livros juvenis de Lane, pois ele pretende mesmo ser um acréscimo sem arestas ao conjunto da obra que, entre Um estudo em vermelho, de 1887, e o conto “O velho solar de Shoscombe”, de 1927, registrou a passagem de Sherlock Holmes como detetive consultor em Londres.
Não é à toa que a editora que lança o material no Brasil seja a Zahar, a mesma casa que recentemente publicou a edição definitiva, comentada e ilustrada, em nove volumes, bem como uma coleção em livros de luxo no formato pocket, com a obra canônica do personagem. Meticulosamente pesquisado e escrito para isso, A casa da seda merece o status de pertencer a esta seleta reunião de textos, reconhecimento que nem mesmo alguns dos escritos do próprio Conan Doyle obtiveram, como relembrei em um artigo escrito em parceria com o colaborador da área de ciência do Amálgama, Carlos Orsi. Horowitz, que já havia dado continuidade na série de TV Poirot à carreira de outro famoso detetive sediado na Inglaterra – o belga bigodudo criado por Agatha Christie –, demonstrou ter um domínio da forma e do conteúdo do mundo sherlockiano, criando um caso que não só é totalmente coerente com as ações do detetive como parece realmente ter sido narrado por seu fiel parceiro.
A rigor, o livro trás na verdade dois casos, como reconhece o próprio Watson no prefácio. O primeiro seria chamado de “O homem da boina”, e acontece no inverno de 1890, quando o médico e escritor aproveita uma viagem de sua esposa para voltar temporariamente a dividir os cômodos da casa com seu antigo colega de aventuras. Nesta ocasião de reencontro, Holmes recebe a visita de um novo cliente, dono de uma prestigiada galeria de arte, que se acredita alvo de um criminoso que o persegue desde uma viagem aos Estados Unidos. Aparentemente um caso banal — tanto que, para ajudar em uma tocaia ao suposto criminoso, o detetive convoca o grupo de garotos de rua que normalmente lhe prestam serviços em trocas de moedas, os chamados Irregulares de Baker Street. Porém, quando um desses jovens auxiliares informais aparece morto e com uma fita de seda branca amarrada no pulso, tanto Holmes quanto seu biógrafo se descobrem envolvidos em uma trama maior, cheia de segredos ocultos e que interfere diretamente nos interesses de algumas das personalidades mais poderosas do Império Britânico.
São os mistérios por trás do nome A Casa da Seda que fizeram Watson evitar registrar os acontecimentos daquela investigação. Ele só volta a relembrar o caso muito tempo depois, após mesmo a morte de Sherlock Holmes, cercado de seus netos, quando decide prestar a última homenagem ao amigo. O livro que Anthony Horowitz nos entrega seria este acréscimo final aos documentos na caixa de estanho guardada no banco Cox & Cia., um caso por demais sensível para vir a público em detalhes enquanto dele restasse alguma memória na sociedade inglesa, mesmo no início do século XX. Subterfúgio perfeito para provocar uma forma mais reflexiva de Watson narrar os acontecimentos, com um distanciamento ainda maior dos eventos e um olhar mais crítico que o normal aos tempos vitorianos nos quais eles se passam. A autocrítica também está bem azeitada. Um bom exemplo é esta reflexão na página 169: “Mostre a Holmes uma gota d’água e ele deduziria a existência do Atlântico. Mostre para mim, e eu procuraria uma torneira. Essa era a diferença entre nós”. Comparação perfeita que reflete mesmo muito bem o papel de cada um naquelas histórias pioneiras escritas por Doyle.
Felizmente, alguma boa alma resolveu retirar esse relato derradeiro do limbo e com isso vemos um Holmes no auge de sua forma, com os poderes dedutivos mais afiados do que nunca, em uma aventura que se passaria pouco antes do seu desaparecimento, quando forjou a própria morte no conto “O problema final”, de 1893. Com isso, em seu novo romance, o detetive se mostra capaz de resolver crises inéditas em sua história, como uma acusação de assassinato e a prisão em um estabelecimento de segurança máxima. Horowitz se mostra nesses momentos não apenas hábil em criar situações novas e verossímeis em relação ao que conhecemos do personagem, como na interpretação que faz da interação dele com alguns de seus coadjuvantes mais famosos, como o irmão Mycroft, o inspetor Lestrade, a proprietária da casa do 221-B de Baker Street, Sra. Hudson. O único encontro que soa um tanto forçado e fora de lugar nas 272 páginas da obra é o que ocorre entre Watson e o arquivilão Moriarty, que acrescenta pouco à história em si e acaba por tornar menos impactante o momento em que o famigerado professor realmente atravessa os caminhos da dupla.
A edição nacional está bem cuidada, com destaque para a tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. O único ponto que pode despertar curiosidade nas escolhas feitas pelos editores está no uso do padrão inglês de marcação dos diálogos no lugar do nacional, ou seja, no uso de aspas ocupando o espaço normalmente destinado aos travessões. De resto, um trabalho realmente imperdível, que se destaca mesmo em um momento no qual Sherlock Holmes parece estar mais vivo do que em seus tempos vitorianos, com uma franquia de sucesso nos cinemas, um seriado muito bem avaliado pela crítica em exibição na BBC e com novos livros revelando detalhes inéditos de sua trajetória.
::: A casa da seda :::
::: Anthony Horowitz (trad. Maria Luiza Borges) :::
::: Zahar, 2012, 272 páginas :::
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Romeu Martins
Jornalista formado pela UFSC. Desde 2009, tem publicado contos de ficção científica, fantasia e terror, tendo participado da primeira coletânea nacional dedicada a Sherlock Holmes.