O denominalismo de agora parece não ser nada além de um grande esforço reducionista
Em sua obra literária mais conhecida, o italiano Umberto Eco propõe, além de uma fascinante aventura policialesca em torno do conhecimento e seus efeitos terrenos em plena era medieval, uma questão de fundo muito presente na época em que se passa O Nome da Rosa, e que permanece ainda hoje como um dilema não resolvido pela linguagem humana e por aqueles que a estudam ou, pelo menos, dela se valem. Consiste na atribuição de palavras, ou nomes simplesmente, mas não conceitos, como definidores da realidade.
Caso se tratasse de algo pacífico, provavelmente não se teria na atualidade a difusão de tantos substantivos tomados como adjetivos, principalmente quando o que se procura é definir as características dos seres humanos. Tomando-se por ponto de partida o uso comum de termos relacionados às diferentes deficiências que podem acontecer ao homem (físicas, sensoriais, intelectuais ou múltiplas), é relativamente simples observar com que facilidade as pessoas tomam o nome pela característica, como se além do nome nada houvesse a considerar a respeito das pessoas. A profusão de textos, inclusive os muito sérios, denominando pessoas, quando se quer dizer outra coisa, como autistas, cegas, surdas, loucas ou retardadas é um exemplo claro da preguiça mental que simplifica o humano pelo que nele é mais visível e substitui sua representação, não por um conceito, mas por um preconceito, na medida em que o uso destas palavras tem exclusivo sentido pejorativo.
Se na baixa Idade Média o nominalismo surgiu como forma de questionar alguns dogmas impronunciáveis do cristianismo de outrora, o denominalismo de agora parece não ser nada além de um grande esforço reducionista. Não se diz de uma pedra que ela é imóvel ou a chuva molhada, mas facilmente se diz que alguém é cego, surdo, autista ou retardado como forma de explicar alguma incapacidade pessoal, ou uma característica de não-ser. Exclui-se rapidamente a pessoa do conjunto normal de pessoas e se a toma por um objeto de generalização. A pressa em veicular a mensagem justifica qualquer coisa, é o que parece estar cada vez mais claro.
Assumindo-se o discurso, não seria equívoco inferir que todo cego é um sujeito alienado (muitas vezes até por opção própria, como “aquele que não quer ver”), todo surdo um sujeito indiferente (como “aquele que não quer ouvir”), toda pessoa com deficiência intelectual um incapaz, e todo autista um tipo alheio ou ausente. Provavelmente poucos gostariam de postular tais afirmações, mas, de maneira implícita, é um discurso comum que povoa jornais, revistas e outros gêneros de literatura informativa, encontrável até na escrita de pessoas experientes.
Na internet, onde textos apócrifos são atribuídos a autores consagrados. Um poema de um suposto Mario Quintana consiste em exemplo que consolida esse tipo de pensamento. Basta que se verifique os seguintes versos: “(…) ‘Cego’ é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria, e só tem olhos para seus míseros problemas e pequenas dores./ ‘Surdo’ é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão. Pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês./ ‘Mudo’ é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia./ ‘Paralítico’ é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de sua ajuda.(…)”
Muito provavelmente o autor de Baú de Espantos nunca fora tão pouco sutil, característica marcante de sua produção poética. De qualquer modo, seu nome é emprestado a um texto tão taxativo quanto uma bula de medicamento, consolidando estigmas sob uma forma pretensamente poética. Poucas pessoas não terão passado por estas linhas e, infelizmente, muitas não terão percebido que o poeta gaúcho nada tem a ver com elas.
Versos como os acima, entretanto, são inofensivos se comparados à fúria denominativa que domina estes dias. Presentes em certo humour que arrasta milhões de seguidores ávidos por qualquer grunhido intelectual e até mesmo na plataforma eleitoral de políticos que usam os termos como xingamentos, sua vulgarização implica na naturalização e compartilhamento da estupidez, onde nada se troca de verdade, mas tudo se reproduz viralmente. Haverá quem diga que se trata de mais um patrulhamento do “politicamente correto”. Pode até ser correto o pensamento, porque felizmente não se encontra quem empregue na escrita, de forma pejorativa, termos como “gay”, “negro”, “gordo”, etc. Pode ser que se trate apenas de uma equanimidade de tratamento. Não seria pouco, nem tampouco tolice.
Quando uma criança adquire suas primeiras palavras, dificilmente ela precisará criar um novo vernáculo. Ela usará as palavras de seu meio social, sua família em primeiro lugar. É compartilhando significados e emprestando-se pronúncias que os conceitos se formam. A linguagem, portanto, é um produto social, não é necessário que se a recrie indefinidamente. O sentido que os conceitos adquirem também são dados pela significação. Portanto, a consagração dos preconceitos obedece a essa mesma lógica. Palavras que significam deficiências não têm sentido figurado a não ser pelo uso que se as empregue.
Ao invés do uso indiscriminado de palavras que tem profundo significado para aqueles que são definidos cientificamente por elas (denominações de deficiências são organizadas pela CID e CIF, classificações comumente utilizadas pela medicina, propostas pela OMS), é de se perguntar qual a dificuldade que pode haver na utilização de seus supostos sinônimos. Que se diga de uma pessoa indiferente, indiferente. Que se diga de quem se aliena pela própria conta, um alienado. De quem prefere não perceber a realidade, um ignorante por sua conta e risco. De quem não alcança a compreensão de um conceito, uma pessoa limitada. E que se deixe às pessoas com deficiência e suas denominações o fardo que já carregam de serem confundidas com os nomes que se emprestam a elas, como se desprovidas de qualquer subjetividade. Se, como dizia Demócrito, o filósofo que ri, “a fala é a sombra da ação”, é preciso justamente desconstruir as barreiras atitudinais que criam muros linguisticos e reais entre as pessoas. Sem isso, falar às paredes só tem por certo o próprio eco, com o perdão do trocadilho.
Da vulgarização plena da fala comum ao discurso medicalizador, que joga para a alteridade e cria até mesmo por efeito iatrogênico o ser doente, difunde-se a noção de que à pessoa deficiente faltam as características naturais do ser humano ou que se tratam de pessoas incompletas. A superação dessa perspectiva, entretanto, só podera acontecer mediante uma inclusão baseada no reconhecimento da diferença enquanto elemento pertencente ao ser, e não dele dependente ou por ele causado. É o que é proposto em algumas das ideias do alemão Axel Honneth, em Luta por Reconhecimento: A Gramática Moral dos Conflitos Sociais. A essa altura, os nomes voltarão a ser o que são, nomes, e um conceito intersubjetivo, forjado nas relações sociais, tomará o espaço ocupado pelos lugares comuns que têm povoado de modo contumaz a prática discursiva daqueles que até podem parecer seus defensores num primeiro exame mas que, num segundo e pouco mais detalhado, podem ser revelados como renovados agentes da estigmatização e segregação. Enquanto isso, é muito bom arregalar os olhos antes de se unir ao rebanho, para se ter certeza de que não se está aderindo à matilha. Mesmo que equívocos possam compreensivelmente acontecer, não é má ideia soar os alarmes, como o menino na fábula. Afinal, a história tem demonstrado que os lobos estão sempre por perto.
Lúcio Carvalho
Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).
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