Por entender que teatro é vida, o personagem Lourenço conclui que o contrário também é verdade
O teatro é uma das mais antigas manifestações artísticas já realizadas pelo homem. Desde a época das cavernas, os homens se acostumaram a representar seus dramas e comédias, pretendendo, com tal atitude, uma melhor forma de se compreenderem. Nos últimos anos, acostumamo-nos a ver o teatro se apropriando da literatura, com o aumento das adaptações de obras literárias, algo que poderia gerar uma ideia de subalternidade completamente descabida, pois as duas formas artísticas se bastam dentro dos próprios limites. De forma corajosa, o carioca Antonio Carlos Tettamanzy, em Desliguem os celulares, faz o movimento inverso: transforma o teatro em literatura. Com resultados surpreendentes.
Um livro começa pela sua capa, e este não é exceção. A plateia – entre os quais se encontra o leitor – observa o palco e o aviso “desliguem os celulares”. O título do livro é oportuno: o toque de um celular pode desconcentrar da leitura. E, assim como no teatro, perder a meada narrativa pode ser fatal para o entendimento da trama.
A história se constrói através de várias vozes narrativas. Em um primeiro plano, temos Lourenço, autor de peças de teatro de vanguarda, mas que conseguiu sucesso através de uma novela, circunstância que o deixa extremamente ressentido. Lourenço tem relacionamentos conturbados com duas mulheres: Isadora e Letícia. Apesar de ter amado Isadora, ele casou com Letícia, que era amiga da sua antiga namorada. Encontra-se separado de ambas, mas as vozes das duas ainda se intrometem na sua vida e nas suas decisões. A história de Lourenço, autor atormentado pelo seu desejo de escrever uma peça e as suas dificuldades de lidar com o patrocinador e com o produtor, é contada na peça de teatro no mesmo momento em que ele revela a história na qual está trabalhando. No segundo plano, está a peça em elaboração: a história de uma prostituta que vai para a Europa e sustenta a mãe, que finge não saber o oficio da filha e constrói mentiras para justificar a sua viagem.
No entanto, todos os personagens desta ficção são duvidosos: ao mesmo tempo em que a filha mente para a mãe e esta mente para as amigas, as duas também mentem para os espectadores/leitores. Não se pode dizer com certeza qual é a verdade narrada; de tão imersas na mentira, as próprias personagens parecem incapazes de ver a realidade. Demonstrando uma identificação forte com o objeto da sua narrativa, o próprio autor ingressa na peça, interagindo com as personagens. O espectador/leitor tem a sua visão guiada como se estivesse em uma sala de teatro. Vale dizer que o cenário modifica diante dos seus olhos, assim como a ênfase em algum personagem é fornecida pelo destaque concedido a ele, como se houvesse um holofote aceso sobre a sua cabeça.
A estrutura do livro é extremamente visual. Este é um dos méritos de Tettamanzy, que consegue escrever a obra sem romper por um só momento a ilusão de que se está assistindo uma peça de teatro. Outro destaque é a linguagem: da mesma forma com que ocorre em uma representação teatral, as falas das personagens são claramente marcadas. As histórias são habilmente tecidas para a plateia, e cada intervenção ou mudança de cena acrescenta um novo detalhe para a história. O autor nunca apresenta claramente as intenções das personagens. Elas são construídas pouco a pouco, através de nuances nos diálogos.
A confusão que Lourenço faz da sua própria vida com a peça de teatro que está escrevendo é típica de um autor que se entrega de forma visceral à história narrada. Por entender que teatro é vida, Lourenço conclui que o contrário também é verdade. Assim, não espanta que ele interaja com a própria história, ao mesmo tempo em que os seus dramas se refletem nas mentiras contadas sobre o palco. O interessante é que, mesmo com a pretensão de escrever teatro de vanguarda, a peça idealizada por Lourenço cai nos mesmos clichês narrativos que ele tanto abomina. Nos momentos em que a história se concentra na peça elaborada, ela apela para todos os clichês possíveis, tais como a moça com emprego modesto que vira prostituta, o europeu sedutor que faz tráfico de escravas brancas, o político corrupto, o dinheiro mandado para a mãe. Por outro lado, a vida de Lourenço é muito mais surpreendente do que a ficção. A relação que ele possui com as duas mulheres – e o fato dela jamais ficar esclarecida por completo – é um fator de tensão constante. As mensagens deixadas na secretária eletrônica são fonte de sofrimento, mas o autor insiste em ouvi-las, mesmo sabendo que irá ser pressionado pela ex-mulher ou pelo produtor da peça. Lourenço questiona a própria obra e a sua capacidade de se dissociar daquilo que escreve. Cego pela história narrada, ele se considera pouco plausível, ao passo que a sua narrativa não tem a verossimilhança questionada. No entanto, mesmo cobrado para que termine a peça ou para que realize algo mais popular (com atores de novela, risadas fáceis e uma lição edificante ao final), Lourenço insiste em se manter íntegro diante do mercado, insiste em lutar pela “arte”.
Não é uma leitura fácil. Os desníveis de linguagem são constantes, assim como a alternância entre teatro e literatura leva o leitor a sair da zona de conforto e interagir com a narrativa da mesma forma com que a plateia do interior do livro é deslocada de sala em sala. Os personagens não se apresentam claramente construídos desde o início e, assim como o espectador de uma peça que desconhece o roteiro, o leitor necessita ter paciência e disposição para entender a narrativa. No entanto, surpreendeu-me que o resultado fosse se tornar prazeroso. Assim que me acostumei com o ritmo e aceitei o fato de que não estava lendo um livro, mas sim uma peça de teatro em forma de literatura, o desenrolar da leitura tornou-se agradável, assim como o destino dos personagens revestiu-se de interesse.
É necessária grande habilidade para contar uma história de forma desprovida de linearidade e manter a tensão narrativa. O interesse do leitor tende a se desvanecer com o crescimento de tramas desiguais disputando a sua atenção, mas Tettamanzy consegue dosar com precisão as tramas, fazendo um mosaico de histórias que se interligam e se afastam com velocidade. Contribui para manter o interesse a linguagem clara e sem voos estilísticos. O espectador/leitor se desloca no palco do teatro construído dentro do livro, voltando a sua atenção para os dramas dos personagens, os quais se entrelaçam com os problemas do autor da peça, também transformado em personagem. Desliguem os celulares é um labirinto que o leitor percorre na procura do sentido da peça de teatro, que, no fundo, é o próprio sentido da vida.
::: Desliguem os celulares :::
::: Antonio Carlos Tettamanzy :::
::: 7 Letras, 2012, 128 páginas :::
Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
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