Entre tocar de novo a mesma música e compor uma nova, melhor a segunda opção. Assim era no tempo de Bach.
Dias atrás escrevi aqui pro Amálgama comentando sobre uma crítica de Leonardo Martinelli, na Revista Concerto, à figura representada por André Rieu. Em linhas gerais, argumentei que André Rieu não é uma figura nociva. É apenas alguém aproveitando uma demanda e ganhando dinheiro com música. O que fez meu texto ser um tanto polêmico foi o título (um ataque direto ao Martinelli, por causa de sua argumentação) e a afirmação de que a música clássica não está muito acima de Rieu, ensimesmada num repertório repetitivo e sem sentido cultural contemporâneo.
Ocorre que eu não sabia que além de crítico Leonardo Martinelli também é compositor de música contemporânea. O que não muda nada em relação ao que eu escrevi naquele texto. Como crítico, Martinelli não se assume como compositor nem oferece qualquer defesa da música contemporânea. Continua escrevendo sobre os clássicos como se a música tivesse morrido há séculos.
Basta que se vejam seus textos para o novo número da Concerto (nº 185, julho de 2012): estão lá uma matéria sobre os 35 anos da Cultura FM, um necrológio para Fischer-Dieskau (recomendo o post do Pádua Fernandes, que suspeito ser o melhor texto escrito sobre o cantor em todo o mundo) e uma matéria em conjunto com Camila Frésca tentando ser mais didático do que no texto contra Rieu — trata-se da matéria de capa, “Quem tem medo de música clássica?”.
Além disso, o número da revista traz uma matéria de Camila Frésca sobre o violinista Luiz Filipe Coelho (Luiz Filip, em versão germanófona), uma entrevista da mesma jornalista com o violoncelista Antonio Menezes, um relato/reflexão de João Marcos Coelho sobre um debate realizado no âmbito do 4º Congresso de Jornalismo Cultural e um texto de Júlio Medaglia intitulado “Sustentabilidade cultural” – no qual basicamente o maestro saudosista se queixa da falta de conteúdo a ser veiculado pelas novas mídias que surgem a todo momento.
Volta à cena a questão da minha argumentação, mal compreendida também pelo compositor Leandro Oliveira em texto para o site da Dicta & Contradicta. Citando meu artigo do Amálgama, ele afirma que devo sentir falta de música contemporânea porque moro em Curitiba. Quem está na iluminada São Paulo já a tem de sobra.
Não é disso que se trata: é claro que existe música contemporânea sendo feita, e Leandro Oliveira se queixa de que haja muitas primeiras audições de obras, que também costumam ser as últimas, pois as peças caem no esquecimento.
Música contemporânea é exatamente isso: compor música para o nosso tempo. Depois de tocada a música, o tempo já passou. Entre tocar de novo a mesma música e compor uma nova, melhor a segunda opção. Assim era no tempo de Bach, que compôs uma cantata para cada domingo do ano no período em que foi Kantor da igreja de Leipzig. As partituras de sua música permaneceram inéditas durante sua vida, foram objeto de estudo das gerações seguintes, mas a ideia de recriar sua obra foi coisa de Mendelssohn, em 1824. Estava nascendo ali a “doença do repertório”: tocar música do passado em breve seria mais significativo do que compor música do presente.
Essa doença se acentuou à medida em que alguns compositores entraram numa espiral de complexidade que julgavam ser o único caminho. Crentes em teses de evolução contínua da linguagem rumo a um aumento de elementos harmônicos, formais e timbrísticos – corrente da qual Richard Wagner foi talvez o principal representante –, o principal efeito que provocaram foi o surgimento do maestro e o ocaso do compositor. Hans von Bulow pode ser considerado o primeiro maestro – foi o único homem capaz de realizar o Tristão e Isolda, coisa que nem o próprio Wagner pode fazer. As peripécias do surgimento desta figura, seu desenrolar ao longo da segunda metade do século XIX e início do século XX estão muito bem analisadas no livro O mito do maestro: Grandes regentes em busca do poder, de Norman Lebrecht.
Pano rápido.
Nos Estados Unidos dos anos 1930/40 um novo fenômeno deixaria marcas profundas na cultura mundial. O surgimento da indústria da música clássica. A rigor, ela já existia desde os tempos de Beethoven, o primeiro compositor a viver do mercado editorial de partituras e não ser empregado direto de nenhuma corte ou igreja. Ganhou um novo patamar com a invenção do fonograma e a descoberta do fenômeno Caruso. Mas só se tornaria o que conhecemos hoje quando uma miríade de músicos destacados do cenário europeu fugiram da Europa por causa do nazismo e encontraram acolhida nos Estados Unidos, no exato momento em que a música sinfônica se tornava um fenômeno de massas.
O principal personagem desta história é Toscanini, um maestro que se tornou célebre por divergir de Mussolini, o que lhe rendeu uma posição política incomparável nos EUA, onde já vinha trabalhando para o Metropolitan Opera. De mudança para o novo mundo, Toscanini se tornou um fenômeno inigualável: era capaz de vender milhões de cópias dos discos da sua NBC Simphony tocando sinfonias de Beethoven ou aberturas de Verdi e Wagner. O sucesso discográfico se apoiava nos programas radiofônicos transmitidos nas tardes de domingo – mais ou menos no mesmo horário em que hoje se assiste ao Sílvio Santos, ou ao Faustão. A ironia é que o principal maestro dos Estados Unidos não tocava compositores norte-americanos. E eles existiam. Mas a produção contemporânea (Ives, Copland e muitos outros) já estava condenada a ficar soterrada pelo mercado de música europeia do século XIX.
Na mesma época, Stokowski colaborava com Disney na produção de Fantasia, e Damrosch fazia programas radiofônicos educativos para serem ouvidos nas escolas. Um arguto observador também imigrante, Theodor Adorno, criticava tanto o jazz da era do swing como as pretensões de amplo alcance da música clássica. Ele classificava o fenômeno como fetichismo, aplicando um conceito de Marx para o que ocorre quando o valor de uma mercadoria se dá não pelo seu uso efetivo, mas pelo status que ela é capaz de sugerir. A rigor, música clássica é isso: exibicionismo pedante e culturalmente vazio.
Culturalmente vazio por quê? Porque o maestro se tornou muito mais importante que a música, e o peso massacrante do passado submergiu a produção atual. É claro que grandes indústrias se aproveitam disso, e o dinheiro que Rieu amealha com isso é fichinha perto do que conseguiram fazer os proprietários de empresas como Decca, EMI, Deutsche Grammophon ou Sony.
Há muita música contemporânea em São Paulo? Que bom. Mas não é o suficiente. O repertório do passado vai continuar existindo, e tem o seu lugar. Mas ele não pode ser maior do que a produção contemporânea. Estudantes de música deverão continuar se debruçando sobre os grandes mestres (sou professor de História da Música, trabalho com isso no dia a dia), a educação musical para o grande público passa pelo conhecimento das obras de referência, mas nada disso faz sentido se não pudermos ter ouvidos para uma produção culturalmente significante para o nosso tempo. Os estudantes de música não podem ser condenados à repetição extenuante e infinita do repertório – é isso que está matando a música, e não o pastiche mal feito de André Rieu.
Por outro lado, a composição contemporânea já se libertou há tempos da pretensão de evolução contínua – ninguém poderá compor música sempre melhor que a tradição clássica. Simplesmente podemos fazer música para o nosso tempo. A tradição deve ficar no seu lugar, não se pode pretender que a música mumificada concorra com a música viva.
Aí entra o papel do crítico. Escrever o enésimo comentário sobre uma sinfonia de Beethoven ou procurar os caminhos para aproximar o ouvinte da produção local e contemporânea? A Revista Concerto vai pelo caminho mais fácil – afinal, é a versão brasileira da revista britânica Gramophone, e tem como principal compromisso difundir a indústria fonográfica da música clássica.
A questão se insere numa dinâmica ainda mais profunda quando se trata de um país periférico como o Brasil. Estamos diante do dilema entre perder nosso tempo tentando “alcançar” a Europa e assimilar sua cultura hegemônica ou aprendermos com eles e desenvolvermos nossa própria produção, que faça sentido no nosso meio cultural. Já temos muita coisa importante sendo produzida, faltam uma imprensa especializada e uma crítica musical capazes de darem conta disso.
Preocupar-se com Rieu é desvio de foco. Defender a música clássica também. Que um compositor contemporâneo precise escrever sobre música clássica na Revista Concerto é um péssimo sinal.
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