O grande diferencial de Moacir Assunção é fazer uma ponte entre a Guerra do Paraguai e a atualidade
Eu pensei que ia encrencar com esse livro. Olhando apenas seu título, me cheirou a tentativa de equivalência entre os dois lados na Guerra do Paraguai, e imaginei que a obra pudesse ser uma espécie de revisão da revisão da revisão – ou seja, uma revisão da corrente historiográfica, cujo livro maior é a Maldita guerra (2002) de Francisco Doratioto, que derrubara a mitificação pró-Paraguai, cujo maior representante é Julio Chiavenato e seu Genocídio americano (1979), que por sua vez revisara a história brasileira oficial, militarista, do conflito.
O livro de Doratioto conclui que realmente a história oficial estava cheia daquilo que nós não-especialistas chamamos de besteira, mas tal também é seu veredito em relação à tese de Chiavenato e outros esquerdistas que viam a Guerra em termos de um desprezível Brasil escravocrata aliado a uma Argentina e Uruguai manipulados, os três, por uma Inglaterra imperialista, contra um Paraguai quase socialista, tentando dignamente estabelecer-se como uma poderosa, independente e influente república. Pensei que Nem heróis, nem vilões pudesse estar firmemente entre Maldita guerra e Genocídio americano. Mas qual não foi minha surpresa ao ver que a orelha é assinada pelo próprio Francisco Doratioto – alguém que eu cheguei a fantasiar resenhando o Nem heróis para o Amálgama, vejam só os senhores.
Moacir Assunção não vê o Brasil como o lado do bem e o Paraguai como o lado do mal. Como aliás não viu Doratioto. As coisas foram mais complicadas. Para Assunção, das quatro nações diretamente envolvidas no conflito, apenas a Argentina pode-se dizer ter saído vencedora. Mas fica óbvio, na leitura de seu livro, que, na questão menor-dos-males (e essa foi a questão), o Brasil e seus aliados vencem o Paraguai. Embora o autor não seja tão enfático nessa conclusão quanto o foi Doratioto.
Enquanto as simpatias da imprensa e autoridades dos Estados Unidos eram quase que exclusivamente dirigidas ao Paraguai de López, e a república do norte por pouco não entrou em guerra com o império do sul, o ministro (embaixador) dos Estados Unidos no Brasil durante a Guerra do Paraguai, Watson Webb, escreveu a seu chefe, o secretário de Estado William Seward, afirmando que “somente o ignorante e preconceituoso pode justificar sua simpatia para com López sob a alegação de que ele chama o Paraguai de república.” De fato. O mandatário estava mais para péssimo rei, e seu país estava mais para um especialmente desolador latifúndio, com traços que, como pode-se inferir a partir de algumas passagens do Maldita guerra, prefiguraram as piores ditaduras do século 20. O império brasileiro, em teoria um local com menos liberdade que a república paraguaia, tinha muito mais liberdade política e de imprensa que a nação vizinha. Leitores em dúvida, favor recorrer às páginas 302, 305 e 319 do livro de Assunção, que lidam com a vivacidade da imprensa brasileira e paraguaia durante a guerra.
Nem heróis, nem vilões é organizado por subtemas, sem preocupação com a cronologia dos eventos. O leitor curtirá melhor suas páginas se antes já tiver passado por uma história geral da Guerra do Paraguai – e quem já não passou, não é verdade? O capítulo sobre os antecedentes da guerra, que normalmente viria em primeiro, é aqui apenas o décimo. O primeiro é sobre os termos depreciativos que paraguaios usavam para se referir a brasileiros, brasileiros a paraguaios, argentinos a paraguaios, etc. Outro capítulo, o quarto, trata da postura pró-Paraguai dos EUA. Outro, o décimo quarto, examina brevemente cada uma das principais batalhas do conflito.
O grande diferencial do trabalho de Moacir Assunção, em comparação a outros bons livros sobre a guerra, é estudar com igual cuidado o pós-guerra e fazer uma ponte entre o passado e a atualidade. O autor, por sinal, é jornalista antes de historiador. Temos, por exemplo, valiosas páginas sobre a guerra fria, por assim dizer, que opôs, no interior do próprio Paraguai, os ex-aliados Brasil e Argentina; após a queda de López, os dois maiores países da América do Sul passaram a uma disputa por hegemonia no país guarani, através das correntes colorada (Brasil) e liberal (Argentina). O ditador Stroessner (reinou de 1954 a 1989) foi apoiado pelo Brasil, o que rendeu aos governantes daqui excelentes acordos econômicos.
Outras valiosas páginas analisam a situação dos agricultores “brasiguaios”, a esmagadora maioria dos quais é de pequenos proprietários de terra que contribuem positivamente para o saldo comercial do país, mas que, ainda assim, sofrem constantes hostilidades de políticos populistas. Ao mesmo tempo, a figura de López continua a ser reverenciada, não apenas em seu país, como também entre líderes de países vizinhos, como Cristina Kirchner. Moacir Assunção fez inúmeras viagens ao Paraguai profundo ao longo dos anos, e sua opinião de que alguns fantasmas do século 19 continuam entre nós merece ser ouvida com atenção.
::: Nem heróis, nem vilões :::
::: Moacir Assunção :::
::: Record, 2012, 462 páginas :::
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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