O desfecho do romance de Nick Laird guarda a dimensão das tragédias cotidianas
Na caixa de comentários da Copa de Literatura Brasileira, a mais famosa contenda literária virtual tupiniquim, o escritor e tradutor Paulo Polzonoff, certa vez, emitiu uma provocativa opinião acerca do status da atual cena literária brasileira: “Literatura brasileira, em geral, não é livro que se queira ler. É livro que se pretende estudar, analisar, discutir. Aquilo que parece um romance é, na verdade, um objeto de estudo — um livro praticamente didático. Logo, convém mesmo deixar a literatura brasileira bem separadinha daqueles livros que a gente compra porque quer lê-los à noite, antes de dormir, ou na praia. Minha sugestão é que o mercado editorial comece a lançar promoções do tipo ‘Compre este livro e ganhe uma tese’. Pode dar certo.”
De fato, hoje, em nosso país, não há escritor (ou candidato a escritor) que deseje, antes de mais nada, contar uma boa história e/ou entreter o seu leitor; todos parecem muito mais preocupados em revolucionar a literatura, em soar genial, em ser a nova Clarice Lispector ou o novo Guimarães Rosa. Quando se pega em mãos o mais recente lançamento de algum luminar da nova literatura brasileira, o que se espera, via de regra, é encontrar, ali, um texto críptico, denso, com foco narrativo inusitado, personagens fluidas, estrutura narrativa altamente não linear e subversão da linguagem, tudo para compor uma obra que, em suas linhas e entrelinhas, estabeleça intertextualidades múltiplas com temas tão diversos quanto psicanálise jungiana, teoria dos jogos, arte bizantina, computação em nuvem e antigas lendas japonesas (de preferência em um arcabouço meta-metaficcional). Isso, é óbvio, trata-se de uma generalização (e talvez um exagero), mas a ideia central da questão deve ter ficado suficientemente clara.
Por esse motivo, para quem se encontra imerso nesse cenário, chega a ser chocante a leitura de O erro de Glover, do irlandês Nick Laird. Esse livro, o primeiro do autor a ser publicado no Brasil, é um romance que, como muito bem definiu um jornalista do Chicago Tribune, “é o tipo de livro que Jane Austen teria escrito se fosse do sexo masculino e tivesse acesso à internet”. A narrativa (linear, cronológica, realista, em terceira pessoa) gira em torno de um triângulo amoroso básico cujos vértices são os seguintes: David Pinner, 33 anos, um cínico professor secundarista de Londres, que, entre atividades como fumar maconha e ver pornografia na internet, despende algum tempo na atualização do The Damp Review, seu ácido blog sobre arte, cinema, livros, programas de TV, peças, restaurantes, comida delivery e o que mais lhe venha à mente; James Glover, o fortão e ingênuo barman de 23 anos de idade com quem David divide o apartamento; e Ruth Marks, uma norte-americana de 45 anos, antiga professora de David no curso de artes da Goldsmiths College.
Quando Ruth retorna a Londres para participar de uma exposição de artistas plásticas britânicas e americanas, David rapidamente se reaproxima dela. Porém, as intenções “românticas” (e, aqui, as aspas são imensas, porque David não tem nada de romântico) começam a malograr quando ela, pouco a pouco, vem a se encantar pela simplicidade quase tosca de Glover, ele que é, nas palavras da própria Ruth, um “doce”, “como algo anterior à TV em cores”. A partir daí, a trama segue acompanhando as investidas e tramoias de David, que faz de tudo para minar a relação do improvável casalzinho em formação. Com efeito, O erro de Glover pode ser considerado como uma releitura do drama de Otelo, recontado do ponto de vista de Iago-David, disposto a pequenas e grandes trapaças para separar Desdêmona-Ruth do seu rival Otelo-Glover.
O ponto alto do livro, certamente, é a ambiguidade de David Pinner. Ou melhor: as ambiguidades de David Pinner. Em primeiro lugar, embora suas atitudes sejam, sem dúvida alguma, guiadas por uma mistura de inveja com ciúmes de alto potencial explosivo, David age de modo desapaixonado, um tanto mecânico, quase entediado. Além disso, apesar de se utilizar de expedientes antiéticos para atingir seus objetivos (pequenos furtos, fraudes, mentiras) e, por essas e outras, configurar-se como um verdadeiro anti-herói, sua ranzinzice precoce e sua ironia rascante o tornam uma personagem cativante, sendo quase impossível para o leitor não se colocar ao seu lado e até mesmo torcer por ele (para usar uma terminologia bem simplória). Por fim, mesmo que nada neste sentido seja explicitado, o texto de Nick Laird deixa em aberto a possibilidade de que David sinta-se atraído não apenas por Ruth, mas também por Glover. Desde o dia em que se conheceram, no bar onde Glover trabalha como atendente, David “gostou dele – James Moore Glover – na hora”. Quando começaram a dividir o apartamento, a convivência proporcionou a David ainda mais acentuadas oportunidades de detestar, admirar e invejar o colega, pelas mais diversas razões: seu corpo atlético, o jeito metódico e, ao mesmo tempo, despojado, sua habilidade com serviços tipicamente masculinos como instalar tomadas, trocar fusíveis, consertar canos. A seguinte passagem ilustra bem os sentimentos de David em relação a Glover (e serve também para dar uma amostra do estilo límpido e agudo da prosa de Nick Laird):
Era verdade: Glover era bonito. Seu corpo era todo tendões e músculos, e aquele físico combinava perfeitamente com ele. David não conseguia imaginar a versão patinho feio, gorda e com espinha, embora sem dúvida Glover agora fosse um cisne. Ele mesmo também foi um patinho feio, depois se transformou num pinguim. Ou num Dodô. Um simplório. Nunca vira Glover deixar alguma coisa cair, ou se atrapalhar, ou quebrar nada, e essa capacidade podia ser vista em suas mãos: eram grandes, graciosas, ligeiramente venosas. Seus movimentos tinham uma tranquilidade, e como ele não era fisicamente artificial, também não parecia assim pessoalmente. Seu corpo era sincero, mostrava seu funcionamento e o deixava interagir ‘naturalmente’ com os outros, pensava David. Já aos seus próprios mecanismos faltava transparência. Seu corpo aumentava como o de um Buda e começava a esconder seus mistérios, e ele devia se contentar com a assexualidade do Buda, o sorriso falso do Buda.
Glover é, para David, uma espécie de ideal às avessas (mas que nem por isso deixa de ser um ideal): o barman possui uma série de características que, racionalmente, David repudia (a jovialidade inconsequente, o bom-mocismo, uma certa ausência de verniz intelectual), mas que, intimamente, gostaria de ter. É essa fome irracional pelas características do outro que leva David a canibalizá-lo (metaforicamente, é claro). E o primeiro passo para o canibalismo é o sacrifício; por isso, David, através de seus ardis, aproveitando-se das menores oportunidades e dos erros de Glover e Ruth no relacionamento (assim como o Iago shakespeariano), sacrifica as esperanças do rapaz e também, por consequência, a sua pureza de rapaz interiorano.
Todavia, em uma narrativa que começa em tom de roteiro de comédia romântica, o conflito jamais terminará em asfixia e suicídio: o desfecho guarda a dimensão das tragédias cotidianas, algo mais amargo do que dilacerante, mais triste do que atroz, bem de acordo com o tal estilo “Jane Austen de calças”. Aliás, em comum com a autora de Razão e Sensibilidade, podemos destacar, na prosa de Nick Laird, uma preocupação com a apreensão da psique das personagens, o intuito de retratar um determinado estrato da sociedade (lá, a aristocracia rural britânica; aqui, a classe média urbanoide e intelectulizada de Londres) e o emprego da ironia para desvelar a hipocrisia social, o que é feito, muitas vezes, através do recorrente uso do discurso indireto livre, no qual a voz da personagem se mistura à do narrador.
Aliando-se a tais ingredientes, temos ainda o texto bem cuidado de Laird, que também é poeta, autor de livros como o premiado To a fault, mas que sabe muito bem separar sua prosa de sua poesia, ou seja, consegue escrever uma narrativa longa com elegância, sem resvalar para o terreno pantanoso da prosa poética. No entanto, Laird também não priva o leitor de momentos de inusitada beleza plástica e de certas miradas essencialmente poéticas, contrabalançando-as sempre com doses de cinismo, como exemplifica o seguinte trecho, no qual os protagonistas passeiam no London Eye em um final de tarde:
Uma gaivota, iluminada angelicamente de baixo pela roda, pairou em uma corrente ascendente não muito longe da cabine. David acompanhou o olhar dela para o rio achatado, os prédios espalhados e o caos de luzes. Havia tantos lugares – e todos cintilavam, derramavam-se e bruxuleavam na noite bruta. A vida moderna é a cidade: a modernidade atomizou a sociedade. O humano agora podia se mover em movimento browniniano, não em um cardume nem em bando, grupo ou rebanho, não em uma corrente. Nós não nos dedicamos a empreendimentos familiares. Não trabalhamos a terra do pai de nosso pai. Aleatória e repetidamente, colidimos com as pessoas e giramos para todo lado como partículas. Como é complicado formar um laço, apegar-se. Nós perdemos o nosso substantivo coletivo. Ele registrou os pensamentos no Moleskine para postar mais tarde no blog.
O erro de Glover é, portanto, o tipo de livro que a literatura brasileira contemporânea “que se leva a sério” dificilmente pariria (ou que, pelo menos, seria visto com muita desconfiança por conta de sua visível ausência de grandes ambições). Mesmo assim – ou talvez exatamente por essa razão –, vale a pena a leitura desse “Otelo despretensioso”, que nos traz o saudável lembrete de que nem só de fausto e grandiloquência vive a literatura.
::: O erro de Glover :::
::: Nick Laird (trad. Maira Parula) :::
::: Rocco, 2012, 272 páginas :::
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Rafael Bán Jacobsen
Físico da UFRGS e escritor. Seu romance Uma leve simetria (2009) foi finalista do Prêmio Açorianos.
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