Na contramaré das análises, o povo continua nas ruas.

fora-feliciano

Sem dúvida, no fundo de nós existem exigências e protestos. Mas, não sendo
ratificadas pelos outros, aniquilam-se, deixam-nos com sentimento de frustração e
com ‘hematomas na alma’.
Jean Paul Sartre – “Eleições, armadilhas para otários”

Talvez até mais do que propriamente gente na rua, as duas últimas semanas trouxeram de roldão junto a si múltiplas inundações. A de informação, sem dúvida, é a maior delas, mas não ficamos por aí, derrocamos até mesmo diante de nós mesmos e nossas convicções anteriores. E isso aconteceu diante de uma frase em um cartaz, da imagem do povo na rua, da declaração de um político e até mesmo de uma inundação dentro de si mesmo, quando ouvimos – lá de dentro – alguém muito semelhante a nós mesmos dizer o que devemos fazer, o que procurar pensar, a quem ou o quê se referir e, principalmente, a quem se dirigir. Nesse último aspecto, parece não restar dúvida que as redes sociais desempenharam um papel de extrema relevância, convertendo-se na pólis das palavras e das ideias enquanto que as ruas ou nos receberam ou invadiram a nossa própria revelia. Há frestas nas portas das nossas ideias e percepções que estão dando vazão a muito gás, de um ou outro tipo, de dentro para fora ou então de fora para dentro.

Mas o que aconteceu para que ficássemos assim? Depois desses dias parece até mais fácil encontrar respostas, o problema (ou seria a solução?) é que estamos nos habituando finalmente a responder perguntas com outras perguntas. É uma sublevação intelectual que muitos se permitem fazer a si mesmos e outros tantos parecem convencidos de fazer com os outros. É como ir à feira discutir o preço do peixe. Ou no Facebook discutir qualquer coisa. A rede enreda mesmo e às vezes uma simples frase degringola toda uma linha de pensamento. São ruínas virtuais, muros pichados de hashtags confusas e bombas de efeito moral à direita e à esquerda. E como é que vamos sair disso? Pois calma, recém estamos entrando nisso. Qual a pressa, afinal?

Durante os últimos dias, atire a primeira pedra quem não sucumbiu ao torrent de leituras. À beira do esgotamento, por um instante deixei de pensar na forma de argumentos. Fui invadido por frases. Logo eu, que sou prolixo por natureza. E em seguida as frases me serviram de arapucas que passei aplicar aos demais. Acho que assim é que se inventou a lógica, nem quero saber quando foi. As frases me atravessaram os pensamentos. Levantaram lembranças e experiências insepultas. Tramaram guerras contra a insolvência coletiva, onde encontram forma e espelho. As frases meteram fora as velhas metáforas e foram buscar no anonimato da adolescência dos outros – os que estão diante do choque – outras palavras. E enfim renasceram, dentre o imenso brainstorming coletivo que “a crise” gerou.

Por falar nela, penso eu que “a crise” não é mais de um indivíduo contra a sociedade ou o Estado. A crise se dá do indivíduo para si mesmo. E ai de quem procurar referências oficiais no estado de coisas. Qual o jornal certo para ler? Qual a revista? Blog? Twitter para seguir? Onde se informar no mar de contrafogos? A busca, entretanto, não é vã. Não se trata da dispersão policial, mas da dispersão da autoridade, do círculo de sabedores. Prova disso pode-se encontrar na revista Época, que depois das ruas já conflagradas, reuniu 10 especialistas/universitários para explicar o que estava acontecendo, quando nunca se soube se eles previram que tudo isso pudesse acontecer. Isso não aconteceria se Jean Baudrillard estivesse dando aulas por aqui ou se tivéssemos prestado atenção quando ele disse que já faz muito tempo que não estamos no drama da alienação, mas no êxtase da comunicação. Aqueles que ficaram em seus anos de formação envoltos com os próprios botões perderam a vez para quem acordou junto com o povo ou conhece desde sempre seus passos. A bússola teórica desmagnetizou-se de repente. É hora do povo correr. Todo ele. Mas antes de correr para assistir o povo correndo fartamente na TV e, fatalmente, nas manifestações, seria bem legal ver o que o funk periférico de MC Garden diz (e como diz) a respeito não do “corre”, mas da “pernada“.

Fala-se por toda a parte uma séria de coisas que podem ser medidas pela metalinguagem. Entender o “inverno brasileiro” a partir de um referencial enciclopédico ou da voluptuosa mídia, portanto, é uma cilada. Mas quem é o titereiro, afinal? Quem é a fonte de tudo?

Tenho uma informação secreta: a fonte somos nós, conforme diz nossa própria Constituição, tão cheia de abstrações republicanas aterradoras como “o poder emana do povo”, “soberania”, “cidadania”, “dignidade”…

Na contramaré das análises, o povo continua nas ruas. Ele também está viciado em frases e protestos pessoais. A culpa só pode ser da internet, que recanalizou os fluxos de informação inexoravelmente. Quantas coisas interessantes o povo diz nos cartazes, assim como na rede, desempertigados! Confesso: isso me contaminou, e muito. É quase uma possessão, como se de repente tivéssemos lembrado que podíamos pensar sem recorrer a ninguém, mas ao próprio passado, a um tipo de estrutura do self que só mesmo esse imenso suspiro social – como definiu Bauman – poderia repercutir socialmente. E isso só é possível mesmo por causa do diálogo – que dispomos cada vez mais por meios virtuais, já que as ruas estão lotadas de carros (como parece ser o desejo do governo e da Petrobrás) e as cidades tomadas por interesses comerciais, assim como pelo vandalismo gerado através da violência social.

Mas será que queremos, de fato, outras cidades? Outras configurações ético-urbano-ambientais ou apenas aguardamos as soluções mercadológicas que nos reduzem a consumidores e reprodutores de lixo? Para onde nos levarão os ônibus com passe-livre? Ao passado, na qual uma arquitetura faraônica ergueu monumentos exclusivos dos milionários nos últimos anos e às favelas, cuja mobilidade se dá através de encanamentos e engarrafamentos? Ou à acrópole do futuro, imagem da utopia, planificada na realidade e na justiça desejada pela pólis?

Enquanto as respostas para essas questões estiverem nas mãos de instituições como a FIFA, é provável que não precisemos sequer esgarçar a imaginação. O óbvio está aí. Tente pesquisar a hashtag #forafifa para perceber o que estou falando. Ou então consulte os excelentes gráficos do Fabio Malini no LABIC, que revelam a dinâmica dos hubs e alicerces da informação conectada. Evite o PIG e o contra-PIG para esse efeito, contudo.

Análises sobram. Reflexões. Suspiros. A fartar. Penso que, basicamente, há duas formas de encarar os fatos: ou fato a fato, ou globalmente. Nesse último caso, poucos cientistas políticos foram tão claros em sua observação quanto a jornalista Eliane Brum que, no site de Época, cotejou o incotejável. Não falo da política por ela mesma, mas de seus efeitos sobre a vida das pessoas. No primeiro, penso no professor Juremir Machado da Silva que, no Correio do Povo, diariamente escrutina o inescrutinável: as mazelas que “o poder” atravanca e engrena na sociedade. São apenas dicas, claro. E se são gaúchos, como eu, isso é mera coincidência, embora seja um alívio contar com sua presença entre nós, nesse tempo que, pelo menos no tocante à informação, prescinde-se de fronteiras geográficas. Claro que há outras análises especialmente competentes e aqui mesmo, no Amálgama, está o artigo de André Egg, em minha opinião o primeiro legível sobre “o assunto”, isso por sua honestidade. Até então, o gás nos encobria muito fortemente.

Falei em geografia e é com isso que pretendo cessar. Desconsidere-se a brincadeira do parágrafo anterior e peço que tentem lembrar as cidades que foram tocadas por esse momento tão peculiar, o chamado “movimento”. As imagens me mostraram gente no Acre, no Maranhão, no Pará, no Rio Grande do Sul, etc. São Paulo e Rio de Janeiro nem se fale. Todo o país, enfim. Trata-se de um momento de silêncio. Quem vive de observar é que está sendo observado. A Anistia Internacional montou um mapa (impossível de achar agora no torrent) com as manifestações. Era mais ou menos como uma panela de pipoca. É a imagem que guardei.

Onde chegamos é uma pergunta covarde nesse momento. Será melhor lembrar de onde estávamos. Do que estávamos edificando. Se continuaremos estes edifícios, os reais e os simbólicos também. O que pensamos em continuar fazendo e se continuaremos vivendo como números da urbe ou habitantes da pólis. Se tocaremos, com esse movimento, a vida do seringueiro do Acre, do ribeirinho do Amazonas, do índio do Xingu, dos tipos regionais sobreviventes à massificação cultural e do povo resistente à idiotização educacional e institucional. Se faremos da tela do computador uma janela ou um espelho. Se continuaremos na tentativa perpétua de reconexão ao tempo histórico que nos foi furtado pela promessa de um futuro perpetuamente adiado ou, como (sentenciou?) Sartre, o primeiro inspirador desse texto, permaneceremos não na nuvem de tags, mas na tormenta do mútuo desconhecimento.

Lúcio Carvalho

Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).

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