Downhill no Monte Olimpo

por Sérgio Tavares (23/07/2013)

Resenha de "Ithaca Road", de Paulo Scott

"Ithaca Road", de Paulo Scott

“Ithaca Road”, de Paulo Scott

No capítulo dezesseis de O Espírito do Tempo (no Brasil, separado em dois volumes, cujo primeiro, onde se encontra a divisão citada, é subintitulado Cultura de massas no século XX: Neurose), o sociólogo francês Edgar Morin analisa as mudanças da configuração cultural da sociedade contemporânea ocidental tendo como eixo a juventude nos anos sessenta. Segundo o autor, invalidando um modelo arcaico onde a passagem para o estado adulto assegura a plena morte da infância e suas implicações, o jovem do século vinte descobre um acesso que abranda essa passagem, não sendo esta de fato uma ruptura e sim um prosseguimento. É uma juventude que não carece reprisar a “sabedoria dos velhos” para granjear sua formação como indivíduo, desinteressada em encadear vínculos com o pais, pois representam o mundo dos coroas, a “velhice agora rejeitada, fora do curso real da vida”. Há um movimento de “degerontocratização” (debelar-se contra o predomínio dos velhos na sociedade), aponta Morin, que acarreta uma promoção social, a autoimposição de responsabilidades, aos trinta anos. Nesse novo quadro, onde os pais são apagados do álbum de fotografia, os ídolos passam a ser outros. James Dean é o super-herói da adolescência, encarando a fúria de viver e a rebelião sem causa, o mergulho na vida sem medida e anteparo, a fascinação pelo risco. Um tipo de inspiração embalado pelo rock’n roll e o ye-ye-ye. Uma associação de valores que, recorrendo à mitologia grega, o sociólogo chama de “Prometeus aprisionado em Ganimedes”, analogia para poder e regozijo; ou compromisso e diversão.

O século vinte e um não só veio aprofundar a teoria de Morin como, por conta de saltos titânicos da tecnologia, galvanizar a supremacia da juventude em outro termo cunhado pelo autor, “o Olimpo dos menores de vinte anos”. Empresas criadas e comandadas por CEOs imberbes, vide Google, Facebook e Microsoft, compassam a motricidade dos mercados de ações, gerando um lucro anual maior que o PIB de diversos países. A internet é uma realidade paralela que, cada vez com mais empenho, infiltra suas chances irrestritas no mundo real, regrado por superação de etapas, tornando, de um clique a outro, um blogueiro desconhecido num fenômeno de vendas, bestseller global curtido por milhões de seguidores. Dois garotos separados por continentes, que interagem via Skype, criam um aplicativo para celular e ficam milionários. Redes sociais são instrumentos capazes de mobilizar uma revolução, derrubar um governo. O virtual se impõe tal qual uma fuga para a realidade. Todavia, como reage essa mesma juventude diante de dilemas corriqueiros, encurralada por circunstâncias onde não funcionam o anonimato de seus avatares, pressionada por questões cujas respostas ultrapassam os cento e quarenta caracteres predeterminados?

Em Ithaca Road, o escritor gaúcho Paulo Scott compõe um retrato admirável da Geração Z, jovens que transitam sem atrito entre o real e o virtual, cambiando posto e identidade, assumindo grandes responsabilidades para as quais não estão preparados sem se importarem muito, sem receio da finitude. O livro, que integra a série Amores Expressos, onde um escritor brasileiro é levado a passar uma temporada numa capital mundial e de lá angariar inspirações para escrever um romance, tem como pano de fundo Sydney, cidade mais populosa da Austrália, cenário que conflui para ambientar essa proporção de desprendimento, dada sua atmosfera de longas férias de verão, com pistas de skate, bares badalados e praias exuberantes, “em cuja areia boa parte dos jovens bem-nascidos ao redor do mundo (jovens que conseguem tempo e dinheiro pra manter frequência nas praias e os esbanjamento dos esportes radicais) sonha em enterrar os pés e aproveitar”.

Narelle, uma moça neozelandesa, descendente dos maori, cabe bem a esse status. Refém da promessa de terminar uma faculdade, trabalha como caçadora de estampas que vende para estilistas de Nova Iorque, embora encontre verdadeiro prazer flanando sobre a tábua de um skate. A razão da sua estadia em terreno australiano, entretanto, é forçada e não tem qualquer intenção de divertimento. Ela é chamada às pressas para tomar a condução do Paddington Sour, bar-restaurante de Bernard, o irmão mais velho que desapareceu durante um processo de falência cujo espólio envolve o apartamento em Ithaca Road, onde se acomoda. E aqui, ainda na primeira dúzia de páginas, já está a grande sacada do livro. Apesar de optar por uma narrativa ágil e concisa, marcada pelos contornos e nuances da paisagem e pelo verniz dos personagens, Scott, assim como Morin, toma emprestado passagens da mitologia grega para, inspiradamente, dar densidade à trama e estimular interpretações. Narelle é uma espécie de Penélope contemporânea, mulher que, isolada na ilha de Ítaca, aguarda fielmente o retorno do marido Ulisses da Guerra de Troia, jornada que serviu de tema para Odisseia, de Homero. Narelle igualmente espera, aflita e sem manual de instrução, a volta de Bernard revivendo afetos a contragosto e, de mesmo modo, imantando problemas que orbitam à sua volta, cuja força gravitacional decorre da ausência do irmão. Penélope é pressionada pelo pai Ícaro a se casar com outro; Narelle é coagida pelos funcionários do bar-restaurante e, sobretudo, pelo síndico de falência a quitar as dívidas que parecem incontornáveis.

Repetindo a fórmula de seu romance anterior, Habitante irreal, que conquistou o Prêmio Fundação Biblioteca Nacional 2012, Scott aproxima sua prosa da fronteira entre ensaio e ficção, cativando uma análise sociopolítica por meio de seus personagens e da circunstância que os abraça. A desilusão do estudante Paulo com os rumos tomados pela esquerda petista brasileira dá lugar à crise econômica de 2008; ano espertamente sugerido, no livro, por conta da morte de um famoso ator australiano. O clima de instabilidade financeira é bem incorporado à sensação de alheamento da protagonista claudicando em território estrangeiro de burocratas e advogados, bem como utilizado para descortinar falhas no sistema público australiano, tensões raciais, bairrismo, insinuações de xenofobia e, resgatando um momento simbólico, a política de repressão contra a população aborígene. Trabalhar com fatos mostra o cuidado e a dedicação de Scott para com a história, refletindo tanto na estrutura quanto no polimento das frases que, além de ressaltar a maturidade do escritor, faz da obra uma leitura instigante. A lamentar apenas o acúmulo de referências locais que acaba por trazer um certo didatismo, comprometendo também trechos de diálogos com frases como “Você está parecendo comissária-chefe de cabine da Qantas Linhas Aéreas em final de carreira” e “Eu era uma cacatua cheia de palavras de ordem e convicções”.

Essa última frase é dita por Narelle numa conversa com Justin, um pernóstico corretor imobiliário a quem pede ajuda para desvendar pistas que podem revelar o paradeiro do irmão, decisão condenada por Trixie, produtora executiva de uma galeria de artes que funciona como sua melhor amiga, ainda que esse cargo tenha mais sentido para ela do que para Narelle que, em meio ao turbilhão de sentimentos, não consegue se apegar a nenhum. Jörg, com quem cultiva algo mais parecido com um relacionamento, é uma figura distante, comprometida com a profissão de jornalista investigativo. Ele está no Brasil, apurando uma história de crimes relacionados à extração de minério de ferro. Os dois pactuam declarações de afeto, ainda que a moça não veja problema em descumprir esse acordo com transas casuais. De fato, Narelle expõe suas emoções através da psoríase, doença que provoca a aspereza e sensibilidade exagerada da pele, em períodos de crise. Ela está encerrada em si, confinada nos limites insulares do apartamento em Ithaca Road, no olhar desterrado dentro de uma ilha. A guinada de rumo acontece no encontro com Anna, uma jovem com déficit de socialização, que busca em Narelle uma ponte para se reaproximar do pai, um pintor famoso. Anna se comunica melhor com o mundo por meio de desenhos; Narelle através de e-mails, SMS e Skype. Scott propõe um contraponto interessante ao sobrepor esses dois tipos de alienações. “Anna me fez bem. Temos coisas em comum. Acho que a única grande diferença é que estou mais preocupada em partir, e ela, ao modo dela, em chegar”, resume a protagonista.

Nesse ponto, o romance dá voz a uma personagem incidental que incorpora um sentido subliminar ao enredo. Alethea, alusão a Aléthea, significação de verdade e realidade para os gregos antigos, é uma escritora de dezoito anos, oriunda de um blog, que lança um romance fantasioso cultuado por uma legião de seguidores, cujo mote é a criação de uma máquina sensorial para adultos que reproduz sensações plenas, inclusive as sexuais, irregularmente acessada por crianças que, em sua grande maioria, passam a se sentir mais seguras e amadurecidas. Ao contar essa história, mesmo que breve, dentro da história principal, o livro volta a refletir sobre os dilemas da Geração Z, uma juventude que ascende e desmorona ídolos em questão de dias sem se culpar por isso, que agrega “uma afirmação de valores privados que corresponde a seu individualismo, e a aventura imaginária, que mantém, sem saciá-la, sua necessidade de aventura”, recorrendo novamente à análise de Morin. É como se a máquina imaginada por Alethea já existisse, de certo modo, transformando o amor num sentimento volátil que encontra, em planos virtuais, saídas para a carnalidade.

O reencontro de Anna e Narelle é ponto de partida para uma viagem, onde esse amor que se evapora, uma intenção de amor, desencadeará uma relação incomum e delicada. Anna também será a chave para Narelle abrir portas no labirinto arquitetado pela ausência do irmão e reajustar seu percurso, encarando um trauma do passado. Na relação entre Austrália e Brasil, inventada em Ithaca Road, Narelle encontra estabilidade e Scott, um livro notável.

::: Ithaca Road :::
::: Paulo Scott :::
::: Companhia das Letras, 2013, 112 páginas :::

Sérgio Tavares

Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.

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