Um personagem auspicioso foi derrubado pela necessidade de preenchimento de cenas
Eu devia ter imaginado, mas acho que não quis acreditar que transformariam o excelente filme de ficção científica que fora Planeta dos Macacos – A Origem num dramalhão simiesco como se viu em Planeta dos Macacos – O Confronto. Na verdade, achei que não conseguiriam tal feito, porque o argumento todo já estava pronto e a presença magnética de Andy Serkis interpretando o líder Caesar deveria indubitavelmente garantir algumas horas de confortável alienação mundana.
Não foi o que me aconteceu. Pelo contrário, a poltrona do cinema parecia querer me enxotar dali o tempo todo. Principalmente quando os olhares dos macacos pareciam querer inspirar comoção e sentimentos evoluídos. Por ter acreditado que o roteiro poderia resolver satisfatoriamente o embretamento em que colocou o líder Caesar e seus comandados, resisti. Mas, infelizmente, não foi o que se confirmou. Trata-se, talvez, de uma continuação que por sua vez também não resistirá ao tempo. Talvez, nem à temporada de exibição.
Resvalar na pieguice parece às vezes ser uma regra de ouro das continuações. Lamentável que um dos personagens mais interessantes do cinema de ficção científica dos últimos anos, o símio Caesar, tenha sido, no Confronto, reduzido de líder revolucionário a um reles macaco chorão. Não será a primeira vez que um personagem auspicioso é derrubado de seu possível engrandecimento pela necessidade de preenchimento de cenas. Eu pensei que Caesar resistiria a isso tudo, mas a concepção lacrimosa em que se investiu na continuação parece que desandou com a “mística” do antropoide.
Assim, dessa forma melancólica, saí do cinema com a nítida impressão de tempo perdido e dinheiro mal empregado. Não que eu estivesse esperando exatamente pela reedição de um clássico do cinema, mas é que o reboot da Origem foi um filme surpreendente, a começar pela expressividade estupenda que o ator Andy Serkis emprestou a Caesar e, a seguir, por um roteiro impactante e repleto de dilemas morais comuns aos parentes ditos mais evoluídos, o que colaborou substancialmente para o engajamento dos espectadores. Pelo menos desses que usam moeda para obter as coisas.
Seja pelo início expresso, no qual se explica a propagação de um vírus que dizimou meia humanidade ou mais e colocou o mundo de ponta a cabeça, ou pelo desenvolvimento arrastado, o filme não trás descobertas, revelações, insights ou surpresas. E aquilo que seria razoável supor, de que os macacos evoluiriam culturalmente a partir da aquisição de habilidades inteligentes, não acontece. Eles brutalizam-se, na verdade. E o filme todo caminha nessa direção, colocando em oposição o que se poderia chamar de duas lideranças proto-políticas, antes indissociáveis, o líder Caesar e o truculento Koba, animado pelo ator Tony Kebbell.
Enquanto um haveria colecionado doces lembranças de sua criação por um humano afetivo, conforme o exibido no filme anterior, o outro fora exposto a toda sorte de experimentos e violências, razão pela qual não consegue confiar nestes nem por um instante. O momento em que eles discutem e tomam caminhos distintos na relação com os humanos é provavelmente o ponto alto do filme. Se há uma cena impactante na sequência, é esta em que Koba mostra ao então amigo e líder as cicatrizes que os amistosos humanos cravaram em sua pele e explicita as razões de sua desconfiança para com aqueles.
Apesar de que a violência de Koba depois disso deslanche descontroladamente, seu gesto acaba por querer demonstrar que seria inútil empreender contra os mais poderosos e que a revolta acaba por voltar-se contra os próprios revoltados. Esse argumento, entretanto, não salva o herói macaco Caesar de ceder totalmente à condição de espécie subalterna, mesmo sendo ele o exemplo máximo de sua própria espécie. O impasse subjacente à trama, portanto, equivale ao que seriam eleições na floresta, nas quais nem sempre vence o com mais razões e nem perde o menos capacitado. E o final, sangrento e explosivo, não deixa nada a desejar a outros filmes com seres energúmenos, animais ou não. A bem da verdade, se o filme fosse reclassificado de “ficção científica” para “ação” ou “aventura” pelo menos um pouco de justiça seria feita ao gênero original da série.
Lúcio Carvalho
Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).
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