A miséria moral e material do comunismo é consequência natural de uma ideologia de “superação” do capitalismo
1.
A obra de Robert Service, especialista em história russa de Oxford, foi publicada inicialmente pela editora de Harvard em 2007. Ela se insere no contexto de outros grandes estudos devastadores sobre a mitologia comunista publicados recentemente em língua inglesa – livros de Archie Brown, Richard Pipes, David Priestland etc. Camaradas talvez nem seja o melhor de todos, mas é sem dúvida uma publicação bem vinda neste nosso quarto mundo intelectual onde Eric Hobsbawm é tido como o maior historiador do século 20, e onde anticomunista é termo de insulto.
O principal mérito de Service é não deixar que a miséria do comunismo tenha a menor chance de ser enquadrada como um acidente ou um detalhe histórico, ou ainda uma deturpação do caminho inicial traçado pelos pais fundadores da ideologia. Errado, diz o autor; qualquer caminho percorrido que não fuja da lógica estabelecida pelos teóricos do comunismo inevitavelmente leva ao atoleiro moral e material.
Esse ponto fica claro no livro através de dois enfoques, que vão se desenvolvendo concomitantemente ao longo dos quarenta capítulos. Primeiro, a extrema semelhança entre as sociedades comunistas, sejam elas Cuba ou Afeganistão, China ou Albânia, Romênia ou Angola. Segundo, como a construção dessas sociedades repressivas deve muito ao legado soviético e marxista.
No que, apesar de diferenças regionais, se constitui a ordem comunista? O que nunca deixou de ser uma característica fundamental da sociedade comunista ao longo dos tempos, dos sovietes aos Castros? “Nenhum Estado comunista”, escreve Service, “durou muito tempo sem uma rede de prisões e campos de trabalho forçado para dissidentes políticos”. Isso é para começo de conversa.
Outro ponto do comunismo é que os paraísos terrestres construídos pelos seus mestres sempre têm que ser isolados do resto da humanidade, caso contrário seus súditos podem escapar mental ou fisicamente para o infernal mundo não comunista. “No início”, lemos em um trecho que pode ser ampliado para o universo comunista como um todo,
os governantes da URSS e da República Popular da China presumiram que a necessidade de isolamento seria apenas temporária. Achavam que a superioridade do comunismo sobre o capitalismo logo ficaria evidente para todas as pessoas bem-intencionadas, de mente saudável, e que as exigências de precauções de segurança desapareceriam com o tempo. Isso nunca aconteceu. O confinamento de cidadãos dentro de estabelecidas fronteiras territoriais – mas também políticas e mentais – tornou-se uma política imutável em todo lugar em que houve uma revolução comunista e a implantação de um Estado de partido único.
As “fronteiras mentais” que os cativos do comunismo não poderiam ultrapassar diziam respeito inclusive à própria herança cultural de seus países. Assim, clássicos do pensamento chinês foram literalmente reduzidos a cinzas pela Guarda Vermelha, e o cânone literário russo era tolerado pelas autoridades soviéticas apenas em alguns momentos, quando se percebia que a interpretação ditada pelos comitês culturais do partido tinha alguma credibilidade na sociedade; quando não, tal cânone era tido, na melhor das hipóteses, como material descartável, inferior à produção do realismo socialista.
Outra característica da ordem comunista é a constituição de uma “nova classe” de privilegiados, na maioria dos casos de fazer inveja aos antigos monarcas e burgueses. Ainda outra característica, menos óbvia, é a existência das pessoas como propriedades do estado, não apenas quando estão em solo pátrio, mas até quando conseguiam autorização para viajar para o estrangeiro. A União Soviética exigia que seus “cidadãos” no exterior andassem em grupos com líderes escolhidos por Moscou, fizessem propaganda das realizações do regime comunista e, na volta para casa, apresentassem às autoridades relatórios com informações colhidas no estrangeiro que pudessem ser de valor para o governo.
Quando começou a fundamental homogeneidade da estrutura repressiva nos estados comunistas? Muito cedo. Escrevendo sobre o pós-guerra na parte da Europa “libertada” pelos soviéticos, Service lembra que “logo que os partidos do marxismo-leninismo firmaram as mãos nas alavancas do poder, sua escolha de estruturas, práticas e políticas governamentais foi notavelmente uniforme”.
É claro que tal uniformidade foi em grande medida uma imposição do imperialismo da União Soviética. Mas foi também uma consequência natural do marxismo-leninismo – como evidencia o eterno pertencimento a este padrão dos países comunistas europeus “rebeldes”.
2.
Como fundacionais de uma nova religião, é evidente que os textos de Marx e Engels se abririam, ao longo do século 20, a interpretações distintas. É um fato histórico que o marxismo inspirou lutas contra opressões, não apenas através de movimentos de luta organizados no terceiro mundo, mas também como inspiração para teorias e obras de arte de intelectuais ocidentais não desprezíveis.
O problema não é de inspiração para lutas justas. Elas, as inspirações, podem vir de qualquer lugar – ou mesmo, aparentemente, de lugar nenhum, simplesmente daquele instinto de repulsa moral que acomete algumas pessoas diante de opressões que saltam aos olhos. O ponto, diz Robert Service, é que não dá para levar o projeto comunista a seus fins, sem, logicamente, reincidir na instauração de sociedades de prisões e cemitérios.
Em outras palavras: o problema não é tirar uma inspiração em Marx para combater condições de trabalho desumanas em indústrias, mas em seguir Marx na “superação” do regime capitalista. Se você apenas luta pelo fim de condições de trabalho degradantes ou desigualdades de renda absurdas, mas não pelo resto do programa marxista, você não é um comunista – de fato, até aí, você pode ser inclusive um islamista ou um anarquista.
Está no projeto marxista de advento do comunismo via socialismo as raízes do mal do totalitarismo de esquerda nos séculos 20 e 21. Marx e Engels zombavam de argumentos morais e dos receios dos “socialistas utópicos”. Por outro lado, sua “ciência” (e o marxismo, como escreve o autor, “longe de basear-se na observação científica, era tão utópico quanto as suas vertentes rivais do século 19”) via a “disciplina revolucionária centralizada” como indispensável para o sucesso.
Os lucros que os negócios de Engels geravam e a liberdade de pesquisa que Marx encontrou na Inglaterra foram fundamentais para fazer avançar a divulgação de seu projeto político, que consistia exatamente em instaurar uma sociedade de governo proletário sem limites, onde
as pessoas iriam ter que se submeter à autoridade ou sofrer as consequências. Apresentavam-se despreocupadamente como os destruidores da democracia, da legalidade, do controle e dos meios de equilíbrio institucionais. Tudo teria que ser demolido antes que a reconstrução pudesse começar. As ideias de Marx e Engels continham inequivocamente, pois, as sementes da opressão e exploração dos povos sob o guante de um governo revolucionário marxista.
Lenin e Marx se diziam legítimos herdeiros do Iluminismo. Até que ponto isso é verdade – e até algum ponto não tem como não ser – é objeto de muita polêmica, na qual não vou nem ameaçar me meter nesta resenha. Inegável é que Lenin é um legítimo herdeiro de Marx. Pior: um legítimo herdeiro do lado mais violento de Marx. “A doutrina leninista tinha um cerne antilibertário”, registra Service. “Diante do obstáculo mais insignificante, a reação dos bolcheviques era recorrer ao emprego da força – e os obstáculos foram gigantescos depois da Revolução de Outubro”.
Ao contrário dos historiadores que veem em Stalin um deturpador em maior ou menor grau do leninismo (do marxismo-leninismo), Robert Service vê que “as bases do sistema soviético foram assentadas sob a liderança de Lenin e (…) permaneceram inalteradas no governo de seus sucessores até o fim da década de 1980”.
Lenin, indivíduo sem cuja tenacidade o golpe bolchevique de outubro de 1917 jamais teria ocorrido, acreditava que, com a revolução socialista, as reações contrarrevolucionárias não tardariam a aparecer. Algumas naturalmente apareceram, e Lenin se certificou para que fossem implacavelmente aniquiladas. Outras estavam “na iminência” de ocorrer, e também foram aniquiladas.
O que Stalin fez (sou eu quem o digo, mas está implícito no livro de Service) foi pegar essa “iminência” contrarrevolucionária e jogá-la mais para frente no tempo, mas sem jamais abrir mão da aniquilação imediata do “perigo”. E tanto Lenin quanto Stalin, claro, possuíam o mais absoluto desprezo pelas opiniões que divergissem daquelas do núcleo central do partido, e pelos modos de vida “parasitários” que não colaboravam para a construção do comunismo.
3.
Como era de se esperar, Camaradas dá atenção principal à estrada comunista na pátria-mãe soviética. Em segundo lugar, Service gasta mais capítulos com os países satélites da União Soviética. Nesse quesito, seu texto é uma espécie de resumo bem feito do alentado Pós-guerra de Tony Judt, o estudo definitivo sobre a destruição comunista na Europa central e oriental.
Mas Service faz muito bem na abordagem do padrão de miséria comunista para além da Europa. A começar pela China. Antes mesmo de Mao Tsé-Tung ter o poder político, o Exército Vermelho, durante a guerra civil, já era “como um estado comunista em gestação, e suas medidas repressivas seguiam a mesma lógica de Stalin”. As estradas soviética e chinesa inspirariam os construtores do “novo homem” em muitos outros países. Em alguns, como Camboja e Coreia do Norte, o nível da violência foi tão obsceno, tão constantemente lembrando apenas os piores momentos soviéticos e chineses, que muitos observadores colocaram a culpa por tais desastres mais nas figuras de seus líderes do que no comunismo em si.
No entanto, apesar da violência totalitária ser um ímã para indivíduos psicologicamente perturbados e sádicos em geral (como evidenciaram, por exemplo, alguns estudos sobre os integrantes da Schutzstaffel de Hitler), a escala que ela atinge no nazismo ou no comunismo só pode ser entendida pela força de uma ideologia que busca enquadrar e dirigir o conjunto da sociedade e vê no menor desvio de conduta uma traição à raça ou à classe. “O estabelecimento de um Estado de ideologia e partido únicos carregava em si uma lógica cruel, ainda que os próprios líderes não tivessem se sentido atraídos por medidas repressivas antes de haverem conquistado o poder”.
Muitos companheiros de viagem do comunismo no Ocidente se iludiram, e incrivelmente ainda se iludem, sobre até que ponto o comunismo pode ir sem arruinar uma sociedade. Mas os comunistas eles mesmos, se não antes, com certeza depois de tomarem o poder, jamais se iludiram: não existe meio comunismo, como não existe meia gravidez; quando as autoridades, em uma sociedade comunista, folgam os grilhões a ponto da sociedade deixar de ser eminentemente repressiva, ela ao mesmo tempo deixa de ser comunista. Ou seja, o comunismo requer opressão ampla, geral e irrestrita.
Por falar nos companheiros de viagem, eles também estão presentes na obra de Service, e, se não se reúnem para formar as páginas mais deprimentes da obra, é apenas porque estão cercados por um tribunal fantoche aqui e uma vala comum acolá. Mas são deprimentes o bastante. Um exemplo vai bastar: Harry Pollitt, líder do Partido Comunista britânico, não parou de lamber as botas de Stalin nem depois que sua amada, Rose Cohen, foi tragada no universo concentracionário soviético. Esses sabujos, escreve Service,
acreditavam que a economia planificada e a centralização da administração pública pelo Estado melhorariam a vida das pessoas. Em reformadores culturais, mas também ditadores, conquanto inconscientes da própria condição; achavam que seus princípios governamentais e políticos eram a única visão racional do futuro. Seu papel na sociedade foi fraco porque não tinham poder, apenas influência.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
[email protected]