Os mundos da ideologia política e do amor constroem o romance de estreia de Noemi Jaffe.
Lá pelas páginas 33-34 do primeiro romance de Noemi Jaffe, Írisz: as orquídeas, lemos os motivos que levam a protagonista para o Brasil, fugindo de Budapeste após a invasão da União Soviética na Hungria, deixando uma revolução fracassada, uma mãe senil e Imre, um amor mal resolvido: pesquisar orquídeas para cultivá-las em sua terra natal. O que a personagem não sabe é que encontrará, nas espécies raras, espelhos que a ajudarão a refletir sobre sua própria vida e sobre o que a trouxe ao solo nacional. Ela chega a se confundir com seu objeto de estudo, indicando a visão que outro personagem tem dela – o que justifica os dois pontos no título do volume.
Este personagem é diretor do Jardim Botânico de São Paulo e um comunista convicto; Martim vê em Írisz mais do que uma mulher inspiradora, singular e quase sempre indecifrável, cheia de particularidades; convivendo com essa imigrante húngara ele é obrigado a encarar o colapso de uma utopia que, se antes dava sentido à sua vida, desvirtuou-se em práticas burocráticas e totalitárias, a ponto de se questionar sobre qual papel cumpre em sua meta:
Li e reli os comentários sobre a frustração do Partido com a invasão da Hungria pela União Soviética e não consigo entender mais nada: sinto como se areia se espalhasse em tudo o que penso e faço, presto atenção em cada palavra da “Declaração sobre a política do PCB”, escrita pelo Comitê Central, e quase todas me soam esdrúxulas.
Não sei se enlouqueci, mas não posso mais levar nada disso a sério. Parece que as palavras flutuam soltas ou em blocos e nenhuma delas quer dizer nada. São como sons que se repetiram demais e acabaram se transformando em ruídos. (p. 65)
Há mais de três anos, Jorge Amado escreveu que estávamos vivendo uma espécie de “gravidez de silêncio”, em que todos foram como que proibidos de se manifestar, e que aquela montanha, que a gravidez vinha formando, iria acabar por parir um rato. Hoje digo que essa gravidez, se já não pariu um rato, se ainda está por parir, dará à luz um novo monstro – um comunismo ressentido e derrotado e desse eu tenho mais medo que do sonho desfeito. Írisz veio de lá e trouxe a revolução falida no corpo, na boca, na roupa e na comida. (p. 86)
A autora, ganhadora do Prêmio Brasília de Literatura em 2012 por seu livro de contos A verdadeira história do alfabeto, e doutora em literatura brasileira pela USP, cruza e alterna as narrações de Írisz e Martim.
Quando a protagonista desaparece, Martim preenche seu vazio com os relatórios em nada tradicionais deixados por ela, os quais transitam entre as particularidades do húngaro e do português, o fracasso da revolução, receitas de doce de papoula, anotações de uma estrangeira em São Paulo no fim dos anos 50, memórias íntimas e algumas observações insólitas sobre seu objeto de estudo. Ao lado de Martim o leitor vai descobrindo os fatos que compuseram Írisz, com a impressão ao final que cultivou, mesmo sem saber, um jardim de memórias; e desvenda, também assim como ele, como seu fascínio transformou-se em paixão.
Em entrevista à jornalista Katia Borges, do periódico A Tarde, a autora diz ter realizado várias pesquisas para o livro: “Adorei fazer as pesquisas necessárias para a produção do livro e adentrar os micro mundos dos personagens: uma mulher que passou pela Revolução Húngara e me contou que subornou um guarda da fronteira com aguardente; Armênio Guedes, histórico comunista brasileiro, que me contou sobre como seu irmão foi morto pela polícia; Ananda Apple, que me explicou, dentro de um orquidário, como as orquídeas florescem etc. Assim, pelos detalhes, a história vai se construindo um pouco sozinha. Quando você vai escrever, uma parte dela já está escrita”.
Quando questionada se Martim e a protagonista seriam de polos opostos, Noemi afirma não acreditar que assim sejam, “penso que Írisz despertou em Martim uma urgência que ele não tinha coragem de assumir. Mas isso já estava lá. Ele é menos ambicioso, menos sonhador, menos anárquico que ela, mas ela o encanta. Ele não está resignado. Está inconformado e não sabe o que fazer com sentimentos indefinidos. Mas acho que ele vai aprender. Penso que Írisz também aprendeu muito com ele; aprendeu o que é um tipo de amizade e de companheirismo que ela não conhecera com Imre”. Segundo ela, “de alguma forma, eles se completam”.
A junção das belas histórias melancólicas contadas por Jaffe, com a edição luxuosa da Companhia das Letras, cuja capa e contracapa são agradáveis ao tato, inclusive destacando algumas narrativas em páginas de cor cinza (ideia da escritora, que quis, em seu conteúdo, criar “uma voz neutra, um tipo de coro grego. Não é nem a Írisz e nem o Martin”, conforme comentou para o Amálgama) – sem desmerecer as ilustrações delicadas, eloquentes e detalhadas de Tereza Bettinardi –, faz com que tenhamos mais um exemplo de como relatos cativantes podem ser comparados às espécimes de um jardim (não só de um jardim, afinal) que crescem, de início dependentes, tornado-se exuberantes, adquirindo indisfarçável autonomia.