Agora, a presidente disse que "O Mercador de Veneza" é um guia para se entender os problemas econômicos da Argentina.
Jonathan S. Tobin, na Commentary
Em anos recentes, uma crescente onda de antissemitismo fez de grande parte da Europa um lugar hostil para judeus. Mas a ressurgência do ódio ao judeu não tem se limitado àquele continente. Como Ben Cohen observou na edição de abril da Commentary, o espectro do antissemitismo pairou sobre a investigação da estranha morte de Alberto Nisman, o procurador argentino que estava investigando o envolvimento iraniano no atentado de 1994 no centro judaico AMIA em Buenos Aires, que custou a vida de 85 pessoas.
Parte integral da controvérsia sobre a tentativa de oficiais em classificar o que parece ser uma montagem obscena como suicídio está no fato de que Nisman estava prestes a soltar um mandato de prisão contra a presidente Cristina Fernández de Kirchner e outros membros importantes de seu governo. Nisman acreditava que possuía provas de que Kirchner havia negociado um acordo com Teerã, que enviaria petróleo para a Argentina em troca de grãos e da isenção dos agentes iranianos envolvidos no atentado à AMIA.
Mas, como Cohen escreveu, aquela atrocidade e o subsequente acobertamento não aconteceram em um vácuo. Colaborou poderosamente a existência de uma atmosfera antissemita no país. Agora, Kirchner, que reagiu às críticas sobre as falhas do seu governo no caso da morte de Nisman culpando os judeus pelos problemas em uma série de ataques no Twitter, piorou a situação ao, novamente, se comportar mal nas mídias sociais, dizendo a estudantes para que lessem a peça antissemita O mercador de Veneza se quisessem entender a crise da dívida de seu país.
De acordo com o Times of Israel, o incidente gira em torno de uma visita presidencial a uma escola de Buenos Aires:
Em um tuíte, Kirchner contou como ela havia perguntado a estudantes qual peça de Shakespeare eles estavam estudando. Quando eles responderam à presidente que estavam estudando Romeu e Julieta, Kirchner disse que lhes respondeu, “‘Vocês já leram O mercador de Veneza, para entender os fundos abutres?’ Todos eles riram. ‘Não, não riam. A usura e os aproveitadores foram imortalizados há séculos pela melhor literatura”. Foi isso que ela tuitou para seus dois milhões de seguidores.
Os judeus argentinos têm respondido com indignação à inferência óbvia de que os males da economia argentina são culpa dos judeus. Em resposta, Kirchner lembrou que o teatro nacional judeu, Habima, produziu o Mercador no passado.
Será que esse fato a livra da acusação de antissemitismo? De forma alguma.
Concedamos que muitos atores e críticos têm defendido a peça da acusação de antissemitismo ao apontar para a natureza multidimensional de Shylock, o vilão judeu sanguinário da peça. Como fazia com todos seus personagens, Shakespeare pinta Shylock como um ser humano real com motivações compreensíveis, ao invés de como uma figura vil estática. A peça é uma criação brilhante, com grande escrita e drama. Mas ela é também prova de que a alegação de Solzhenitsyn, de que uma grande obra de arte não poderia ser antissemita, é falsa. Shylock pode ser um ser humano, mas ele é também um arquétipo do agiota judeu que explora e vitimiza cristãos inocentes.
Shylock não apenas é superado e humilhado por seus oponentes cristãos que lhe vencem em sua barganha para ganhar um naco de pele cristã como pagamento por uma dívida em aberto. Ele também é forçado a aceitar a deserção de sua amada filha, que casa com um cristão e é forçada a aceitar a conversão ao cristianismo. Apesar de todo o talento artístico de Shakespeare, a peça está encharcada de um ódio e difamação ao judeu que têm sido usados há séculos contra os judeus. O mercador de Veneza é corretamente visto como um símbolo da triste herança ocidental de antissemitismo.
Uma coisa é uma companhia de teatro tentar, como muitas têm tentado, encenar a peça de uma forma que desafie as premissas antissemitas contidas em seu seio, embora muitos observadores aleguem que qualquer esforço nesse sentido está fadado ao fracasso. Mas é algo totalmente diferente uma líder nacional apontar o Mercador como um modelo para se entender economia. Nesse contexto, não há como escapar da conclusão de que a única motivação de Cristina Kirchner foi disseminar o ódio ao judeu em sua forma mais grosseira possível.
Não precisaríamos aprender mais sobre os gostos literários de Kirchner para entender o grau de seu preconceito contra judeus. Seus acordos com o Irã e seus comentários prévios nas mídias sociais são o bastante para condená-la como uma cruel antissemita. Ainda assim, esse último incidente cristaliza sua posição de uma forma que nenhum observador objetivo pode interpretar errado.