O conservadorismo não é apenas uma mentalidade e uma disposição, ele é também uma indisposição
O que significa ser conservador? Muita gente me faz essa pergunta, confusa com o discurso corrente sobre o tema. Faz tempo que estou para falar desse assunto, e nunca acho que estou apto para fazê-lo. O assunto é grande demais para minhas capacidades limitadas, mas me vejo obrigado a falar, ainda que ciente de minha incapacidade de esgotar o assunto. Por dois motivos. Primeiro porque a mídia, as novelas, os livros de história e os intelectuais orgânicos usam a todo o tempo a terminologia “conservadorismo” em sentido equivocado, propositalmente equivocado, enganoso e propagandístico.
Segundo porque há nas redes sociais alguns “conservadores” pouco preparados – ou antes, ainda menos preparados que eu – que acabam por justificar as piores opiniões que respeitáveis donas-de-casa têm a respeito de nós outros, homens horrendos que batemos na mãe por causa de mistura. Seus leitores são jovens de direita, essa molecada nova que entra na vida política sem passar pelo processo clássico de esquerdar antes, e portanto não possuem um contrapeso para suas ideias. Ter sido submerso no tanque ideológico da esquerda te fornece anticorpos contra a burrice, e isso é muito valioso para uma formação política segura e decente. Junte-se a isso a perseguição e demonização do “coxinha”, e o resultado será uma nova direita rancorosa e reacionária, sem qualquer senso crítico, vomitando ódio contra as liberdades individuais. (Não estou dizendo que você precisa ser de esquerda antes de tornar-se conservador, nada disso! É possível ser um conservador inteligente sem ter antes chafurdado no lamaçal autoritário esquerdista.)
A primeira coisa que qualquer conservador vai te falar é que o conservadorismo não é uma ideologia, pelo menos não no sentido estrito. O conservadorismo não possui um manifesto inaugural, um Das Kapital, nem uma Escritura Sagrada que fundamenta sua doutrina. Isso mesmo que você leu: o conservadorismo não tem um “manual seguro para a vida” que resume tudo o que você precisa saber para mudar o mundo. Está aí o que eu considero uma das coisas mais interessantes sobre o conservadorismo: não há um autor fundamental que engendrou a coisa toda. Ao invés de uma “ideologia”, muitos autores atuais falam de uma “disposição conservadora” (Oakeshott), ou de uma “mentalidade conservadora” (Kirk), ou ainda de um “temperamento conservador” (Hearnshaw). Esta sensibilidade conservadora pode ser encontrada em praticamente todos os homens e mulheres que amam alguma coisa no mundo. É de nossa natureza que busquemos conservar aquilo que amamos, e desfrutar aquilo que conservamos. Pessoas que desejam mudar o mundo a qualquer custo são pessoas que prezam pouco ou quase nada do que há de bom e belo no mundo.
Mas a disposição conservadora é uma disposição pessoal, e nem sempre coincide com o conservadorismo político. Por mais que se busque sistematizar os princípios conservadores, o que é muito louvável e útil, nenhum destes princípios saíram da cabeça de um teórico em seu gabinete acadêmico, nem tampouco saíram de uma revelação divina. Todos saíram da experiência histórica acumulada, da memória cultural, da sedimentação de hábitos, e da experiência do afeto. Essa sedimentação culmina, certamente, na produção teórica posterior de filósofos e ensaístas políticos.
O conservadorismo – buscando aqui uma definição – é uma tradição política realista e eminentemente histórica que busca preservar os princípios que engendram a civilização, e aperfeiçoar o que for possível conforme a conveniência e a necessidade. Há fundamentos conservadores em Aristóteles, em Cícero, em Santo Agostinho, em Santo Tomás, em Montaigne, em Francisco Suárez, em Pascal, em Mostesquieu, em Shaftesburry, em Adam Smith, em David Hume, e – claro – em Edmund Burke. Este último é tido erroneamente como “fundador” do pensamento conservador. Na verdade Burke é mais um herdeiro daqueles todos que o antecederam. Mas é claro que nenhum destes filósofos anteriores a Burke podem ser chamados de “conservadores” sem incorrermos em anacronismo. Se é verdade que o conservadorismo político “nasce” efetivamente em Burke, seria preciso dizer que esta é uma tradição que já nasce antiga.
Há um dito medieval, atribuído a Bernardo de Chartres (século XII), que ilustra bem a grande beleza do conservadorismo: “somos anões aos ombros de gigantes, de modo que podemos ver mais e ver mais longe que eles, mas não pela acuidade do próprio olhar, nem pela estatura do corpo, mas porque fomos erguidos pela magnitude dos gigantes”. São estes gigantes do pensamento que nos possibilitam a segurança de pensar com clareza, e ainda assim estarmos firmemente apoiados na realidade. A ideia por trás disso é que não se pode atingir a grandeza sem respeitar a tradição. Na verdade podemos nos beneficiar da tradição tanto para nossa vida pessoal, como para a vida em sociedade, e a política. Desta forma estabelecemos o princípio da consagração pelo uso. Aquilo que foi testado e aprovado é um caminho seguro para a transmissão e continuidade do conhecimento, da sociedade, das instituições, etc. Aquilo que foi consagrado e tornou-se hábito pode não ser perfeito, mas pode ser melhorado, e seguramente é melhor do que reinventar a roda por teimosia. O conservadorismo é tributário do empirismo e da escola histórica.
O conservador sabe, entretanto, que eventualmente as coisas precisarão ser mudadas, reformuladas, melhoradas. A mudança não é um valor em si mesmo para o conservador como é para o revolucionário. Este pensa o mundo a partir de um sentido histórico final, teleológico, a que chegará a humanidade um dia. O marxista busca o “fim da história”, a resolução definitiva das contradições sociais entre capital e trabalho, e o estabelecimento de uma sociedade perfeita, justa e sem classes. O conservador, ao contrário, está interessado em como viver uma boa vida hoje, sem hipotecar o futuro de seus filhos; quando chegar a hora de mudar, ele vai optar não pela revolução, mas pela reforma prudente: é preciso ficar atento para não jogar a criança fora junto com a água do banho. No lodo da revolução, em nome de uma igualdade perfeita, afundam todas as coisas frágeis e preciosas que nos são caras. Mesmo para tirar uma sociedade do socialismo e estabelecer uma ordem livre é necessário calma, prudência e tempo.
Mas o conservadorismo não é apenas uma mentalidade e uma disposição, ele é também uma indisposição. A indisposição com relação, principalmente, às ideologias salvacionistas. O conservador compreende a nossa imperfectibilidade intelectual, nossa insuficiência ontológica, nossa fragilidade orgânica, e reconhece a precariedade da condição humana. Nós não sabemos o que somos, nem por que somos, e não é preciso muito para deixarmos de ser. Com base nisso compreendemos como nossas “soluções para o mundo” não passam de delírios, tão perigosas quanto mais bem-intencionadas e totalizantes forem. A constatação dessa incógnita epistemológica é o único ponto de partida para a política. Sem reconhecermos este “só sei que nada sei”, o caminho tornar-se-á muito perigoso. Por isso que eu, particularmente, gosto de pensar o conservadorismo como uma epistemologia (para a) política, antes de ser uma ideologia. Ser conservador é desconfiar de soluções mágicas, de feijões encantados e de utopias. A política, para o conservador, é a “arte do possível”, como diz Aristóteles. O possível é sempre mais desejável que o impossível. Nada poderá ser bom se não for, necessariamente, verdadeiro e real.
O conservadorismo – sendo uma epistemologia, e não uma ideologia – não apresenta nenhuma oposição ao liberalismo: você pode ser conservador e liberal ao mesmo tempo. Muita gente, baseada em suposições nominalistas, acha que a denominação liberal-conservador seja uma contradição em termos, mas isso revela apenas sua incapacidade de reconhecer que os termos políticos, sendo historicamente constituídos, não definem-se por si mesmos. Há algum sentido para além das palavras. Tenho certeza que nem todos meus amigos liberais frequentam casas de swing, ao contrário de alguns conservadores. Em tese é possível até mesmo ser um conservador de esquerda, e temos bons exemplos desta estranha combinação na literatura: George Orwell, Otto Maria Carpeaux, Ariano Suassuna.
Mas, em geral, nós conservadores gostamos da sociedade de mercado porque ela funciona. Há uma piada que diz: o socialismo tem boas ideias, mas no feudalismo há comida. Acredito que todos concordamos que o feudalismo não foi nosso melhor modelo econômico, e é precisamente aí que está a graça. A sociedade de mercado também não é, mas é melhor que “boas ideias”. É possível irmos além dela? Talvez. Mas eu aposto 100 dólares que não. Se eu perder a aposta não tem problema, porque 100 dólares não valerão mais nada. Mas é preciso admitir que além de meramente funcionar, há na sociedade de mercado benefícios sem precedentes realmente louváveis. A liberdade individual, o direito de propriedade, o avanço científico e tecnológico e a enorme facilidade e conforto da vida são, acredito, alguns argumentos que podemos usar em sua defesa. Para nós, modernos, essas coisas parecem que são assim desde sempre, e que direitos nascem em árvores, mas não é assim que funciona. Só um idiota trocaria a liberdade do capitalismo para viver no paraíso da igualdade comuna. É por isso que os intelectuais de esquerda gostam de defender ditaduras comunistas confortavelmente instalados em seus apartamentos, cercados de facilidades burguesas, bem longe de suas utopias. São cínicos, mas não idiotas.
Aí você deve estar pensado, “mas onde é que entra a religião nisso tudo?, onde é que os conservadores e os religiosos se encontram?”. A resposta é simples: no reconhecimento da precariedade da condição humana. Nisso concordam conservas, judeus e cristãos: há no homem um componente de irracionalidade que é uma marca indelével – como o sinal de Caim – e que dirige o homem para o mal. A despeito das divergências teológicas, essa concepção pode ser encontrada na religiosidade judaico-cristã. No cristianismo é chamada de “pecado original”, a corrupção do homem pelo pecado de Adão. No judaísmo o conceito do “yetzer hara” diz que o homem possui uma “inclinação para o mal”. As religiões morais ensinam que o homem é um ser incompleto, finito, acometido pela concupiscência, e submetido à contingência do mundo e da carne. Nesse sentido o religioso compreende a realidade sob a mesma ótica que o conservador. Como remédio (mas não cura) desta condição precária, o homem busca a segurança de uma ordem moral duradoura. O conservador acredita que essa ordem é benéfica, porque reduz o contingente social de entropia e caos, promove a virtude, a ordem, a riqueza e a boa vida. Vamos mais além: uma sociedade moralmente ordenada será boa, ainda que seu governo seja mau, e uma sociedade desordenada moralmente será má, ainda que seus governantes sejam sábios e filósofos.
Mas não é necessário ser religioso para ser conservador. Na verdade é possível – e desejável – que um ateu seja conservador. Ser um bom católico não assegura que você será um bom conservador, e vice versa. O cristianismo também pode involuntariamente produzir monstros ideológicos – e o marxismo, inegavelmente, é um deles. No socialismo se encontra um fundo moralizante e uma escatologia de raiz judaico-cristã notável. Isso de maneira nenhuma é uma crítica ao cristianismo, ao contrário, é a prova do axioma latino corruptio optimi pessima, ou “a corrupção do ótimo é péssima”. A moral cristã, destituída de sua base mística e transcendental, privada de Deus, torna-se opressiva, persecutória e chiliquenta.
Mesmo o darwinismo tem sido usado como base teórica do pensamento para muitos conservadores. A evolução é um processo cego, não-finalista. O que somos, o somos por acidente (accidens). Ao contrário da crença popular, acidente não é algo ocorrido sem causa material, mas sem causa final, ou seja, algo que ocorre pela convergência de diversos fatores imprevistos, não dirigidos, e sem uma intenção final. Nossa imperfeição é ainda mais patente e radical sob essa perspectiva. Neste caso não seríamos apenas finitos, limitados, mas ontologicamente imperfeitos. Portanto, as conclusões lógicas que saem de nosso cérebro de macaco são tão acidentais quanto uma colisão estelar no centro da galáxia, ou um raio que cai sobre uma árvore. Sob esta perspectiva materialista o conservadorismo se faz ainda mais necessário, porque oferece o conforto da tradição, já que nem a razão poderá solucionar nossa contingência.
Quando se estabelece pela consagração do uso, a tradição pode ser descrita de maneira análoga à evolução da vida, mas como um sistema cultural. O próprio mecanismo da evolução é o resultado do acúmulo lento e gradual de características diversificadas que são selecionadas pelas condições do meio. Reprodução diferencial + seleção natural = evolução. As espécies conservam as características mais convenientes pela vantagem na reprodução ou sobrevivência. O resultado desse acúmulo de características é toda a biodiversidade, incluindo nós mesmos. Da mesma maneira, as tradições são o resultado de um processo de conservação e mudanças lentas, e sua consequência é a adaptação das instituições às necessidades humanas. Poderíamos dizer que a natureza “pensa” de forma conservadora, assim como os conservadores pensam de forma “natural”.
E aqui aparece mais uma divergência entre os conservadores e os revolucionários: nós acreditamos que existe uma natureza humana, e para todos os fins políticos e filosóficos no tempo histórico essa natureza é uma constante. Ou seja, somos os mesmos homens que domesticaram os animais e os cereais há 12 mil anos atrás, e somos os mesmos homens que mataram, escravizaram, e saquearam cada metro quadrado de terra de lá pra cá. Sob o ponto de vista ontológico nós não melhoramos nada, e cada nova geração que nasce é uma nova invasão de bárbaros que deve ser domesticada. Para o bem ou para o mal, somos isso que somos. Mas os revolucionários creem que nossa natureza é “construída socialmente” pelos discursos, e que o homem torna-se mau pela sociedade e pela civilização. Esse pensamento descansa suas raízes filosóficas da “tábula rasa” de Locke, e no mito do “bom selvagem” de Rousseau. Essas duas ideias juntas são a matriz da mentalidade moderna, e formam o bojo epistêmico do caos social. Claro que há um boa parte de nossa composição que é cultural, e portanto construída historicamente; mas nossa natureza, nossos medos e paixões são basicamente os mesmos. Qualquer filosofia política que não considere a contingência da natureza humana, ou que insinue que a realidade biológica é uma invenção do discurso, vai fatalmente cometer atrocidades. É por isso que a modernidade viu os piores crimes que o homem já pôde cometer.
É importante lembrar que o desenvolvimento do conservadorismo político se deu justamente em oposição a esse vício político moderno. Edmund Burke previu que a Revolução Francesa, baseada em princípios e concepções abstratas do homem, terminaria num banho de sangue. O conservadorismo tem como vocação a negação da mentalidade revolucionária. É por isso que eles nos chamam de reacionários, porque reagimos contra sua sanha delirante de redesenhar a sociedade segundo suas concepções do “dever ser”. Mas ser um conservador não é o mesmo que ser um reacionário. Segundo Nelson Rodrigues, o reacionário é aquele que “reage contra tudo o que não presta”. Mas esta é apenas uma definição literária, não deve ser entendida como uma categoria política estrita. Muitos conservadores de alta estirpe usaram a palavra reacionário como sinônimo de irreflexão e autoritarismo. Isso mesmo: ser reacionário não é bom, e você vai entender por quê.
O reacionário é essencialmente um indignado contra a sociedade. Uma sociedade injusta e decadente vai produzir indignados aos montes. Inclusive uma boa safra de indignados é necessária para alimentar as fileiras da esquerda, que sobrevive mediante o fomento controlado da insatisfação popular. O indignado que a esquerda não consegue arregimentar e doutrinar torna-se efetivamente um reacionário. Qual é, portanto, a definição de reacionário? Um reacionário é uma pessoa que localiza no passado irreal e idílico a sua “sociedade perfeita”. Para o reacionário tudo o que temos hoje em dia é uma degeneração do que já tivemos um dia. No entanto, sua visão do passado pouco corresponde à realidade histórica. O tradicionalista católico vê na Idade Média (com bons motivos) o momento áureo da civilização. Mas, conforme afirma Oakeshott, “à medida que o tempo passa, o ideal do reacionário distancia-se cada vez mais de qualquer sociedade real que tenha existido no passado”. Em outras palavras, um reacionário é um revolucionário às avessas. Sua relação com a política é exatamente a mesma que estabelece o revolucionário: ele deseja impor de forma autoritária para toda a sociedade o que ele considera como sendo o ideal para a nação, baseado na sua sociedade imaginária perfeita do passado. Portanto, se um conservador não é um reacionário, ele não deseja impor seus padrões como regra. No entanto, é claro que o conservador acredita fortemente que existem políticas melhores pra sociedade, e políticas que serão desastrosas se adotadas. Portanto, não é anarquismo, cada um faz sua lei e acabou. Longe disso.
Por fim, um conservador é uma pessoa que sabe que o preço da liberdade é a eterna vigilância. Uma sociedade boa, justa e civilizada merece ser defendida contra a barbárie. Uma das formas essenciais de preservar essa sociedade é transmitindo adiante, para as novas gerações, os valores e as tradições que os trouxeram até aqui. Uma sociedade que cultua a juventude, que dá voz aos idiotas, que alimenta o sentimentalismo, o vitimismo, premia a inépcia e castiga a virtude está fadada a se corromper e desaparecer. Por isso que ser conservador nem sempre significa ser nacionalista. O nacionalismo é justificado quando a nação é boa, justa e civilizada. Ainda que nossa sociedade não seja a maior expressão da liberdade, é importante saber que há formas de piorá-la, e há pessoas empenhadas nisso.
Caco Tirapani
Formado em História, professor da rede pública de SP.
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