Rompendo um ineditismo indevido, “O uruguaio” traz uma mostra da obra satírica do fabuloso Copi
Seria um erro escrever sobre a obra literária de Copi, sem antes apresentá-lo. Um erro comparável ou superior ao fato de um dos mais representativos autores hispano-americanos, transgressor e vanguardista em sua época, só agora ter sido traduzido por aqui.
Copi, alcunha do argentino Raúl Damonte Botana, nasceu em Buenos Aires, na primavera de 1939. Filho do jornalista e político Raul Damonte Taborda, partidário e depois agressivo opositor do governo Perón, teve a vida marcada por fugas e exílios. Na infância, mudou-se para o Uruguai, onde permaneceu até o fim da ditadura peronista, quando sua família voltou a Buenos Aires.
O regresso se deu à abertura do jornal Tribuna Popular, de propriedade de seu pai, no qual publicou seus primeiros textos e ilustrações. O desenho, aliás, foi seu ganha pão, ao decidir viver em Paris, no começo da década de 60. Lá, teve seu primeiro contato com as artes cênicas, através do grupo Teatro Pânico. Foi, a partir de então, que investiu na carreira de dramaturgo, escrevendo e atuando em peças de teor ousado, sorumbático e irreverente, a exemplo de “Eva Péron”, invenção dos últimos dias da ex-primeira dama argentina, protagonizada por um ator travestido, que foi alvo de um atentato organizado por agentes da direita peronista, nos anos 70.
A acidez também contaminou as tintas de seus desenhos, em especial a personagem mais famosa, La Mujer Sentada, criada para a revista Le Nouvel Observateur, cuja vida se resumia a diálogos absurdos com caracóis e galinhas. Sua extensa obra cartunesca ainda ganhou as páginas de respeitadas publicações, tais como Charlie Hebdo, Libération e o nosso subversivo Pasquim.
Como autor de prosa, viveu um período curto, porém prolífero, de 16 anos. Foram seis novelas e duas coletâneas de contos. Copi morreu em dezembro de 1987, vítima da Aids. Sua última declaração ilustra bem seu humor transverso: “Sou tão vanguardista que a doença me atacou primeiro”.
Bem, feito essa breve apresentação, vamos enfim ao livro. Composto por duas novelas, O uruguaio integra a coleção Outra Língua, editada pela Rocco, que brinda os leitores brasileiros ao publicar autores hispano-americanos imprescindíveis, porém detidamente inéditos no país. Os textos se ocupam de um vulto simbólico, por se tratarem do primeiro e do derradeiro relato do autor. São estes “O uruguaio”, que empresta nome ao título, e “A Internacional Argentina”. Em razão da idade, é notório o atrito de construção e de linguagem entre as narrativas, porém segue irretocável a elementar qualidade (e possivelmente inequívoco alvo) de Copi: provocar quem se preste a lhe confiar atenção.
Escrito em fluxo epistolar, “O uruguaio” é a descrição dos dias de um personagem que assina Copi numa cidade chamada Montevidéu, após um cataclismo que vestiu o cenário com uma grossa camada de areia. Os sobreviventes passaram a agir feito vetores monocórdios, repetindo uma frase ou uma palavra que ficou em suspensão em seu subconsciente. Ao Mestre, a quem o narrador direciona sua voz, é relatada uma soma de situações inusitadas, que vão do nonsense ao ultraje. Registros como o de um papa argentino que voa e o de um cão caolho que cava um poço sem fundo.
Tal qual assinalou o escritor César Aira, em seu reverencial livro Copi, no ofício ficcional do escritor argentino, “a arte da narrativa decai na medida em que incorpora a explicação”. O caos descrito é o mesmo que desestrutura o corpo textual, encavalando, de maneira veloz e abrupta, fatos sem sentido aparente, cujo objetivo é criar um mosaico de uma outra vertente artística, um espanto imagético.
Copi está, a todo instante, instigando, experimentando. O que dizer de uma frase como essa: “Vivem com o terror de que alguém grite Montevidéu ao mesmo tempo que eles, pois correriam o risco de se encontrarem com um bairro debaixo do braço, o que para eles é uma desonra, pois nesse momento qualquer um poderia tomá-los por um lugar, já que são considerados mortos”? A carga visual fraciona a unidade semântica, criando uma desordem, um emaranhado que é o modo que se dá a tessitura do texto. Procedimento semelhante comanda o curso narrativo, que induz o leitor, em diversos momentos, a crer que o protagonista está falando com ele, ao invés de o Mestre. A leitura ondeia em sobreposições de uma única voz.
Tal efeito delirante funciona, em muitos casos, como um cadafalso, um disfarce para o autor empregar seu humor satírico, seu espírito transgressor, na composição de caricaturas que trarão à tona temas nevrálgicos, tais como a relação promíscua entre política e religião e a (trans)sexualidade. A certa altura, o papa se revela um traficante de escravas brancas, que sujeita o presidente a se vestir de dançarina e ser sodomizado. No entanto, um absurdo maior vem logo em seguida, e o impacto é aniquilado pela incoerência padrão. “Eu lhe serei, desse modo, imensamente grato se, sacando sua caneta do bolso, riscar tudo o que vou escrever à medida que for lendo. Graças a esse simples artifício, ao final da leitura irá restar tão pouco desse livro na sua memória quanto na minha (…)”, solicita o personagem nas primeiras linhas. Algo dissimulador e engenhoso ao mesmo tempo.
Engenharia, a propósito, é o melhor substantivo para definir “A Internacional Argentina”, a segunda novela. Outra vez Copi, esse alter ego ululante, vê-se envolvido numa trama de espionagem política que, de fato, é um grande pastiche sobre os costumes e a soberba do povo argentino. Nicanor Sigampa, um negro colossal multimilionário, ex-jogador de polo, cria uma sociedade secreta, nomeada A Internacional Argentina, cuja missão é articular ações de argentinos desterrados, no que tange o suprassumo das artes e da inteligência. “É muito claro que existe uma relação entre o jogador de futebol Maradona, Eva Perón, o futuro da Patagônia e os contos inefáveis do nosso bem-amado Jorge Luis Borges”, confabula Sigampa.
A proposta do magnata não é apenas cooptar o poeta Copi para a organização, mas torná-lo presidente da República. O caso é que, diante dessa promoção espetacular, o personagem tem de lidar com perturbações comezinhas, como a ex-mulher, ambiciosa e intratável, que lhe faz uma visita inesperada, e os pais, um casal riponga, chegado a baratinhos e ao amor livre, que a toda hora o engaveta em situações constrangedoras.
Copi, o autor, usa do desconforto e do destempero de Copi, o personagem, para calibrar sua metralhadora anedótica contra paisanos exilados em Paris, os que fugiam não da ditadura militar, “mas de tudo que a tornava possível na sociedade argentina”. “Só na Argentina estamos protegidos dos argentinos”, dispara. “Vou para Buenos Aires! Em Paris há argentinos demais”. Há um jogo contínuo entre verdade e ficção, no qual personalidades são arroladas através de tipos criados (Raoula, a filha bastarda de Borges integra a sociedade) para serem chacoteadas. Ninguém está imune ao tom cáustico de Copi, inclusive ele próprio. “Você não passa de um escritor fracassado”, diz a ex-mulher a plenos pulmões.
A estrutura mais clássica da segunda novela favorece à percepção do apuro e do domínio técnico do autor argentino. Diálogos ágeis, personagens bem construídos e reviravoltas cativam o leitor a se deixar levar, ainda que para destinos imprevistos. O absurdo, em maior ou em menor grau, está por toda parte. Uma frase, em “O uruguaio”, sintetiza muito bem essa experiência: “Explicado desse modo, parece um jogo idiota, mas jogá-lo acaba sendo muito divertido, sobretudo quando os momentos de distração se prologam por vários minutos”. Copi é um autor vital por não se parecer com nenhum outro.
Sérgio Tavares
Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.
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