O provocador (finalmente) entre nós

por Sérgio Tavares (19/07/2015)

Rompendo um ineditismo indevido, “O uruguaio” traz uma mostra da obra satírica do fabuloso Copi

"O uruguaio", de Copi (Rocco, 2015, 208 páginas)

“O uruguaio”, de Copi (Rocco, 2015, 208 páginas)

Seria um erro escrever sobre a obra literária de Copi, sem antes apresentá-lo. Um erro comparável ou superior ao fato de um dos mais representativos autores hispano-americanos, transgressor e vanguardista em sua época, só agora ter sido traduzido por aqui.

Copi, alcunha do argentino Raúl Damonte Botana, nasceu em Buenos Aires, na primavera de 1939. Filho do jornalista e político Raul Damonte Taborda, partidário e depois agressivo opositor do governo Perón, teve a vida marcada por fugas e exílios. Na infância, mudou-se para o Uruguai, onde permaneceu até o fim da ditadura peronista, quando sua família voltou a Buenos Aires.

O regresso se deu à abertura do jornal Tribuna Popular, de propriedade de seu pai, no qual publicou seus primeiros textos e ilustrações. O desenho, aliás, foi seu ganha pão, ao decidir viver em Paris, no começo da década de 60. Lá, teve seu primeiro contato com as artes cênicas, através do grupo Teatro Pânico. Foi, a partir de então, que investiu na carreira de dramaturgo, escrevendo e atuando em peças de teor ousado, sorumbático e irreverente, a exemplo de “Eva Péron”, invenção dos últimos dias da ex-primeira dama argentina, protagonizada por um ator travestido, que foi alvo de um atentato organizado por agentes da direita peronista, nos anos 70.

A acidez também contaminou as tintas de seus desenhos, em especial a personagem mais famosa, La Mujer Sentada, criada para a revista Le Nouvel Observateur, cuja vida se resumia a diálogos absurdos com caracóis e galinhas. Sua extensa obra cartunesca ainda ganhou as páginas de respeitadas publicações, tais como Charlie Hebdo, Libération e o nosso subversivo Pasquim.

Como autor de prosa, viveu um período curto, porém prolífero, de 16 anos. Foram seis novelas e duas coletâneas de contos. Copi morreu em dezembro de 1987, vítima da Aids. Sua última declaração ilustra bem seu humor transverso: “Sou tão vanguardista que a doença me atacou primeiro”.

Bem, feito essa breve apresentação, vamos enfim ao livro. Composto por duas novelas, O uruguaio integra a coleção Outra Língua, editada pela Rocco, que brinda os leitores brasileiros ao publicar autores hispano-americanos imprescindíveis, porém detidamente inéditos no país. Os textos se ocupam de um vulto simbólico, por se tratarem do primeiro e do derradeiro relato do autor. São estes “O uruguaio”, que empresta nome ao título, e “A Internacional Argentina”. Em razão da idade, é notório o atrito de construção e de linguagem entre as narrativas, porém segue irretocável a elementar qualidade (e possivelmente inequívoco alvo) de Copi: provocar quem se preste a lhe confiar atenção.

Escrito em fluxo epistolar, “O uruguaio” é a descrição dos dias de um personagem que assina Copi numa cidade chamada Montevidéu, após um cataclismo que vestiu o cenário com uma grossa camada de areia. Os sobreviventes passaram a agir feito vetores monocórdios, repetindo uma frase ou uma palavra que ficou em suspensão em seu subconsciente. Ao Mestre, a quem o narrador direciona sua voz, é relatada uma soma de situações inusitadas, que vão do nonsense ao ultraje. Registros como o de um papa argentino que voa e o de um cão caolho que cava um poço sem fundo.

Tal qual assinalou o escritor César Aira, em seu reverencial livro Copi, no ofício ficcional do escritor argentino, “a arte da narrativa decai na medida em que incorpora a explicação”. O caos descrito é o mesmo que desestrutura o corpo textual, encavalando, de maneira veloz e abrupta, fatos sem sentido aparente, cujo objetivo é criar um mosaico de uma outra vertente artística, um espanto imagético.

Copi está, a todo instante, instigando, experimentando. O que dizer de uma frase como essa: “Vivem com o terror de que alguém grite Montevidéu ao mesmo tempo que eles, pois correriam o risco de se encontrarem com um bairro debaixo do braço, o que para eles é uma desonra, pois nesse momento qualquer um poderia tomá-los por um lugar, já que são considerados mortos”? A carga visual fraciona a unidade semântica, criando uma desordem, um emaranhado que é o modo que se dá a tessitura do texto. Procedimento semelhante comanda o curso narrativo, que induz o leitor, em diversos momentos, a crer que o protagonista está falando com ele, ao invés de o Mestre. A leitura ondeia em sobreposições de uma única voz.

Tal efeito delirante funciona, em muitos casos, como um cadafalso, um disfarce para o autor empregar seu humor satírico, seu espírito transgressor, na composição de caricaturas que trarão à tona temas nevrálgicos, tais como a relação promíscua entre política e religião e a (trans)sexualidade. A certa altura, o papa se revela um traficante de escravas brancas, que sujeita o presidente a se vestir de dançarina e ser sodomizado. No entanto, um absurdo maior vem logo em seguida, e o impacto é aniquilado pela incoerência padrão. “Eu lhe serei, desse modo, imensamente grato se, sacando sua caneta do bolso, riscar tudo o que vou escrever à medida que for lendo. Graças a esse simples artifício, ao final da leitura irá restar tão pouco desse livro na sua memória quanto na minha (…)”, solicita o personagem nas primeiras linhas. Algo dissimulador e engenhoso ao mesmo tempo.

Engenharia, a propósito, é o melhor substantivo para definir “A Internacional Argentina”, a segunda novela. Outra vez Copi, esse alter ego ululante, vê-se envolvido numa trama de espionagem política que, de fato, é um grande pastiche sobre os costumes e a soberba do povo argentino. Nicanor Sigampa, um negro colossal multimilionário, ex-jogador de polo, cria uma sociedade secreta, nomeada A Internacional Argentina, cuja missão é articular ações de argentinos desterrados, no que tange o suprassumo das artes e da inteligência. “É muito claro que existe uma relação entre o jogador de futebol Maradona, Eva Perón, o futuro da Patagônia e os contos inefáveis do nosso bem-amado Jorge Luis Borges”, confabula Sigampa.

A proposta do magnata não é apenas cooptar o poeta Copi para a organização, mas torná-lo presidente da República. O caso é que, diante dessa promoção espetacular, o personagem tem de lidar com perturbações comezinhas, como a ex-mulher, ambiciosa e intratável, que lhe faz uma visita inesperada, e os pais, um casal riponga, chegado a baratinhos e ao amor livre, que a toda hora o engaveta em situações constrangedoras.

Copi, o autor, usa do desconforto e do destempero de Copi, o personagem, para calibrar sua metralhadora anedótica contra paisanos exilados em Paris, os que fugiam não da ditadura militar, “mas de tudo que a tornava possível na sociedade argentina”. “Só na Argentina estamos protegidos dos argentinos”, dispara. “Vou para Buenos Aires! Em Paris há argentinos demais”. Há um jogo contínuo entre verdade e ficção, no qual personalidades são arroladas através de tipos criados (Raoula, a filha bastarda de Borges integra a sociedade) para serem chacoteadas. Ninguém está imune ao tom cáustico de Copi, inclusive ele próprio. “Você não passa de um escritor fracassado”, diz a ex-mulher a plenos pulmões.

A estrutura mais clássica da segunda novela favorece à percepção do apuro e do domínio técnico do autor argentino. Diálogos ágeis, personagens bem construídos e reviravoltas cativam o leitor a se deixar levar, ainda que para destinos imprevistos. O absurdo, em maior ou em menor grau, está por toda parte. Uma frase, em “O uruguaio”, sintetiza muito bem essa experiência: “Explicado desse modo, parece um jogo idiota, mas jogá-lo acaba sendo muito divertido, sobretudo quando os momentos de distração se prologam por vários minutos”. Copi é um autor vital por não se parecer com nenhum outro.

Sérgio Tavares

Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.

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