O maior massacre cometido em solo europeu após o final da segunda guerra permanece como um lembrete de que a inação e o não-intervencionismo também trazem consequências, às vezes mortais.
1.
O final da década de 80 e o início dos anos 90 são profundamente marcados pelos eventos que levaram à derrocada do bloco soviético e da ordem mundial dual que nas décadas anteriores foi denominada de Guerra Fria. O colapso das ditaduras socialistas no leste europeu e em outras partes do mundo induziu, como numa queda de dominós, a queda de muitas outras ditaduras de direita que tinham na contenção dos regimes filossoviéticos sua razão de existir. Da América Latina à África, passando pela Ásia, inúmeros regimes autoritários foram destituídos pelos mais diversos meios, de transição pacífica a revolução violenta, resultando naquela que foi denominada a “Terceira Onda de Democratização”.
Mas nem tudo eram flores na nova ordem mundial. O fim da Guerra Fria desencadeou uma onda de democratização em boa parte do mundo, mas em alguns lugares despertou fantasmas que há muito eram reprimidos, e estouraram com violência. E nenhum lugar simbolizou mais esse processo do que a ex-Iugoslávia: o colapso do regime comunista provocou o despertar do nacionalismo sérvio, que gerou como reação o despertar dos nacionalismos croata e muçulmano.
Localizada no centro do país, a Bósnia-Herzegovina era a mais plural de suas repúblicas, com uma complexa mistura de muçulmanos (45% da população), sérvios (30%), croatas (17%) e minorias outras, e, portanto, a que mais haveria de sofrer com a sangrenta desagregação iugoslava. A declaração de independência bósnia resultou imediatamente na sublevação dos sérvios, que boicotaram o referendo que a aprovara meses antes. Apoiados pelos nacionalistas encastelados no poder em Belgrado e com o grande poder de fogo e estrutura do exército nacional, os servo-bósnios rapidamente dominaram dois terços do país e começaram a levar a cabo um projeto de limpeza étnica e genocídio que visava a expurgar as regiões de população majoritariamente sérvia da Bósnia de suas outras populações e abrir caminho para a construção da “Grande Sérvia”.
Acuados pelas ondas de expulsões e massacres, os muçulmanos do vale do Drina se amontoaram nas poucas cidades que ainda não estavam sob controle do governo genocida de Radovan Karadžic. Srebrenica era uma delas, e quando estava prestes a ser tomada pelas forças comandadas pelo general Ratko Mladic, foi declarada pela Resolução 819 do Conselho de Segurança das Nações Unidas como uma “Área de segurança”, juntamente com outras cidades que se encontravam cercadas por forças sérvias. A resolução estabelecia que essas áreas não deveriam ser atacadas, e passariam a ser protegidas por capacetes azuis, que deveriam ser protegidas “por todos os meios, não excluindo o uso da força”.
O conceito de “áreas de segurança” na Bósnia causou controvérsia, uma vez que as forças de paz da ONU não são autorizadas a se envolver nos conflitos locais, e não estava claro como essas áreas poderiam ser protegidas de ataques. O fato é que todas elas nunca deixaram de ser atacadas por tropas sérvias, constituindo-se na prática campos de concentração.
Em 10 de julho de 1995, Ratko Mladic resolveu testar o comprometimento das Nações Unidas com as áreas que ela reivindicava estarem sob sua proteção. Com ampla vantagem militar, as forças sérvias rapidamente cercaram o enclave. Os capacetes azuis holandeses responsáveis pela proteção da área requisitaram apoio aéreo, mas este só chegou quando os sérvios já haviam na prática capturado Srebrenica. Mladic exigiu que os bombardeios da OTAN cessassem imediatamente, ou os soldados holandeses e franceses que ele mantinha como reféns seriam imediatamente executados. Suas exigências foram atendidas e suas tropas terminaram a tomada de Srebrenica.
Os dias que se seguiram seriam marcados por atrocidades não vistas em solo europeu havia meio século, e pela covardia atroz do resto do mundo, que assistiu passivamente ao massacre se desenrolando praticamente a olhos vistos, com os perpetradores pouco se esforçando para esconder o que estava acontecendo. Mulheres e crianças foram enviadas de ônibus para território sob controle do governo bósnio, enquanto os homens em idade militar, detidos para “interrogatórios”, seriam encontrados nos meses e anos que se seguiram enterrados em inúmeras valas comuns espalhadas pela região. A última contagem resultou no número de 8.373 mortos.
2.
Quem deve ser responsabilizado pela tragédia de Srebrenica? Por certo, seus perpetradores, o exército da República Sérvia da Bósnia, seus comandantes militares e civis, quase todos já condenados por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, ou presos aguardando julgamento por tais crimes.
Mas eles não teriam conseguido sem ajuda. Não teriam conseguido sem a inação e inoperância da ONU, sua burocracia lerda e crônica incapacidade de tomar decisões firmes e a tempo. Os capacetes azuis, não apenas na Bósnia, mas em todas as outras “missões de paz”, não são autorizados a se envolver nos conflitos, o que os tornou na ocasião incapazes de levar a cabo a missão que os levou até lá em primeiro lugar: proteger áreas civis e seus habitantes de ataques por parte de forças beligerantes, até porque nem equipamento para isso eles possuíam. Seu papel mais relevante na Bósnia foi servirem como reféns que os sérvios capturavam e ameaçavam de morte sempre que se ameaçava atacá-los, e não foi diferente em Srebrenica.
A presença das forças de paz em terra foi muito mais útil para os agressores e genocidas do que para aqueles que elas deveriam proteger. O embargo de armas imposto à região pela ONU também foi outro tiro que saiu pela culatra: os sérvios tinham à sua disposição os arsenais cheios do exército iugoslavo, os croatas podiam contrabandear armamentos por suas fronteiras, e os muçulmanos, cercados por seus inimigos, não puderam se armar para se defender e quase foram aniquilados.
A OTAN e os principais países europeus tampouco podem se eximir de sua parcela de culpa. Por mais de três anos eles se mostraram incapazes de interferir de forma positiva no conflito. Em seu primeiro grande teste geopolítico, a União Europeia provou o que seus detratores diziam: era um gigante econômico, mas um disforme anão diplomático e geopolítico.
Coube aos Estados Unidos, após anos de vacilação, intervir de forma decisiva para impor um equilíbrio de forças entre as partes beligerantes que logo levou a um impasse militar que possibilitou o cessar-fogo, as negociações e os Acordos de Dayton que finalmente encerraram o conflito. Mas os ianques estavam no auge de seu status de superpotência global inquestionável, a única nação que podia agir de forma unilateral sem temer maiores consequências, e a demora em tomar a atitude que no final das contas se mostrou acertada custou a vida de dezenas de milhares de pessoas. Incluindo as vítimas que estão hoje enterradas em Srebrenica.
O grande culpado da catástrofe que se abateu sobre a pequena e montanhosa cidade no vale do rio Drina, no entanto, foi o não-intervencionismo radical, a noção de que sempre se deve deixar os locais resolverem suas diferenças sem interferências externas.
O não-intervencionismo não deixa de ser uma reação compreensível às décadas de interferência das grandes potências em questões locais que muitas vezes exacerbaram tensões que explodiram em conflitos violentos. Mas, como quase tudo na vida, não pode ser levado a extremos: o massacre de Srebrenica em particular, bem como os conflitos que destroçaram a Iugoslávia em geral, é um lembrete de que não interferir às vezes beneficia enormemente agressores e genocidas, as partes mais fortes e mal-intencionadas em conflitos. Escolher a inação pode ser o equivalente a Pôncio Pilatos lavando suas mãos: a mera aquiescência com a morte de inocentes.
Aqueles que puderam interferir e não o fizeram a tempo, bem como aqueles que defendem que nunca se deve intervir em querelas locais, não lavarão tão facilmente suas mãos do sangue das vítimas de Srebrenica, nem deixarão tão cedo de serem atormentados pelos seus fantasmas.
P.S. Inúmeros dignatários estrangeiros, incluindo chefes de estado, estiveram em Srebrenica este final de semana para prestar suas homenagens aos mortos no massacre. Numa demonstração de que as tensões continuam vivas e muito bem, o primeiro-ministro sérvio Aleksandar Vučic foi expulso do memorial pela multidão muçulmana, que atirou objetos na sua direção. Vinte anos após o fim do conflito, os Bálcãs continuam inflamáveis como sempre foram.