Ontem, dois mil e quinhentos juízes foram demitidos. Juízes demitidos por causa de um putsch fracassado de soldados que ignoraram o alto comando militar?
Yvo Fitzherbert, The Spectator
trad. Daniel Lopes
Tarde da noite de sábado, apenas 24 horas após a tentativa de golpe, centenas de apoiadores do presidente Erdogan encheram a praça Taksim – coração pulsante da Turquia moderna, secular – para comemorar sua vitória com gritos de Takbir – “Allahu Akbar”, “Deus é Grande”.
A história – tão difícil de ser compreendida – já estava sendo escrita pela turba do Partido Justiça e Desenvolvimento. “Estamos aqui para dizer ao mundo que vencemos, e que somos a verdadeira Turquia. Essa é uma vitória contra aqueles gulenistas traidores”. Fethullah Gülen, um clérigo islâmico que mora na Pensilvânia, um dia já foi um aliado-chave de Erdogan, mas a relação há anos estava deteriorada. Erdogan acusou Gulen de estar por trás do golpe. Considerando-se que os militares turcos são defensores da tradição secular kemalista, tal acusação é improvável. Na verdade, “gulenistas” simplesmente se tornou uma palavra útil para Erdogan usar contra qualquer um que ouse discordar dele.
Os turcos acreditam em tudo e em nada. Suas divisões fazem aquelas entre Leavers e Remainers no Reino Unido parecerem flertes. Mas muito rapidamente ficou claro que o “povo” não iria apoiar os militares, e isso pode explicar por que todos os partidos de oposição saíram em apoio a Erdogan. O líder do Partido Democrata Popular (agremiação parlamentar pró-curda que Erdogan vem acusando de terrorismo) e o Partido Popular Republicano (kemalista, tradicionalmente próximo dos militares) denunciaram o golpe.
Agora, olhando em perspectiva, sobram perguntas. Que golpe mesmo foi esse? Seria o “povo” na verdade turbas de apoiadores de Erdogan previamente alertadas e prontas para tomarem o controle das ruas? Por que a junta militar tomou pontes e aeroportos em Istambul e vários órgãos governamentais em Ancara, mas deixou o presidente livre para convocar seus apoiadores a irem para as praças enfrentarem os tanques e defenderem a democracia?
A junta aspirante teve que escolher entre um banho de sangue ou a rendição. Embora dezenas de civis tenham sido mortos em confrontos em Ancara e Istambul, o exército não atirou em massa contra as concentrações. Ele pareceu aceitar que Erdogan tinha amplo apoio público, e ao mesmo tempo parecia acreditar o contrário.
Os turcos conhecem sua história, e lembrarão do golpe militar de 1960, quando o líder com inclinações islamistas Adnan Menderes foi preso. Menderes era popular na base turca da Anatólia, conservadora, mas foi rapidamente enforcado após julgamento pela corte estabelecida pelos golpistas. Ao contrário de agora, as massas conservadoras não saíram às ruas. O exército gerou medo, e todos devidamente obedeceram.
Agora nós temos a vingança do presidente por um golpe que ninguém entendeu? Erdogan usará esse episódio para mudar o foco do debate de suas políticas autoritárias, à medida que se reinventa como a voz do povo, o homem que enfrentou o exército. Ele agora pode saldar o déficit democrático que vinha se acumulando em sua conta. A besta kemalista ousou colocar a cabeça de fora novamente – Erdogan a arrancará. Falando a seguidores no distrito conservador de Uskudar, um subúrbio de Istambul, o presidente responder a pedidos de pena de morte dizendo que “não podemos ignorar essa demanda”.
No sábado, o Ministério da Educação encaminhou uma ordem para os diretores escolares de um distrito de Istambul. “Se professores usarem as mídias sociais para dizer que esse golpe foi um teatro, nos envie seus nomes e tomaremos providência”. Ontem, dois mil e quinhentos juízes foram demitidos. Juízes demitidos por causa de um putsch fracassado de soldados que ignoraram o alto comando militar?
Não surpreende que os turcos que não estão festejando nas ruas a vitória da democracia estejam escondidos em casa, olhando seus celulares, mandando mensagens codificadas uns para os outros sobre uma trama interna e um golpe “clandestino”. Mas o clima entre meus amigos turco é muito mais de desespero que de deboche. Com medo das gangues armadas agora em alvoroço pelas cidades, eles veem sua Turquia lhes sendo retirada.
Um soldado foi decapitado, um conhecido bairro da minoria alevita foi atacado. Erdogan liberou as turbas islamistas, que sabem que sua hora chegou.
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