Nossas classes dirigentes aspiram à universalidade jurídica dos Estados Unidos, mas esquecem que nos Estados Unidos um potente patriotismo solda as comunidades.
Guillaume Bigot, Le Figaro
trad. Daniel Lopes
Desde sua fundação por Hugues Capet, o reino da França teve que trabalhar pela unidade. A França não é algo inato, ela foi realizada pelas armas. Nosso país é, em seu todo, um projeto de unificação. Esse projeto foi bem sucedido, se tornou uma República “indivisível”, quadro jurídico de um povo sempre à beira de se desfazer. Mas essa “vontade de viver junto” que forjou a França não é um “viver juntos”. A França se tornou uma vontade forte que nunca gostou de ser contrariada.
Nosso povo é artificial e ultrapolítico. Em seu seio, as divisões são potencialmente inflamáveis. Os franceses toleram mal a diversidade de comunidades, difíceis de serem compatibilizadas com o ideal e a dinâmica nacional da unidade. Nossas elites não percebem o perigo. Profundamente americanizados, nossos dirigentes não compreendem o risco.
A grande nação jamais foi homogênea à maneira da Alemanha, que foi um povo antes de se tornar um Estado. A França jamais foi mono-étnica, pois suas tribos “de estirpe” tão diversas quanto os migrantes ampliaram sua base após um século. Os franceses exógamos não desejam viver “cada um na sua”, mas “unidos entre eles”. De outro lado, os algo-saxões não têm o menor problema com o véu islâmico, pois um WASP não se casa facilmente com uma paquistanesa ou nigeriana.
Esse idealismo ingênuo (“nossos ancestrais gauleses”), esse gosto pela unidade abstrata (“jardins à francesa”, “cartesianismo”, “dissertação”…), podem virar uma intolerância intratável. A França é terra de mistura, mas de uma mistura com potencial explosivo. Nossa fraternidade pode degenerar em ferocidade (as “fré-roces”, diria Lacan). Depois de Charlie, depois do Bataclan, depois de Nice e depois do que ainda virá, é vital impedirmos essa concretização.
Esse perigo é especialmente ignorado por nossa atual classe dirigente, que parece esquecer que a França, ao contrário dos Estados Unidos, não é uma terra de imigração. Os indígenas continuam sendo majoritários. Por uma singular inversão, a expressão “indígenas da República” designa precisamente os filhos dos alógenos. Vivemos em estado de negação.
Na presença desse fantasma dos Estados Unidos, somos convidados a respeitar as diferenças e a identidade de todas as comunidades. Todas com a exceção de uma… a comunidade “gaulesa”, à qual se pede que se contente em ruminar seus defeitos (Vichy, tortura na Argélia, etc.). Depois de manter e difundir a autoflagelação nacional por trinta anos, as grades curriculares, mas também as mídias e certos políticos, criaram uma minoria de alienados que não sabem mais quem são e, já que não podem se admirar, se odeiam. Até a tragédia recente, a maioria dos próprios franceses não estava certa de moralmente ter o direito de portar sua bandeira.
É verdade que os franceses cometeram crimes imprescritíveis. Claro, a colonização às vezes soube se mostrar odiosa. Não obstante, comparar-se com outros povos pode dar algum consolo e cessar a expiação.
A França jamais terá na consciência o peso do que os Estados Unidos irreparavelmente cometeram contra seus índios, nem carregará a culpa esmagadora de uma Alemanha cujo “grande conquistador” se suicidou, como havia vivido, ignominiosamente em um bunker. Nosso país tampouco precisa se prender aos remorsos que um dia corroerão a alma russa ou chinesa, quando a lembrança dos gulags ou da revolução cultural subir à superfície de suas consciências nacionais.
Nossas classes dirigentes aspiram à universalidade jurídica dos Estados Unidos, mas esquecem que nos Estados Unidos um potente patriotismo solda as comunidades. Todas as crianças fazem juramento à bandeira estrelada.
O novo problema é que a bandeira do amanhã que nossas elites empunham não é mais a tricolor, mas aquela de uma Europa sem alma nem substância política, e cujas principais realidades são monetárias (o Euro, a Política Agrícola Comum, ou ainda os fundos estruturais). Ninguém irá morrer por Bruxelas, pelo mesmo motivo que ninguém se deixará ferir pelos fundos de pensão.
Felizmente, a “grande nação” permanece uma realidade, ainda dormente, mas cheia de futuro. Uma realidade que tem pouco a ver com esse “viver juntos” que querem nos impor.
Se não se romper com esse passado que desgasta (“o arrependimento”) e com esse porvir que dissolve (“a França é nosso país, a Europa é nosso futuro”), despertaremos em um presente fraturado. Na França, nenhuma minoria jamais investiu contra a maioria sem pagar o preço. E esse preço muitas vezes foi aquele do sangue (huguenotes, vendeianos, nobres, colaboracionistas ainda em 1940).
É por isso que jamais se deve falar de “populações muçulmanas” para designar nossos compatriotas de confissão muçulmana, mas de um povo, o nosso, do qual eles devem doravante fazer parte integralmente. “Deve-se negar-lhes tudo enquanto nação e conceder-lhes tudo enquanto indivíduos. É preciso que eles não construam no Estado nem um corpo político nem uma ordem. Eles devem ser individualmente cidadãos”. O programa de Clermont Tonnerre para os judeus, aquele da Revolução, permanece de extrema atualidade. É por isso que se deve assimilar os muçulmanos. É por isso, também, que se deve assegurar a eles a promessa da fraternidade e da igualdade. É urgente que se faça a amálgama, único jeito de prevenir as amálgamas aterrorizantes.
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