O que a ruptura do PSTU sinaliza sobre a desorientação da esquerda brasileira.
O PSTU rachou. De novo. E desta vez o futuro do partido está em risco. Cerca de 700 militantes, entre quadros históricos e jovens ativistas, lançaram o manifesto “Arrancar Alegria ao Futuro”, no qual apresentaram sua divergência com a política de Fora Todos adotada pelo partido e apresentaram sua intenção de construir uma nova organização. A direção do partido reagiu com uma carta mui educada, na qual acusa os dissidentes de apoiarem um governo que “traiu miseravelmente os trabalhadores”.
Entender a mais recente ruptura do PSTU é importante porque essa organização é importante formadora de opinião no campo da esquerda. Porque das diversas rupturas anteriores surgiram correntes e lideranças influentes na política nacional, como Luciana Genro, Babá, Lindbergh Farias, Martiniano Cavalcante e Celso Pansera. E, portanto, entender as raízes deste racha ajuda a entender o Estado lastimável em que a esquerda brasileira se encontra.
(Esta contribuição se baseia na minha própria experiência no PSTU, de 1998 a 2001, e que acabou em outro racha. E não, não é uma análise marxista dos fatos.)
O PSTU e sua tradição trotskista peculiar
O PSTU surgiu em 1993, mas seu núcleo tem origem anterior, em militantes brasileiros exilados no Chile no final dos anos 1960. Com origens diversas no Brasil, ali tiveram contato com uma corrente trotskista liderada por um argentino conhecido como Nahuel Moreno.
Moreno processou a experiência própria da esquerda latino-americana entre o populismo e o stalinismo. Na Argentina, presenciou a marginalidade da esquerda marxista perante a hegemonia peronista nos sindicatos. Na Bolívia, uma experiência revolucionária liderada pelo sindicalismo mineiro, e onde a debilidade de uma organização trotskista com chance única de liderar uma Revolução colocou no poder um populismo de viés militar e nacionalista. Em Cuba, a combinação única de populismo e stalinismo sob a liderança de Fidel.
O resultado desta reflexão à quente, inspirada pelas eternas lutas fracionais dentro do trotskismo internacional, levaram-no a uma elaboração teórica ampla e única, e a uma incrível flexibilidade tática. Esta elaboração aparece em obras como O Partido e a Revolução, Revoluções no Século XX e Teses para Atualização do Programa de Transição. Esses textos são uma versão marxista dos gurus de management que costumam escrever na Harvard Business Review. A sua preocupação era tirar o trotskismo da marginalidade política sem prejuízo do seu caráter socialista e operário.
Isso resultava em iniciativas polêmicas do ponto de vista dogmático, mas bem sucedidas quanto ao movimento de massas e a construção das organizações. Na Argentina, apoiaram o governo militar na Guerra das Malvinas, e aproveitavam as manifestações para denunciar o regime. No Brasil chamaram a construção de um partido de trabalhadores com a participação da Igreja Católica, setores do peleguismo sindical (Lula) e do PMDB (FHC). Como resultado, conseguiram eleger o primeiro senador trotskista na Argentina e formaram a maior corrente interna do PT no início dos anos 1980, a Convergência Socialista.
Talvez o maior mérito de Moreno foi projetar, a partir da experiência polonesa, a queda do socialismo soviético por meio de manifestações de massas, e avaliar essas revoluções como progressivas e democráticas, ainda que não fossem socialistas. Ele morreu em 1987, sem vislumbrar o cumprimento de sua previsão.
Os herdeiros políticos de Moreno não estavam à sua altura. Como resultado, sua organização internacional, a Liga Internacional dos Trabalhadores, vive quase trinta anos de rachas e lutas fracionais impulsionadas pela marginalidade política e debilidade intelectual de suas organizações.
O PSTU no Brasil
Em 1992 a Convergência Socialista foi expulsa do PT por defender a palavra de ordem Fora Collor antes mesmo da entrevista bomba de Pedro Collor à revista Veja. A expulsão foi baseada em uma resolução que proibia as tendências de possuírem sede própria.
A partir deste momento, a corrente convocou outras organizações de esquerda, não necessariamente trotskistas, para formarem um novo partido de inspiração marxista-leninista. Aderiram grupos como os Coletivos Gregório Bezerra, uma ruptura à esquerda do PCB por fidelidade a Luís Carlos Prestes, e organizações de alcance regional. Desta articulação surge em 1994 o PSTU, como partido e legenda eleitoral.
A partir de então, a organização vive um intenso ativismo externo combinado com uma constante luta fracional interna. A Convergência Socialista era majoritária na nova organização, e atuou para torná-la mais homogênea e alinhada ao trotskismo de viés morenista. Com isso, de 1992 a 2003 houve seis rachas internos:
* Ainda em 1992, uma corrente interna da Convergência Socialista rompe e volta para o PT com o nome de Corrente Socialista dos Trabalhadores. Atualmente fazem parte do PSOL, e o grupo original se dividiu em dois: a CST, da qual faz parte o deputado Babá, e o Movimento Esquerda Socialista (MES), onde atua Luciana Genro
* Em 1997, é expulsa a TPI, tendência liderada pela fundadora da Convergência Maria José Lourenço
* Em 1999, o grupo liderado pelo sindicalista Claudionor Brandão é expulso sob acusação de entrismo, ou seja, atuar dentro do PSTU em favor de outra corrente. Desta ruptura surge a Liga Estratégia Revolucionária, que se reorganizou no Movimento Revolucionário dos Trabalhadores
* Em 2000, a TCR, outra tendência interna do PSTU, é forçada a uma separação amigável. Desta ruptura surge o Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL), atualmente Movimento Terra Livre. Um dos ex-líderes da tendência, Robério Paulino, é pré-candidato à prefeitura de Natal pelo PSOL, enquanto outro, Martiniano Cavalcante, é um dos principais articuladores da Rede Sustentabilidade em Goiás
* Em 2001 Lindberg Farias deixa o partido por defender o apoio à candidatura de Lula a presidente da República, retomando sua trajetória de deputado, prefeito e senador
* Em 2003 o grupo Socialismo e Liberdade rompe com o PSTU e adere ao movimento de construção do PSOL
A lógica de atuação neste período era insana. A política externa era definida mais pela luta interna que por análises precisas de conjuntura. Assim, no momento em que a direção do partido enfrentava tendências com propostas mais radicais e sectárias, propunham-se palavras de ordem de unidade e frente única com setores do PT e da CUT. Quando, por sua vez, a disputa era com correntes moderadas, denunciavam-se esses mesmos setores do PT e da CUT. Assim, por exemplo, construiu-se em 1999 um movimento de unidade da oposição para a direção da UNE, a Rompendo Amarras, para implodi-lo por dentro em 2000. Haja rivotril!
O PSTU e o período lulopetista
Após o racha do SOL em 2003, o PSTU viveu uma década de paz consigo mesmo. Por um lado, a disposição de enfrentar o pacto lulista pela esquerda unificou de certa forma o que restou do partido. O PSOL, de certa maneira, serviu de barragem para militantes de perfil mais moderado, fazendo com que o PSTU servisse de polo esquerdo da oposição de esquerda.
Além disso, o esforço do PT para conter rupturas de setores incomodados com o viés pró-capital dos governos Lula e Dilma foi direcionado para promover pautas relacionadas à liberdade de comportamento. Isso abriu um novo espaço para o PSTU, que pode se posicionar como a ala esquerda de movimentos LGBT, mulheres e liberação das drogas. Pôde também manter uma interlocução aberta com novos ativistas do Movimento Passe Livre.
Ao mesmo tempo, o esforço petista em direcionar recursos públicos para uma elite sindical permitiu ao PSTU construir seu próprio aparato sindical – a CSP-Conlutas – e estudantil – a Anel. No seu conjunto, o PSTU viveu o seu próprio “espetáculo do crescimento”, o que de certa forma mascarou as divergências internas, que permaneceram latentes. Enquanto o PSOL se perdia em rupturas internas entre setores vanguardistas e eleitoreiros, o PSTU aparentava ser uma ilha de zen-trotskismo.
Contudo, o impacto das mudanças na sociedade não poderia deixar de ser percebido. Sua inspiração bolchevique e sua limitada flexibilidade organizativa fez com que o partido desde sempre tivesse dificuldade de entender e lidar com modelos de mobilização em rede. Formas fluidas e líquidas de articulação militante não se encaixavam na mentalidade organizativa do PSTU. Por isso, vários dos novos ativistas mantinham com o partido uma relação de respeito, mas distante. Ao mesmo tempo, tornaram-se comuns os vazamentos ocasionais de documentos internos pelas redes sociais, em esporádicos Vatileaks. O modelo bolchevique de organização estava sendo desafiado pelos novos tempos.
A crise recente
O caldo entornou em junho de 2013. O PSTU procurou encontrar uma posição que fosse coerente, mas não conseguiu – como sempre – crescer e liderar o movimento que tomou as ruas naquele mês, até hoje incógnito para muitos. O partido enfrentou a crítica do uso de bandeiras, contestou a tática black bloc e ficou perdido perante os acontecimentos.
O período após as eleições de 2014 tornou-se ainda mais desafiador. Por um lado, a deterioração da governabilidade e o risco crescente de impeachment tornou-se uma pressão insuportável sobre toda a esquerda, capturada pela força psicológica da “narrativa do golpe”. O PSTU não seria diferente. Em grande parte, a ruptura atual é resultado desta pressão. Imagine-se ser um quadro sindical ou intelectual do partido tendo que explicar diuturnamente a militantes de esquerda o apoio ao impeachment. É uma força social, estrutural e concreta, que exige de quem a enfrenta uma elevada resiliência e flexibilidade.
Resiliência e flexibilidade que faltou à direção do partido. A marginalidade e o isolamento políticos também exercem uma força social sobre as organizações, geralmente intensificando o espírito de seita e o propagandismo. O Fora Todos da direção do PSTU não é fruto de uma leitura equilibrada da correlação de forças na sociedade, mas de seu dogmatismo e sectarismo, que fez ver no lulopetismo apenas uma facção da burguesia que o marxismo precisa combater.
Ortodoxos, dissidentes e trabalhadores – uma longa distância
Na esquerda brasileira, várias correntes políticas renderam-se ao conforto da marginalidade protegida pelo dogmatismo. Outras renderam-se ao caminho fácil do aparelho de sindicatos e mandatos. Poucas vivem em si a luta contra a marginalidade e o oportunismo. O PSTU é uma dessas poucas correntes.
Explicando um pouco melhor. De um ponto de vista sistêmico-estruturalista (de botequim), quando a pessoa está bastante inserida em um sistema, ele de certa forma molda o comportamento da pessoa. Quando, pelo contrário, ela está à margem do sistema, seu diálogo com este mesmo sistema é prejudicado. Ah, mas isso não é marxismo?! Não é mesmo!
Quando olhamos para o sistema político brasileiro, podemos afirmar que PT, PSDB e PMDB, por exemplo, estão o mais imersos possível neste sistema. Já os radicais de esquerda e de direita estão à margem do sistema – o que explica sua dificuldade de entendê-lo e operá-lo. O PSTU, deste ponto de vista, se equilibra entre a inserção – em um nível similar ao do PSOL – e a marginalidade. Nesta ruptura, a direção do partido optou pela marginalidade. Os dissidentes pela inserção. Mérito deles.
O problema é que tanto os dissidentes de hoje quanto os que permanecem fiéis à direção são vítimas de seu próprio dogmatismo. E o principal resultado é que ambos se tornam incapazes de compreender as contradições da própria classe trabalhadora que dizem defender e representar.
(Um parêntesis em boa hora: não estou julgando a validade ou não de uma perspectiva socialista e revolucionária. Estou julgando, isso sim, a necessidade de um projeto político ser viável, mesmo que proponha a transformação da sociedade. Quanto à mim, é bom esclarecer que há muitíssimo tempo substituí o socialismo revolucionário por um “liberalismo pela base”, combinando Polanyi e Schumpeter.)
É evidente que os últimos treze anos de lulopetismo representaram um grande retrocesso na educação política da sociedade brasileira. Se, por um lado, estamos falando mais de política, por outro estamos falando mais bobagem sobre política. O sucesso de um Bolsonaro é representativo deste fenômeno. O que tivemos, isso sim, foi o apogeu do rentismo e do assistencialismo como política de esquerda – uma séria distorção em relação ao que se apresentava nos anos 1990 como programa político.
Por outro lado, há uma explosão de novas formas de organização e de fazer política. As ocupações e desocupações de escolas são sinais deste novo tempo. Ambas as articulações se dão em rede, fora dos formatos organizativos tradicionais – embora ainda sejam organizações, menos hierarquizadas e mais fluídas, mas ainda organizações. Se considerarmos os insights da Box1824 sobre a juventude e a política, podemos esperar uma recuperação deste retrocesso do debate no médio prazo, à medida que os jovens de hoje forem assumindo posições de comando.
A saída para a esquerda brasileira hoje passa pela interlocução com essa vanguarda política da juventude, e por uma readequação da agenda no sentido das pautas de junho de 2013. Isso significa proteger as poucas conquistas sociais obtidas no lulopetismo, e ao mesmo tempo defender uma maior emancipação dos “batalhadores” por meio da educação, da melhoria dos serviços públicos e das lutas pelas liberdades individuais. (Ironia: a saída para a esquerda passa por torná-la mais liberal. Há!)
A direção do PSTU, neste sentido, é a mais perdida na batalha pela reinvenção da esquerda. Sua pauta é a pauta do atraso: atraso do dogmatismo teórico, e atraso ao tentar dialogar com os setores mais conservadores dos pobres. Uma diálogo, diga-se de passagem, inviável.
Mas o alerta que ela faz aos dissidentes é real. A nova organização que surge tem grandes chances de se tornar a ala esquerda do novo petismo que surge no pós-impeachment. E isso é um problema. Esse novo petismo – e isso é tema para um outro artigo – é a mera reação sectária e burocrática de uma camarilha criminosa que se protege atrás do discurso do medo, transmutado em narrativa do golpe. Associar-se acriticamente a isso, aderindo à “narrativa do golpe”, é um suicídio político.
Cabe a essa nova organização que surge, e aos esquerdistas que ainda não surtaram como Marilena Chauí, exercitar a criatividade para inovar e reencontrar os trabalhadores brasileiros. E, quanto a isso, não há fórmulas precisas. É preciso coragem, feeling e desintoxicar-se do dogmatismo marxista. Em resumo, fazer como Moreno.
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
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