Por meio de um diário, o personagem Francisco vivencia o fantasma da morte anunciada de sua mulher Susana, que está gravida, porém em coma após sofrer um AVC.
Na literatura, o luto vem sendo abordado de maneiras distintas por autores nacionais e estrangeiros, cada qual, à sua maneira, incursionando pela dor provocada pela morte, de modo a realizar não apenas a catarse de um passivo existencial, mas também como tentativa de compreensão dos mistérios da finitude ou para superação do trauma da perda.
Nesse mergulho em busca de uma leitura peculiar ou pessoal da “Indesejada das Gentes”, vamos percorrer autores e obras paradigmáticos, que lançam um farol sobre o escuro que os habitam (ou a seus personagens) nesse momento doloroso, não apenas para minimizar a angústia de uma ausência, mas também para estabelecer um diálogo afetivo e íntimo (e às vezes confessional) com aqueles que partiram, seja para enfrentar uma realidade vivida ou na elaboração ficcional de um luto genérico. Assim, nos deparamos com uma literatura de atmosfera dilacerante, que vai deslindando esse processo de aceitação ou compreensão do luto como condição inafastável e que deflagra no ser um desejo íntimo e catártico de transcendência, que leva à percepção do frágil liame entre a morte e o morrer, entre o nascer e o partir.
Essa relação com o pesar vai encontrar na bibliografia os mais pungentes momentos em que a expressão estética do sofrimento alcança também, e paradoxalmente, uma dimensão poética, como em Nada a temer, de Julian Barnes; O ano do pensamento mágico, de John Didion; Nora Webster, de Cólm Toibin; O brilho do bronze, de Boris Fausto; Diário do luto, de Roland Barthes; A desumanização, de Valter Hugo Mãe; Os verbos auxiliares do coração, de Péter Esterházi; e Carta a D – História de um amor, de André Gorz. São exemplos candentes e apaixonados de uma intervenção literária que vai além do simples relato ou do mero sentimento de exorcismo do terrível impacto que o desaparecimento de um ente querido é capaz de provocar. Tais situações, com todas as suas consequências emotivas muitas vezes incontornável, gera um estado emocional em que tristeza se mistura à culpa e acaba por prolongar a melancolia e a fragilidade e retardar a reconciliação com a realidade vigente ou com a própria vida.
Entre as obras que lidaram com a morte sem cair na exacerbação sentimental ou na caricatura da dor irremediável, podemos situar o recém-lançado romance A definição do amor, do escritor Jorge Reis-Sá, uma das vozes mais originais da ficção portuguesa contemporânea, autor também dos belíssimos Todos os dias (2007) e O dom (20009), publicados no Brasil pela Record.
O autor realiza uma profunda incursão nesse universo de estranhamento e incertezas por meio de um diário em que o personagem Francisco vivencia o fantasma da morte anunciada de sua mulher Susana, que está gravida, porém em coma após sofrer um AVC, inerte e inerme, levando uma vida vegetativa num leito de hospital. Desde a data da internação (3 de maio) até o desfecho final (13 de outubro, quando nada mais terá jeito), Francisco alterna as memórias e reflexões emotivas exteriorizadas em seu diário com o amálgama de outras vozes que se intercalam, em clave fragmentária, cujos textos designados como “Véspera” funcionam como uma perfeita alusão a uma espera de algo que não se concretiza e que igualmente são como distintas deambulações pelo território de outras dores.
Numa linguagem extremamente elaborada, Reis-Sá dá voz a um homem tão imobilizado quanto a esposa, porque dominado pela impotência diante da realidade que o impossibilita de salvá-la e ao filho que ela carrega e que divide com a mãe a fronteira entre a luz e as trevas. Nessa busca, autor e personagem se alternam numa comunicação plena e epifânica ao mapear a contradição de duas vidas num ventre e num corpo que convive simbioticamente com dois extremos, na medida em que a antecipação de um luto vem na esteira da anunciação de uma vida gerada em meio ao mundo inóspito da inércia materna.
Entre uma morta-viva e um ser (em gestação) vivo-morto que habita uma existência em estágio terminal (porque decretada a morte cerebral da sua progenitora) reside a metáfora da luta pela própria vida (e aí também se digladia com o dilema vital que sempre nos acompanha desde o nascimento, a peleja entre eros e thanatos). Esse relato, em síntese, carrega a força de um amor que busca entender os paradoxos de uma vida que deixa-se ir para que outra não se vá. Esse conflito metafórico – é preciso que a morte de um seja irrigação de um novo ser – está na raiz do (in)tenso diálogo que Francisco empreende, de forma hercúlea, para superar o abismo intransponível de uma verdade imutável e alcançar uma certa dose de resignação diante de sua impotência com a abrupta interdição do futuro e da impossibilidade de viver sem Susana, abduzida pela crueldade do existir.
O autor confere uma dimensão humana e não apocalíptica ao sofrimento, mas reconhece nessa história, a partir da belíssima epígrafe que toma emprestado do músico irlandês Bob Geldof e que abre o livro A lição de hoje é como morrer – que chegar e partir são apenas dois lados da mesma moeda, como cantou Milton Nascimento. E assim reafirma uma consciência racional sobre o lento aprendizado humano que cada episódio da vida nos delega na preparação para a morte.
Eis um romance impactante, que traz a definição do amor como uma (e)terna viagem ao que poderia ter sido e não foi, e que a lenta agonia e a situação-limite vividas pelo protagonista definiram o seu olhar agudo sobre seu destino, ao abrir suas confissões logo no início: “Envelheci hoje a minha vida inteira”. E para não sucumbir ao império das Parcas, ele escreve para não esquecer e para não esquecê-la.
Obra prima de um autor inventivo e versátil, que trata dos dramas pessoais com uma potência sensorial, uma carga emotiva, em linguagem depurada e extremo rigor estético, A definição do amor assegura o lugar de Jorge Reis-Sá entre os mais sensíveis estilistas da língua portuguesa.
Ronaldo Cagiano
Autor de Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral) e O sol nas feridas (poesia, Dobra Ideias), dentre outros. Mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e reside em SP desde 2007.