O drama de Will Andrews é mais antigo do que tudo e continua extremamente atual, assim como a sua opção desastrosa pelo niilismo.
Em sua clássica entrevista à Paris Review, Borges provocava os intelectuais e dizia que o épico nas artes – abandonado e desprezado pelos homens de letras do século XX – vinha sendo salvo exclusivamente por Hollywood e seus Westerns. E ele estava certíssimo: nesse mundo sério e sem graça da alta-cultura, de obras auto-referenciadas que não estão nem aí para os leitores e expectadores, o Faroeste foi – e ainda é – uma ilha de resistência onde sobrevivem os ecos da epopeia, da tragédia clássica e de seus conflitos morais, entre heróis, vilões e toda a base mitológica que sempre esteve por trás das grandes histórias.
Borges referia-se ao cinema, mas a verdade é que há também toda uma notável literatura épica de Westerns. Para ficar apenas nos grandes: Larry McMurtry e a tetralogia de Lonesome Dove, Elmore Leonard, e Cormac McCarthy (muito embora eu não consiga gostar de Blood Meridian). E sem essa besteira de obra “de gênero”: estamos falando de livros extraordinários na categoria única e geral de livros extraordinários.
E é exatamente nessa tradição que se insere Butcher’s Crossing, o Faroeste escrito por John Williams em 1960, agora traduzido (muito bem-traduzido) e lançado pela Rádio Londres.
Williams é mais conhecido pelo cult Stoner, o belíssimo romance sobre um filho de fazendeiros que larga o campo para ser professor de literatura na Universidade do Missouri. E, sob esse aspecto temático, a premissa de Butcher’s Crossing é diametralmente oposta à de Stoner.
O livro conta a história de Will Andrews, um estudante de Harvard que, na década de 1870, decide abandonar a universidade para viajar ao Kansas, em busca do seu “eu interior” na natureza selvagem. Andrews chega à cidade que dá título ao romance e logo parte para uma épica caçada de búfalos nas montanhas remotas do Colorado.
Williams não explica exatamente as razões pelas quais Will Andrews decidiu se afastar do mundo, descrevendo apenas as ideias vagas de
uma forma de liberdade e beleza, de esperança e vigor, que lhe parecia a base de todas as coisas mais familiares em sua vida, que não eram livres nem belas, tampouco cheias de esperança ou vigor. O que ele buscava era a origem e a salvação de seu mundo, um mundo que sempre parecia recusar as próprias origens, em vez de buscá-las.
Há diversas passagens como esta, às vezes até mesmo constrangedoras: “Protegido pelo campo e pelo bosque, ele não era nada; ele via tudo; uma corrente de alguma força sem nome circulava dentro dele”.
Em resumo, temos, assim, uma coisa meio de hippie.
E aí está o aspecto mais irônico de Butcher’s Crossing, porque John William escolheu usar essa premissa hippie no mais anti-hippie dos gêneros. Afinal, os Westerns são construídos no terrível embate entre o homem e a natureza. Os cowboys atravessam desertos, enfrentam ursos, búfalos, domam cavalos arredios, sofrem os efeitos do clima e lutam com índios – o ser humano no seu estado natural mais idealizado. Ou seja, os Faroestes são as últimas obras em que alguém conceberia essas historiazinhas polianas de se conectar com a energia dos rios, abraçar árvores e viver uma vida pura nas florestas.
Butcher’s Crossing mostra o engano dessa idealização de maneira cruel e irretocável. Já no início da expedição às montanhas, o traseiro de Andrews dói terrivelmente sobre o cavalo, os mosquitos e insetos não o deixam descansar, há exaustão, calor e o terror da sede – aliás, é primorosa a construção do suspense quando o grupo se desespera ao não conseguir achar água durante um longo trecho árido da trilha.
E a intenção de Williams está claríssima desde as epígrafes que abrem o livro: a primeira, de Emerson, ampara certa idealização do mundo selvagem; mas a segunda, de Herman Melville, alerta os poetas da natureza de maneira profética sobre a possibilidade real de congelarem até a morte numa pradaria qualquer.
A influência de Melville está presente em todo o livro. Não apenas o fato evidente de que a perseguição a Moby Dick é provavelmente o maior enfrentamento entre o homem e a natureza da literatura universal, mas especialmente na própria obsessão do líder da expedição – o durão calado Miller – pelos búfalos que precisa encontrar e matar. Como o famoso Capitão Ahab, na obra de Melville, a obsessão de Miller pela caçada é a hubris por excelência: descomedida, orgulhosa, e que também terminará por arruiná-lo. É a sua cega falta de prudência que levará o grupo a ficar ilhado nas montanhas durante o inverno rigoroso do Colorado, fechando o ciclo de todas as provações que a encantadora natureza pode proporcionar ao homem.
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Mas, se John Williams escreveu um romance que mostra a cretinice de uma idealização ingênua da natureza – satirizando cruelmente essa tosca visão new-age –, ao mesmo tempo, Butcher’s Crossing é um tributo à beleza estética do ambiente, em todos os seus aspectos materiais mais extraordinários.
Há descrições lindas e precisas de vales, rios e florestas, com detalhes de formas, luzes, cores e mosaicos da paisagem por que passam: “ao anoitecer, com o sol já posto, a relva ganhava um tom violeta, como se tivesse absorvido toda a luz do céu e não quisesse devolvê-la”. E também: “às vezes, ficava tudo claro e prateado, quando as gotas, atravessadas de sol, cintilavam como minúsculas agulhas vindas do céu para a terra macia”.
John Williams tem a técnica espantosa para criar um verdadeiro universo, em imagens precisas – essa espécie de Tolkien de chapéu e esporas. Como não enxergar as nuvens que parecem lápides, ou as “minúsculas gotas de suor acumuladas sobre o grosso lábio superior dela que captavam a luz do sol como minúsculos cristais”? Ou ainda a descrição de Miller matando búfalos em série: “A coisa toda pareceu a Andrews uma dança, um estrondoso minueto criado pela vida selvagem à sua volta”.
São representações extraordinárias, de um grande escritor que sabe a importância dos detalhes imaginados para conceber uma obra palpável, real, como a própria vida.
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Nesse universo assombroso, Butcher’s Crossing não é apenas o espelho do embate eterno entre o homem e a natureza, mas também, especialmente, a mais arrasadora vitória da natureza nesse embate.
Andrews e os seus três companheiros passam por terríveis provações no inverno opressor das montanhas e – spoiler alert –, no caminho da volta, perdem todas as peles que carregavam ao atravessar um rio traiçoeiro. As águas tragam a carroça e também o esfolador de peles Fred Schneider, como se mostrassem a inutilidade da própria tentativa. “Não é possível vencer”, parece querer dizer John Williams.
Há, a partir daí, não apenas um pessimismo sombrio, mas a impossibilidade de qualquer redenção. Os três sobreviventes da expedição retornam a Butcher’s Crossing de mãos vazias e encontram uma cidade-fantasma, arruinada pelo fim do ciclo do couro de búfalos. O mercado estava saturado e mesmo todas as peles que haviam ainda ficado separadas nas montanhas não serviriam a mais nada. Tudo então é naufrágio, fracasso, todo esforço é vão.
Macdonald, o homem mais poderoso de Butcher’s Crossing – então completamente falido – diz a Andrews que a vida é feita de mentiras, que não há nada além, e pergunta-lhe que diabos havia recebido em troca daquela aventura inconsequente. O silêncio do menino é arrasador, e há ali a construção de uma grande cena, por um grande escritor.
John Williams mostra então seu aparente desprezo por absolutamente todos os objetivos que a humanidade persegue para dar sentido à vida. O dinheiro é efêmero, como mostra Macdonald. Andrews passa dias trancado em um quarto com a prostituta Francine e o sexo não preenche o vazio do seu desencanto. A religião também não ajuda Charley Hoge, o ajudante faz-tudo da expedição, alcoólatra e puritano, que termina a história bêbado e louco.
Da longa viagem de Will Andrews em busca de seu “eu interior” na natureza selvagem, não sobra nada. Ele olha em volta e encontra apenas o absurdo e a mais completa falta de sentido.
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De certa maneira, Butcher’s Crossing não deixa de ser um espelho do mundo moderno. Ou não é familiar essa pretensão ilusória de tentar “se encontrar” em contato com a natureza, saltando de paraquedas, dando a volta ao mundo num veleiro, ou fumando maconha no maior visual daquela cachoeira? O drama de Will Andrews é mais antigo do que tudo e continua extremamente atual, assim como a sua opção desastrosa pelo niilismo.
No fim, desesperar-se porque a natureza não deu as respostas desejadas é apenas um non sequitur de segunda categoria. Essa busca estava fadada ao insucesso desde o início, como intuía o próprio Andrews no meio da expedição: “não entendia exatamente que tipo de fome ou de sede as montanhas aliviariam dentro dele”. Montanha nenhuma alivia essa fome, floresta nenhuma alivia essa sede.
Will Andrews estava apenas procurando no lugar errado, e o nome disso é imaturidade espiritual.
No final do romance, ele esvazia os bolsos e doa todo o dinheiro que ainda tinha, prometendo a si mesmo que nunca mais voltaria para casa. É a imagem da tentação de todos nós, e por isso dá vontade de agarrá-lo – e a sua imaturidade – pelo colarinho. Porque era justamente o contrário: a partir dali, o único caminho possível seria refazer os próprios passos, no longo percurso de volta para casa.
Rodrigo Duarte Garcia
Foi articulista e membro do conselho editorial da revista Dicta&Contradicta, e é autor do romance Os invernos da ilha (Record, 2016).