Keynes, Hayek e o grande debate de ideias que moldou o século XX.
1.
Ao concluir a leitura de Keynes X Hayek, permaneci por algum tempo com uma tranquila sensação de reverência a dois dos maiores pensadores da história recente. A grandeza intelectual de Keynes e de Hayek, e a força propositiva de suas personalidades, possibilitam uma breve fuga da insipidez quotidiana rumo àqueles espaços luminosos que somente pensamentos soberanos conseguem inspirar.
O livro de Wapshott apresenta um roteiro biográfico e arquivístico sobre Keynes e Hayek, e sumariza o impacto das ideias destes autores na política do século XX. O economês é tímido e se dilui em um texto agradável articulado na ótima tradução de Ana Maria Mandim. A suavidade da escrita contribui para que o trabalho consiga ser compreendido por leitores não iniciados em Economia. Inclusive, na obra, a Ciência Econômica é abordada de modo perfunctório, somente como estratégia acessória na tentativa do autor em responder, talvez primeiro para si mesmo, à questão que ecoa desde o prefácio: “quem estava certo, Keynes ou Hayek?” (p. 12).
No esforço de encontrar respostas para o grande dilema do século XX, Nicholas Wapshott — jornalista e ex-editor sênior do London Times e do New York Sun, também autor da obra Ronald Reagan and Margareth Thatcher: A Political Marriage — empreendeu uma narrativa habilmente encadeada em 18 capítulos e 351 páginas. Os livros e documentos históricos sobre a vida e a obra de Keynes e de Hayek foram consultados, o que se evidencia das excelentes notas ao final do trabalho. Além disso, Wapshott perscrutou os textos dos biógrafos mais importantes de ambos os autores, a exemplo de Roy Harrod, Robert Skidelsky, Bruce Caldewell e Alan Ebenstein.
A narrativa se inicia com relatos da primeira aproximação entre Keynes e Hayek no ano de 1927. Naquela oportunidade Hayek enviou uma correspondência a Keynes com a simples requisição de um livro. A obra solicitada era o compêndio de autoria de Francis Isidoro Edgeworth, escrito 50 anos antes, com o título Mathematical Psychics. Keynes respondeu em uma linha: “Sinto muito, mas meu estoque de Mathematical Psychics está esgotado”. O livro de Edgeworth anteciparia um grande número de debates do século seguinte, como as noções de concorrência perfeita, teoria dos jogos e, “de suma importância para a batalha pendente entre Keynes e Hayek, a crença de que a economia iria alcançar um estado de equilíbrio” (p. 14).
O fatídico encontro entre os autores ocorreu em 1928. Hayek se recordou deste evento como “o primeiro choque teórico com Keynes a respeito de alguma questão sobre a eficácia das mudanças das taxas de juros” (p. 66-67). A mística de Keynes hipnotizava os interlocutores, que “caíam sob o seu domínio tamanho era seu charme pessoal”, nas palavras de Hayek: “aqueles de nós que tiveram a boa sorte de conhecê-lo pessoalmente logo experimentaram o magnetismo de sua conversação brilhante, com seu amplo leque de interesses e voz enfeitiçante” (p. 18-19). A família de Keynes pertencia à aristocracia britânica e, em Cambridge, ele forjou várias amizades intensas com um grupo excêntrico, de ideias boêmias, que guiariam seus pensamentos e ações para o resto da vida. O grupo Bloomsburry contava com personalidades notáveis como Virginia Woolf, e compartilhava admiração pelas ideias de G. E. Moore, filósofo moral de Trinity College, que conferia enorme valor às amizades e à estética.
O talento magistral de Keynes é descrito detalhadamente por Wapshott, que noticia a habilidade do economista também nos corredores das burocracias estatais. Este foi um aspecto da vida de Keynes que o distanciou de Hayek: “enquanto Hayek era consumido pela teoria econômica em si mesma e mantinha uma distância deliberada da política, Keynes se interessava pela aplicação da Economia como meio de melhora da vida dos outros” (p. 20). Aos 42 anos, Keynes era mundialmente famoso por seu papel de negociador do Tesouro Britânico na Conferência de Paris, que foi a precursora do Tratado de Versalhes. “Ao revelar ao público mais amplo a intensa xenofobia e o espírito nacionalista que havia guiado as deliberações em Paris, Keynes se tornou uma figura celebrada não apenas na Grã-Bretanha, mas na Europa em geral, particularmente das nações derrotadas, Áustria e Alemanha” (p. 24). Keynes foi o herói de toda uma geração, inclusive de Hayek, e exorcizou a culpa que sentia por ter participado da burocracia de guerra com o livro The Economic Consequences of the Peace, publicado apenas sete meses após a assinatura do Tratado de Versalhes. A coragem e a clarividência da obra a tornaram uma sensação mundial imediata. “Keynes foi em certa medida um herói para nós, europeus centrais”, disse Hayek, principalmente porque teve a coragem de condenar os líderes britânicos, franceses e americanos pela cobrança de reparações paralisantes aos remanescentes da aliança derrotada. As predições de Keynes de que as pesadas reparações levariam à instabilidade e ao extremismo político e poderiam detonar outra guerra mundial se tornariam “previsões arrepiantes”.
Wapshott possui uma leitura talvez um pouco exagerada quanto à reverência que Hayek prestava a Keynes. Ao indicar Keynes como o “herói glamoroso de Hayek”, no título do primeiro capítulo, o autor pode induzir o leitor a imaginar uma consideração excessiva a Keynes que não correspondia à personalidade austera de Hayek. Além disso, muitas vezes Wapshott aponta para o livre mercadismo em uma perspectiva vinculada à interpretação que o laissez-faire assumiu na França, ao contrário do arcabouço teórico hayekiano embasado na tradição empirista inglesa, que remonta a Adam Smith no sentido da indispensabilidade de instituições para o bom funcionamento dos sistemas baseados na liberdade individual (Hayek buscou revitalizar Adam Smith para o século XX com a obra Os Fundamentos da Liberdade). Todavia, Hayek é um autor pouco compreendido até mesmo entre os defensores do liberalismo econômico, razão por que eventuais imprecisões conceituais de Wapshott, quanto à obra de Hayek, podem ser facilmente administradas por um leitor generoso.
No texto, Wapshott afirma que Keynes era um intelectual notável no âmbito da Economia e das Finanças Públicas, a ponto de ser recrutado, em 1914, para negociar um enorme empréstimo com os credores americanos após a declaração de guerra pela Grã-Bretanha. A opinião de Hayek sobre Keynes era endossada pelos principais scholars da época, a exemplo de Bertrand Russell: “O intelecto de Keynes foi o mais aguçado que já conheci” (p. 121). Keynes era reverenciado não só pelo seu brilhantismo acadêmico, mas também pela habilidade única em arrasar seus opoentes intelectuais. Todavia, possuía o mérito de desenvolver um interesse bastante amigável por aqueles que o enfrentassem com bons argumentos, consoante narra Wapshott. E Hayek, um jovem austríaco totalmente desconhecido na célebre Escola Britânica de Economia, teve a coragem necessária para adentrar totalmente nu na jaula do leão, e confrontar o mito John Maynard Keynes em território hostil.
Hayek, ao contrário da fama e da glória de seu principal oponente intelectual, possuía um espírito rebelde e incomum, ocultado pelo “paletó de tweed totalmente abotoado, e por uma mente organizada e meticulosa”, como informa Wapshott. “Diferente de Keynes, Hayek era um mau aluno e, por duas vezes, foi afastado da escola, como confessou: ‘porque criava dificuldades com meus professores, que se irritavam com a combinação de capacidade óbvia e falta de interesse que eu demonstrava’” (p. 34). Outro contraste entre ambos foi a participação de Hayek como combatente da Primeira Guerra, ao contrário de atuar em burocracias estatais quando jovem. E, em meio ao “tédio debilitante” do conflito, buscou conforto na leitura. Após receber um livro de Economia para ler na guerra, percebeu que a disciplina se tornaria a paixão de sua vida. Nessas leituras preliminares, “Hayek se interessou em como uma Economia de tempos de paz se transforma durante a guerra, quando o livre mercado dá lugar às necessidades do Estado. Leu o trabalho de Walter Rathenau, economista que se tornou político encarregado de matérias-primas para o esforço de guerra austríaco, ideias que segundo ele eram ‘definitivamente socialistas’” (p. 34). A alta rápida de preços foi impactante para Hayek, que se deparou com uma Áustria destruída pela guerra e pela inflação, na pesquisa de Wapshott: “Um par de sapatos, que custava 12 marcos em 1913, mudava de mãos por 32 trilhões de marcos uma década depois” (p. 34).
Wapshott também relata o abismo psicológico que separava os autores. Enquanto Keynes era um progressista com uma fé inabalável nos poderes da razão humana para melhorar a vida das pessoas, Hayek desde sempre foi um cético quanto aos poderes desta mesma razão para tornar o mundo melhor. A despeito disso, o progressismo de Keynes não continha elementos autoritários e nem centralizadores. O problema das teorias de Keynes consoante Hayek enfatizou em suas obras repousava, sobretudo, nas consequências não pretendidas pelo economista que, sem querer, acabava por fornecer aos burocratas um instrumento perigoso que poderia atentar contra as liberdades individuais. Conquanto tenha inspirado as políticas do New Deal, Keynes acreditava que o auxílio governamental para aliviar o desemprego só era apropriado no ponto baixo de um ciclo, ou durante a recessão, e que não era apropriado continuar a injetar dinheiro no sistema depois que a economia se recuperasse. “Apenas no caso de uma transição para o socialismo se esperaria que os gastos do governo desempenhassem papel predominante ano após ano. Quando se chega a um ponto em que o conjunto do trabalho e dos bens de capital de uma comunidade estão empregados, novos aumentos na demanda efetiva não terão qualquer efeito exceto o de elevar os preços sem limites” (p. 198). Em The Economics Consequences of the Peace, Keynes havia apontado para os perigos de a inflação sair de controle com base no uso de uma linguagem que seria usada contra ele por Hayek, e os seguidores da moeda sadia. Keynes lembrou aos leitores que o enfraquecimento das moedas era um convite à revolução: “Diz-se que Lênin afirmou que o melhor meio de destruir uma economia capitalista era corromper a moeda. Por um processo contínuo de inflação, os governos podem confiscar, secreta e sub-repticiamente, parte importante da riqueza dos cidadãos. Lênin certamente tinha razão. Não há meio mais discreto, nem mais certo de derrubar a base existente da sociedade do que corromper a moeda” (p. 37).
2.
Keynes era suficientemente lúcido para repudiar tanto o protecionismo quanto o socialismo marxista, as duas grandes tradições políticas que se opunham às soluções de livre mercado. Consoante Keynes, o protecionismo era plausível, embora errado. Por sua vez, desprezava ferozmente o marxismo, a ponto de se questionar “como uma doutrina tão ilógica e obtusa podia ter exercido tão prolongada e poderosa influência sobre as mentes dos homens”. O progressismo keynesiano foi bem recortado por Wapshott: “A coisa importante para o governo não é fazer coisas que os indivíduos já estejam fazendo, e fazê-las um pouco melhor ou um pouco pior, mas fazer coisas que, no presente, não são feitas de maneira alguma” (p. 53). A alta taxa de desemprego que perseguia a Grã-Bretanha no início dos anos 1920 começou a preocupar Keynes. Sua motivação era a compaixão pelos que não tinham trabalho e “a indignação pela economia estar organizada de tal modo que um grande volume de desempregados – 1,1 milhão, ou acima de 11,4% da força de trabalho, em julho de 1923 – era considerado necessário”. Nesse cenário, Keynes escreveu o artigo “O desemprego necessita de uma solução drástica?” (p. 48), e advertiu que o propósito do capitalismo estaria em perigo de “ataques de críticas de inovadores socialistas e comunistas” a menos que o governo, ou o Banco da Inglaterra começassem a administrar a economia (p. 49).
O progressismo é a marca da obra mais célebre de Keynes, The General Theory of Employment, Interest and Money, porquanto desde o primeiro parágrafo declarou que o alvo de sua teoria geral era a Economia Clássica. “Ele tinha em vista todos os que tinham vindo antes, não apenas Arthur Pigou, seu colega próximo de Cambridge, mas até seu generoso mentor Alfred Marshall. Mas, acima de tudo, Keynes saboreava a preparação de um ataque implacável aos seus arquirrivais da Escola Austríaca, Mises, Robbins e Hayek” (p. 179). Keynes demonstrou por que acreditava que, enquanto as demandas por aumentos salariais podem ser um fator de desemprego, elas não eram de forma alguma a principal razão do desemprego, como economistas clássicos insistiam havia muito. Keynes rejeitou a Lei de Say, que diz que uma oferta cria a sua própria demanda. “Negar a Lei de Say era central para o pensamento novo que pretendia refletir em termos de preferência por liquidez, a explicação de Keynes de por que a poupança não se traduz automaticamente em investimento” [181]. O desprezo de Keynes pela Economia Clássica fomentou toda espécie de ataques à obra desde a publicação em 1936. Arthur Pigou foi o primeiro economista a fazê-lo em uma edição da Economica, no mesmo ano de 1936: “O que Einstein, de fato, fez pela física […] o Sr. Keynes acredita ter feito pela Economia”, e continuou: “Einstein não insinuou, ao anunciar sua descoberta, mediante sentenças cuidadosamente farpadas que Newton e aqueles que até agora seguiram sua pista eram uma gangue de incompetentes desmazelados”, para então concluir: “O rebaixamento geral e a condescendência estendida a seu velho mestre Marshall são lamentáveis” (p. 209).
Por sua vez, Hayek admitiu que o trabalho de Keynes era difícil de confrontar (Hayek já havia atacado A Treatise on Money em 1931), porquanto se tratava de um relato mais macro do que microeconômico do funcionamento da Economia. Sugeriu que “era tormentoso expressar de forma adequada objeções à abordagem da Economia de cima para baixo quando seus contra-argumentos supunham que a chave para o entendimento da Ciência Econômica era de baixo para cima”, segundo narra Wapshott. Hayek admitiu certa vez que “o monetarismo de Milton Friedman e o keynesianismo têm mais em comum um com o outro do que eu com ambos” (p. 341). Friedman refinou Keynes com o monetarismo, e foi adotado como guia a partir de 1970, quando o mundo experimentou a estagflação. Friedman persuadiu economistas de que, em águas calmas, a economia seria mais bem servida por um aumento gradativo, moderado, previsível, da oferta de moeda. Na Economia, Friedman estava mais próximo de Keynes e, frequentemente, elogiava seus trabalhos, em particular A Tract in Monetary Reform. Todavia, quando se tratava de Política Friedman se encontrava alinhado a Hayek.
Hayek culpou bem mais os discípulos de Keynes do que o próprio mestre pelas tragédias econômicas do século XX. Segundo Hayek, Keynes havia desatrelado uma “geração de economistas negligentes”. Da pesquisa de Wapshott: “como disse Alan Peacock, jovem economista da London School of Economics, Keynes foi o ‘Kerensky da Revolução Keynesiana’, um líder moderado posto de lado por revolucionários mais agressivos” (p. 272). O pensamento keynesiano recebeu um empurrão, em 1948, com a publicação por Paul Samuelson, um estudante de Hansen em Harvard e professor no MIT, do livro Economics: An Introductory Analysis, que se tornaria a bíblia keynesiana. Nos 60 anos seguintes, 40 milhões de exemplares foram vendidos em mais de 40 idiomas, assegurando que o keynesianismo se tornasse a nova ortodoxia do mundo não comunista. Samuelson visualizava apenas duas opções: socialismo ou keynesianismo.
A profecia de Hayek, a respeito dos perigos das teorias de Keynes para recrudescer os poderes do governo, se cumpriu com exatidão, como bem informa a pesquisa de Wapshott:
Pela primeira vez o governo assumia o direito de administrar a Economia, ampliando poderes executivos muito além dos deveres constitucionais existentes para controlar a moeda e o comércio. Nos trinta anos seguintes, administrações de ambos os tipos levaram seus novos poderes ao limite, manipulando a Economia por meio de impostos e de medidas similares em uma tentativa de maximizar a prosperidade e conseguir a reeleição. A macroeconomia, o novo ramo da “ciência sombria” inadvertidamente fundado por Keynes tornou-se um instrumento oficial do governo dos Estados Unidos. Foi nessa época que os termos “microeconomia” e “macroeconomia” foram usados pela primeira vez: a microeconomia era o estudo dos elementos individuais de uma Economia; a macroeconomia estudava a Economia como um todo (p. 276).
Em The General Theory, Keynes concluiu que a demanda por produtos era equivalente à demanda por trabalho e, portanto, pressionara pelo aumento da demanda agregada como forma de prover pleno emprego. Hayek discordou profundamente da análise de Keynes, em razão da ausência de evidência empírica para a teoria. Nas palavras de Hayek: “a correlação entre demanda agregada e pleno emprego […] só se pode ser aproximada, mas, como é a única sobre a qual temos dados quantitativos, é aceita como a única conexão causal que conta” (p. 225). Na grande obra The Pure Theory of Capital, Hayek advertiu que Keynes teria nos oferecido aquela Economia da abundância ao negar a operação do livre mercado, com a redefinição de escassez como “estado artificial de coisas”. Wapshott aponta para uma “reveladora nota de rodapé” em que Hayek condena The General Theory “não por ser uma inovação imprópria, mas, surpreendentemente talvez, por ser o produto de um pensamento obsoleto”:
Hayek zombeteiramente descreve como “um dos maiores avanços da moderna economia” a rejeição de Keynes da noção de escassez de recursos, e se admira de que, Keynes, apesar disso, reconhece a existência de “gargalos” para explicar por que os bens se tornam escassos ao fim de um rápido desenvolvimento. Hayek achava “gargalos” uma designação incorreta: o termo aceito era que o mercado fracassava em equilibrar a oferta com a demanda. “Gargalos” era, portanto, “um conceito que a mim parece pertencer, essencialmente, a um estágio inicial ingênuo do pensamento econômico, e sua introdução dificilmente pode ser vista, em teoria econômica, como um progresso (p. 223).
Na conclusão de sua The Pure Theory, Hayek repreendeu Keynes por se concentrar nos efeitos de curto prazo dos problemas e soluções econômicas “não apenas como um erro intelectual sério e perigoso, mas como uma traição do principal dever do economista e uma grave ameaça à civilização” [223]. E anteviu o colapso mundial que as práticas políticas inspiradas em ideias keynesianas iriam causar: “é alarmante ver que, depois de ultrapassarmos o processo de desenvolver uma explicação sistemática das forças que, no longo prazo, determinam preços e produção, somos convocados agora a apagar isso a fim de substitui-la pela filosofia limitada do homem de negócios elevada à dignidade de ciência” (p. 223).
3.
Após a publicação da obra The Pure Theory of Capital, Hayek se desviou do amplo território da teoria do capital em direção a descobertas originais sobre os impulsos que norteavam o comportamento dos indivíduos no mercado. Em 1936, apresentou Economics and Knowledge e surpreendeu a todos com uma reavaliação do conceito de equilíbrio. Como informa Wapshott: “ainda mais importante, Hayek, pela primeira vez, quando discutindo a importância dos preços, descobriu uma nova abordagem que não apenas o distanciou ainda mais de Keynes, como também o situou como pensador original em lugar de mero seguidor da Escola Austríaca” (p. 215). Com base nesta nova linha de raciocínio, Hayek chegou a duas conclusões que iriam conferir coerência e unidade a toda a sua obra posterior: 1) a importância do sistema de preços como sistema de sinais, que reflete a sabedoria comum do que acontece em um mercado, e 2) os perigos de forças externas, a exemplo do governo, sobre esse sensível mecanismo “natural”. Caso um governante totalitário ou até planejadores apolíticos, aparentemente benignos, interferissem na Economia, na suposição de saber mais ou pensar que conheciam as mentes dos outros, eles, invariavelmente, frustrariam os planos e as liberdades individuais. Wapshott descreve a situação como o “momento eureca de Hayek” (p. 215).
A ocupação alemã da Áustria, em março de 1938, coincidiu com o fato de Hayek ter se tornado cidadão britânico. Desse modo, pode acompanhar de perto os “planos mirabolantes” de Keynes para fazer com que o Tesouro pagasse pela Segunda Guerra. “Keynes possui a mente mais fértil entre os economistas vivos. […]. Durante a guerra, lutei ao lado de Keynes contra seus críticos, porque Keynes estava extremamente contra a inflação” [232], disse Hayek mais tarde, “contando apenas parte da história quando sugeriu que foi ‘para aumentar a influência de Keynes contra os inflacionistas’ que não completou o volume de The Pure Theory of Money” (p. 232).
Wapshott informa que Hayek foi ostracizado após a publicação de O caminho da servidão, a obra que “revolucionou a sua vida”, e foi vítima de uma injustiça sem precedentes de críticos que pouco compreenderam a real pretensão de sua obra, como se o economista tivesse profetizado que todas as sociais-democracias se transformariam em regimes totalitários. Hayek se defendeu destes ataques infundados a cada nova edição da obra, e sustentou que sua oposição se dirigia, na verdade, à corrupção das mentalidades pela filosofia do estatismo, a ideologia que de modo dissimulado perverte todo o tecido social por meio do desequilíbrio dos gastos públicos, dos monopólios Estatais, do inflacionismo e do dirigismo sobre as esferas privadas: a tirania suave e benevolente profetizada por Tocqueville. Nos textos mais modernos de sua grande obra, Hayek empreendeu um duro ataque ao conceito de democracia, e revitalizou a noção com base na Antiguidade Clássica, para compreendê-la como governo das leis da maioria, leis estas que deveriam ser descobertas com base na moralidade da liberdade individual. Para o autor, a barbárie do século passado foi precedida pelo declínio do império da lei (rule of law é o conceito essencial para assimilar a obra de Hayek) também na Alemanha, fenômeno indissociável ao entendimento da democracia como corolário lógico de vontade da maioria.
Curiosamente, o capítulo 13 da obra de Wapshott, “A estrada para lugar nenhum”, também segue nesta mesma linha de imprecisões conceituais sobre uma das obras mais importantes do século XX. Todavia, a pesquisa documental confirma as teses de Hayek a respeito do uso da maquinaria keynesiana por governos apenas atentos em disputas eleitorais. Eisenhower foi o primeiro presidente a compreender completamente que manipular a economia com medidas keynesianas dava ao candidato uma vantagem eleitoral. Nixou se queixaria muitos anos seguintes de que se Eisenhower impedira suas chances de conquistar a Casa Branca pela primeira eleição. “Foi uma lição dura que todos os presidentes subsequentes aprenderam: o sucesso da urna vinha de administrar a economia para ajustar o ciclo de negócios de quatro anos. Aqueles que ousassem ‘fazer a coisa certa’ pelo déficit orçamentário estariam condenados” (p. 281).
Keynes leu O caminho da servidão quando rumava ao Hotel Bretton Woods, em New Hampshire, para presidir as negociações sobre o mecanismo internacional de moedas que tomou o nome do hotel “o tipo de órgão supranacional que fazia Hayek ficar nervoso” (p. 238). De acordo com Keynes se tratava de um grande livro: “Todos temos a maior razão para ser gratos a você por dizer tão bem o que precisa ser dito. Você não espera que eu aceite exatamente todos os comentários econômicos que estão nele. Mas, moral e filosoficamente, concordo com todo ele virtualmente; e não apenas estou de acordo com ele, mas em acordo profundamente comovido” (p. 239).
A comoção de Keynes com a obra de Hayek não foi gratuita, porquanto décadas se passaram, como Hayek também previu, até que as falhas nas teorias de Keynes aparecessem, denunciadas, sobretudo, pelo afável colega Milton Friedman, da Mont Pèlerin Society, que se confessava um admirador da obra de Hayek, a ponto de citar o pensador inclusive quando recebeu o Nobel em 1976. À época, a ideologia intervencionista cedia espaço a algumas reflexões de Hayek sobre a importância da liberdade como princípio moral a orientar a atuação do governo, e o mundo veio a reconhecer seu trabalho incansável pelas ideias da liberdade somente em 1974, ao laureá-lo com o Nobel. O título do discurso que o premiou não poderia ser mais provocativo: “A Ambição do Conhecimento”. Naquele dia, Hayek obteve reconhecimento como um dos principais teóricos do século XX, e com a coragem dos grandes homens munidos de um pensamento soberano sentenciou: “a teoria que guiou a política monetária durante os últimos 30 anos era fundamentalmente falsa”.
4.
Hayek faleceu aos 92 anos, ainda a tempo de assistir certas políticas pró-liberdade de Ronald Reagan e de Margareth Thatcher, e a tempo de saborear uma “saudável vingança” ao visualizar um modesto recuo das ideias keynesianas substituídas pelo monetarismo de Friedman, e a queda do marxismo-leninismo. Quando observou os acontecimentos se desenrolarem exatamente como previu, disparou: “Eu disse isso a vocês” (p. 317). Todavia, Wapshott informa sobre a opinião dos keynesianos a respeito da Reaganomics, que esta se tratava de um blefe, “um truque político que, por trás da retórica valente de Hayek sobre reduzir o tamanho do governo, deslanchou um chuveiro de gastos públicos na defesa que estimulou a demanda agregada e o crescimento econômico” (p. 317).
Consoante explicou Bruce Caldwell, na pesquisa de Wapshott, as opiniões de Hayek sobre Economia e Política estiveram fora de sintonia com as da intelligentsia: “Ele atacou o socialismo quando este era o considerado o ‘meio-termo’, quando aparentemente todas as pessoas de boa consciência tinham simpatias socialistas […]. Durante grande parte do século, Hayek foi alvo do ridículo, do desprezo, ou, talvez pior, para um homem de ideias, da indiferença” (p. 344). Hayek sumarizou, em 1949, o brilhantismo das ideias que defendeu, com absoluta coerência, por toda a sua vida: “o que precisamos é de uma utopia liberal, um programa que não pareça nem a mera defesa das coisas como são, nem uma espécie de socialismo diluído, mas de um radicalismo verdadeiramente liberal. A principal lição que o verdadeiro liberal precisa aprender do sucesso do socialismo é que eles tiveram a coragem de ser utópicos, com o que conquistaram o apoio dos intelectuais e, portanto, influência na opinião pública” (p. 345).
No último capítulo, Wapshott ensaia uma tentativa de resposta ao dilema que o mobilizou à escrita do livro. E traz a crise de 2008 ao contexto para tentar conectar Hayek à “crença em um mercado sem restrições” (p. 347), quadro institucional este que o economista austríaco jamais defendeu. Ao revelar suas interpretações quanto às supostas explicações de Keynes e de Hayek para a crise, é possível que nos sintamos encarcerados com o autor neste dilema. Será que Wapshott consegue escapar da propaganda ideológica que Hayek dedicou a sua vida a combater? Será que Wapshott realmente acredita que o mundo se encontrava desimpedido do big government até os fatídicos acontecimentos de 2008? E a obra A Desestatização do Dinheiro, de Hayek? A omissão ao livro, por Wapshott, foi mesmo acidental?
A pista para nós leitores, e até mesmo para o próprio Wapshott, parece residir na análise de um texto essencial de Keynes, publicado na The Nation e, citado na pesquisa de Wapshott: “somos trazidos à minha heresia – se é uma heresia. Eu faço entrar o Estado. Abandono o laissez-faire […]. Ele encarregou do bem-estar público a empresa privada, sem controle e sem ajuda. A empresa privada não está mais sem controle – está sendo reprimida e ameaçada de muitos modos diferentes […]. E, se a empresa privada não está mais sem controle, não podemos deixá-la sem ajuda” (grifo nosso, p. 51). Eis aí a encruzilhada mental, e também moral, que nós leitores deveríamos nos dedicar a decifrar, também com o importante auxílio de livros como o de Nicholas Wapshott.
Renata Ramos
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.