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por Lúcio Carvalho (01/07/2016)

Para além de qualquer necessidade de classificação, interessa mais saber de Benjamin sua intensidade interpretativa e seu estilo "expressionista" de cantar.

Benjamin Clementine

Se até poucos anos atrás as pessoas dependiam quase exclusivamente da seleção e escolha prévias de DJs de estações de rádio FM e do jornalismo cultural praticado por canais especializados em música para descobrir novidades, a expansão do universo da internet e serviços online vem proporcionado que cada vez mais as pessoas passem a criar e a gerenciar seus itinerários sonoros e também a surpreender-se por conta própria. Da mesma forma, é notório para as pessoas habituadas a ouvir música em meio digital que o incremento e a profusão de aplicativos online causaram uma espécie de ruptura no modo de consumir e ouvir música, perdendo-se nesse universo em contínua expansão qualquer senso de orientação a não ser o providenciado por algoritmos de programação, alguma inteligência artificial, meta-tags e, claro, anúncios pagos e patrocinados por selos e gravadoras. Além dos recursos obtidos por meio de módicas assinaturas individuais, é desses anúncios que sobrevivem boa parte dos aplicativos musicais atualmente mais utilizados, como o Spotify, Deezer, AppleMusic, YouTube e Google Play.

Fosse de outra maneira, em muito se dependeria ainda de que alguém apresentasse ou chancelasse o trabalho musical de um intérprete ou músico estreante para que ele se tornasse conhecido. Não mais. Agora, a torrente digital atropela em larga escala qualquer anteparo possível da crítica musical, até mesmo porque a profusão de novos nomes e estilos é igualmente incessante e também porque o ambiente virtual desconhece ou pelo menos não é limitado por qualquer espécie de fronteira. Se isso por um lado dificulta qualquer tentativa de filtragem abrangente, por outro proporciona uma liberdade incomum de transitar-se entre estilos e nomes singulares de qualquer ponto do planeta e vir a conhecer-se, por exemplo, artistas realmente impressionantes como, por exemplo, o cantor inglês Benjamin Clementine.

Não são muitas as pessoas que provavelmente já ouviram com atenção, na infinidade de novidades musicais diárias que publicam-se na internet, a voz de Benjamin Clementine, mas é pouco provável que, após escutá-lo, pudessem tê-lo esquecido. No caso dele, isso seria causado por muitas razões. Em primeiro lugar, pelo timbre e gravidade (tonal e interpretativa) incomuns de sua voz de tenor. Em segundo lugar, pela intensa carga poética e dramática de suas letras, o que também é incomum em se tratando de estreantes na música e, last but not least, porque também na infinidade de estilos e subgêneros musicais seria um tanto complicado decidir onde situar seu álbum de estreia, At Least for Now, registro sequer reportado ou notado no Brasil, lugar do planeta onde Benjamin ainda não colocou os pés, mas para onde felizmente a internet tratou de propagá-lo também.

Apesar de ter uma carreira bastante recente e de ter popularizado-se por cantar nas ruas e metrôs parisienses, quem escuta Benjamin logo pode perceber que ele restabelece o contato com estilos musicais e uma forma interpretativa nem um pouco contemporânea, se é que o tempo contemporâneo conte efetivamente com um estilo específico e não é marcado justamente pela multiplicidade e infinidade de estilos e tendências. Ainda que ele mesmo recuse a influência direta de Nina Simone e refira-se mais a influências do cancioneiro francês, como Jacques Brel, Charles Aznavour e Edith Piaf, por exemplo, é notável a forma com que ele explora a carga e poder da música negra, até mesmo porque é igualmente notável a semelhança do seu timbre vocal com o de Jimi Hendrix. Assistir sua interpretação de “Voodoo Child“, acompanhado somente ao piano, é uma forma simples e rápida de certificar-se disso.

Para além de qualquer necessidade de classificação, interessa mais saber de Benjamin sua intensidade interpretativa e seu estilo “expressionista” de cantar, como ele mesmo já o definiu. De um cantor que se fez literalmente nas ruas (inclusive como um legítimo homeless), como ele demonstra em “Cornerstone”, impressiona sua busca pessoal e sua sonoridade diferenciada, como se um tipo de cantor fora de seu tempo, uma vez que o predomínio repetitivo do pop e do rap parece quase obrigatoriamente limitar a capacidade criativa de novos músicos, pelo menos daqueles que ganham maior notoriedade e as maiores fatias do mercado musical. No caso dele, essa obrigatoriedade não se aplica. Pelo contrário, o que há nele é uma amplificação de estilos num repertório que vai do blues ao gospel, do folk ao erudito, flertando com o jazz e o rock, mas com uma sonoridade atemporal e uma carga poética inaudita, de um compositor que inclusive publicou um livro de poemas e tem para a consistência de suas letras o respaldo de uma vida nem um pouco fácil, passada em internatos e marcada precocemente pelo afastamento da família.

Não lembro exatamente como conheci as composições e interpretações de Benjamin. Creio que por um link ou uma sugestão algorítmica da internet, dessas que costumam dizer “Você também poderia gostar de…”, mas preciso reconhecer que tenho gratidão por quem o colocou no meu percurso de escuta virtual ao invés de outras soluções ou achados às vezes completamente infelizes. Também o ex-beatle Paul McCartney impressionou-se com sua capacidade vocal e interpretativa em uma de suas primeiras aparições ao vivo, em Londres, no ano de 2013, em um programa da BBC. O encontro rendeu, além do registro fotográfico, um estímulo ímpar para que ele insistisse na carreira e viesse em breve a gravar pela primeira vez em grandes estúdios, primeiro os singles de Cornerstone (2013) e Condolence (2014) e, logo a seguir, o álbum At Least for Now (2015).

Benjamin Clementine é inaudito e inesperado como uma de suas principais influências declaradas, a cantora transgênero Anohni, ex-Antony Hegarti, vocalista da banda Anthony and The Johnsons. Sua voz imponente é do tipo que não requer silêncio externo para fazer-se notar, mas que tem o poder de desligar os pensamentos de quem o está ouvindo. É como se ele não precisasse propagar versos irresistíveis ou embarcar em nenhuma espécie de calamidade sonora, mas lograsse suspender o discurso mental do ouvinte, sobrepondo-o com camadas de melodia e poesia a ponto de fazer fluir seu pensamento para os outros, materializando sua expressividade e rompendo a distância regulamentar da apreciação musical sem para isso abusar de recursos extraordinários, mas contando, pelo contrário, apenas com o estabelecimento da cumplicidade de quem conta uma experiência para quem possa estar interessado em entendê-la. Não se trata de ondas sonoras ou de uma produção perfeita, mas do talento comunicando-se de um modo que é praticamente impossível assistir-se ou escutar-se indiferentemente. Isto não costuma acontecer em qualquer sugestão musical da internet, mas é o que acontece quando se é apresentado repentinamente a um verdadeiro criador e cantor excepcional.

Ouça mais de Benjamin Clementine no YouTube, no Spotify, no Deezer e no iTunes.

Lúcio Carvalho

Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).

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