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“Prezados números!”

por Cassionei Petry (02/07/2017)

Sobre a obra clássica de Ievguêni Zamiátin, que pode ser chamado de “o pai das distopias”.

“Nós”, de Ievguêni Zamiátin (Aleph, 2017, 344 páginas)

Sistema Único de Saúde, Cadastro Único, Sistema Único de Assistência Social, Base Comum Curricular, o Enem como única porta de entrada para as universidades… Há muitas formas de o Estado cada vez mais dominar sua população. O último passo é o Partido Único e um único governante, um salvador. Muitos países viveram uma realidade semelhante e, ao que parece, aqui no Brasil não falta quem deseja seguir a mesma trilha.

Este tema é uma constante na literatura, ainda mais na ficção científica. Podemos citar o clássico 1984, de George Orwell, para ficarmos apenas em um autor que declarou admiração pelo romance Nós, de Ievguêni Zamiátin, que pode ser chamado de “o pai das distopias”.

Em que pese não ser uma boa narrativa, a obra é relevante por abrir caminhos e porque foi escrita em 1920 na antiga União Soviética, ainda no início da Revolução. Sem poder editá-la em russo, saiu primeiramente fora de seu país numa tradução inglesa e depois numa francesa. Como não poderia deixar de ser, o escritor sofreu represálias, teve seus outros trabalhos desprezados, mesmo aqueles que compactuavam com a cartilha do Partido Comunista. Por isso, Zamiátin pediu a Stálin, em uma carta reproduzida nessa edição, que a punição do seu “crime” fosse a deportação, no que foi atendido.

Para mim, como escritor, ser privado de escrever é como uma sentença de morte. Ainda assim a situação que se delineou é tal que eu não posso continuar meu trabalho, pois nenhuma atividade criativa é possível em uma atmosfera de perseguição sistemática, que aumenta de intensidade ano após ano. (…) Eu sei que tenho o hábito altamente inconveniente de dizer o que eu considero ser a verdade em vez de dizer o que pode ser conveniente no momento.

D-503, o protagonista, é o autor das anotações, numa espécie de diário, em que relata seu trabalho como matemático, responsável pela construção da Integral, uma espécie de astronave cujo objetivo é expandir a dominação do chamado Estado Único:

Espera-se submeter ao jugo benéfico da razão os seres desconhecidos, habitantes de outros planetas, que possivelmente ainda se encontrem em estado selvagem de liberdade. Se não compreenderem que levamos a eles a felicidade matematicamente infalível, o nosso dever é obrigá-los a serem felizes. Mas antes de recorrermos às armas, empregaremos a palavra.

O líder desse governo é chamado de Benfeitor, reeleito anualmente no tão esperado Dia da Unanimidade, em que é aclamado num grito uníssono, sem nenhum voto contrário, afinal, ele é quem mantém a população feliz, pois a priva da horrível liberdade individual.

Todos são chamados de números ou unifs, referente ao uniforme que usam. Vivem em casas de vidro, as células transparentes, cujas cortinas podem ser fechadas em dois momentos do dia, por uma hora, conforme estabelecido pela Tábua de Horas. Esses espaços de tempo são utilizados por alguns para um encontro íntimo entre os unifs, mas que deve ser previamente aprovado através de um cartão cor-de-rosa concedido pelo Departamento Sexual. D-503 aproveita o momento para escrever ou para se encontrar com a O-90, que também utiliza o cartão com R-13, um poeta. Nada de exclusividade. Os desvios das regras, por seu turno, são fiscalizados pelos Guardiões.

A história toma novo rumo quando uma unif chamada I-330 solicita um encontro íntimo com D-503 através do cartão cor-de-rosa. Ela mexe com a cabeça do conformado número que, mesmo ainda achando que é feliz na sua vida sem liberdade, acaba servindo aos planos de rebelião da unif. É levado para uma casa antiga, uma espécie de museu, onde em um dos cômodos I-330 bebe e fuma clandestinamente e começa a colocar dúvidas na cabeça de D-503. Quando ele diz que “ninguém é ‘um’, mas sim ‘um dos’. Somos tão semelhantes”, ela questiona: “– Você tem certeza?”

Interessante pensar naqueles que vivem durante anos anestesiados, pensando viver no melhor dos mundos possíveis, como o Pangloss, personagem de Voltaire na novela filosófica Cândido. Estes ficam felizes por migalhas. E se seus benfeitores caem do poder, fazem de tudo para que ele volte e, se voltar, com certeza será para cada vez mais ampliar seu poder de dominação de mentes. A literatura nos alerta para isso, apesar de não ser seu objetivo principal. Também pode, entretanto, servir ao poder, como vejo por aí em antologias-manifestos de gente que se calou durante anos de subserviência. Para estes, vale o que D-503 escreve:

Nós conseguimos extrair eletricidade desse apaixonado sussurro das ondas, das bestas salpicadas de espuma raivosa fizemos animais domésticos, e: exatamente da mesma maneira, domesticamos e dominamos os elementos poéticos selvagens de outrora. Atualmente, a poesia já não é o desregrado silvo do rouxinol: a poesia é um serviço estatal, a poesia é utilidade.

Cassionei Petry

Professor e escritor. Seu novo livro é Cacos e outros pedaços.