Uma lei que pretenda proibir notícias falsas está inevitavelmente vocacionada a ser utilizada como fundamento para censura e violação de direitos.
“Não há nada que tanto nos atire aos perigos
quanto a fome inconsiderada de deles escapar.”
Michel de Montaigne
Quem subestima a intensidade das transformações provocadas nas relações humanas pelo avanço tecnológico é convidado a acompanhar a mais recente celeuma nos ambientes digitais. Em qualquer plataforma aberta à expressão do pensamento, o tema do momento, a poucas semanas de eleições gerais, é o combate às fake news. De alguma forma as redes sociais teriam criado esse monstruoso fenômeno que ameaçaria a equivocada ilusão de uma democracia sólida e à prova de manipulação. Não que o assunto não seja sério; é muito importante que se discuta a disseminação de mentiras num ambiente pouco controlado e massificado como a Internet. A questão é que acreditar na possibilidade de resolver definitivamente o problema é trabalhar no sentido de atingir, ainda que involuntariamente, conquistas que custaram à sociedade contemporânea um alto preço.
Para que possamos ter uma discussão séria a respeito da questão, importa primeiramente resgatar os cruzados do combate às fake news de seus devaneios imperativos e de volta à realidade. A opinião pública sempre esteve sujeita não apenas a opiniões equivocadas e desprovidas de sentido, mas, sobretudo, a muita mentira friamente construída e sordidamente vendida como fato, inclusive por autoridades e agências de notícias. A história está repleta de exemplos a ilustrar a hipótese, para quem quiser pesquisar.
1. A capacidade de mentir
É muita ingenuidade acreditar que fake news decidam eleições apenas agora, quando a Internet e plataformas como Twitter, Facebook e Whatsapp (para citar apenas as mais populares) seriam utilizadas por agentes “maliciosos.” Ingenuidade porque, primeiramente, a imensa maioria dos usuários de Internet consomem outras fontes de ilusão, como Rádio, Televisão, Jornais Impressos etc. Em segundo lugar, ingenuidade porque as redes apenas registram, em códigos e sinais elétricos, as mentiras e opiniões furadas que as pessoas já propagam entre si no boteco após o futebol, no salão de beleza, no cafezinho do escritório, no ponto de ônibus, no clube de tênis, na reunião do sindicato e por aí vai.
O fato é que a Internet acabou com o monopólio da informação temerária (ou leviana) e da desinformação amplamente exercido por grupos específicos até a massificação do acesso à rede. Fake news sempre abundaram nas mídias hoje tidas por tradicionais. Afinal, uma característica peculiar de nossa espécie é que os homens mentem uns para os outros e para si mesmos, especialmente se motivados por fins coletivos, como ocorre, obviamente, em processos eleitorais.
Informação, manipulação de ideais, mentira e histeria são ferramentas comumente empregadas pelo homem para exercer domínio sobre o universo e seus semelhantes. Tudo isso se deve ao desenvolvimento do primeiro e maior artefato humano, como define Tom Wolfe: a fala.
Em seu último livro, O Reino da Fala (2016), Tom Wolfe, recentemente falecido, apresenta uma envolvente história sobre 150 anos de discussões e pesquisas acerca dos mistérios envolvendo o intrigante dom observado apenas nos humanos: a capacidade de articular sons para transmitir ideias, a habilidade da fala. De Darwin a Chomsky, Wolfe emprega humor, ironia e ceticismo à análise dos estudos sobre a linguagem para conceder algum especial crédito a nomes menos conhecidos como Alfred Wallace e Don Everett, que em seus trabalhos de campo ofereceram argumentos e provas contra a concepção da fala como capacidade inata, que decorreria da simples evolução de algo como a capacidade de canto apresentada pelos pássaros ou de comunicação gestual ostentada pelos orangotangos. Após concluir a jornada pela história da linguagem até os dias atuais, com a rendição do mundo acadêmico em 2014, que declarou não possuir respostas para a origem do fenômeno, Wolfe não deixa de entregar ao leitor sua própria teoria: o homem desenvolveu a fala/linguagem como um artefato, um instrumento de trabalho que lhe permitiu dominar não somente a natureza, mas idealizar e planejar seu próprio destino, elaborar explicações para seus infortúnios, conferir sentido às contingências do viver.
2. Informação e persuasão
O surgimento da cultura de forma geral, e das culturas, em forma ramificada, bem como suas transformações, está diretamente relacionada ao uso desta ferramenta, a linguagem, para o bem ou para o mal. Seja pela estruturação da comunicação e das organizações coletivas que possibilitaram a instituição da agricultura e assentamento nas primeiras comunidades, o surgimento das nações e a consolidação do comércio gentil, seja pela concepção de ideias e sonhos, a partir do momento em que se estabelece como canal de transmissão de ideias, fatos e conhecimento, a fala se transforma em útil ferramenta de negociação e persuasão. E persuasão, todos sabemos, não se promove apenas com dados irrefutáveis.
A justificação do emprego da mentira como recurso em defesa do bem contra o mal é uma constante na história do pensamento político e o filósofo Gabriel Liiceanu, em sua obra Da Mentira (2006) analisa o serviço prestado pela desinformação e pelo poder de se dizer “o que não é” à legitimação de tiranias e de regimes autoritários. Das tragédias em Sófocles ao jornalismo sob o comunismo soviético, passando por Maquiavel e a projeção do homem virtuoso capaz de um ato de vilania quando necessário, Liiceanu observa o fenômeno da mentira e da dissimulação como ferramenta em favor de algo maior, obviamente, idealizado, e geralmente, impraticável. Sempre houve alguém disposto a recorrer a uma “pequena” mentira, um mal por definição, em nome de uma “grande” causa, e é por isso que, conclui o pensador romeno, “toda a história dessa espécie é a expressão de uma fraude linguística.”
O poder da fala e da capacidade de propagar conhecimento – verdadeiro ou falso – na historia do homem é realmente inquestionável. Não à toa, dois dos momentos cruciais desta jornada ocorrem em momentos particulares de revolução na forma de comunicação: a invenção da imprensa por Gutenberg, no século XV, e a adoção massificada da Internet propulsionada pelo protocolo world wide web (o “www”) desenvolvido por um grupo de pesquisadores em Genebra no início dos anos 1990. Curiosamente, estas duas revoluções impactaram a forma como consumimos conhecimento até os dias atuais. Se vincularmos a informação à moda antiga aos jornais, rádio e televisão, é possível opor a esta forma “tradicional” de comunicação os “modernos” mecanismos de informação, notadamente, os portais da Internet e as redes sociais.
3. O fim do oligopólio da persuasão
A informação que tramita no ambiente digital é, por concepção da própria rede, descentralizada, livre e essencialmente democrática. O que poderia explicar a razão de a mídia tradicional ter adotado, desde os anos noventa, uma aguerrida tática de descrédito aos meios digitais como fonte de informação. De fato, o filósofo e sociólogo Pierre Lévy, especialista em sociedade da informação, registra em seu livro Cibercultura (1999) que a Internet, inicialmente pensada para usos militares e estruturada para resistir inclusive a ataques nucleares, logo passou a ter como principal utilização a troca de informações entre pesquisadores de instituições acadêmicas. Foi apenas no fim dos anos 80 que o público descobriu a praticidade e segurança da rede como sistema de correio eletrônico, passando, a partir de então, a canalizar um volume cada vez maior de informações.
Lévy ressalta que a natureza plural e por vezes caótica da Internet, descentralizada e democrática, certamente não está imune à ação de grupos ou pessoas mal-intencionadas. Contudo, ressalva que é exatamente nessa esfera, da possibilidade das intenções maliciosas, que a Internet, ao contrário do que aparenta, representa uma possibilidade real de batalha contra a desinformação. Afinal, como afirma o filósofo tunisiano, “é muito mais difícil executar manipulações em um espaço onde todos podem emitir mensagens e onde informações contraditórias podem confrontar-se do que em um sistema onde os centros emissores são controlados por uma minoria.”
De fato, não há como negar que hoje as informações podem ser rapidamente checadas e desmentidas pelas ferramentas de informação que a própria Internet disponibiliza. É preciso reconhecer que, se é verdade que a maior parte dos usuários da rede ainda está despreparada para o consumo consciente e desconfiado de informações, também é verdade que esse é o mesmo público que há pouco tempo estava sujeito a uma ou duas fontes de informação, e reféns, portanto, de possíveis deturpações maliciosas dos fatos. A persuasão pela desinformação não é mais uma arma exclusiva de poucos.
Ainda assim, a despeito da pluralidade e da impossibilidade de monopolização da informação, a cada boato ou farsa promovida por indivíduos na Internet, surgem novas proposta de regulamentação das fake news. Qualquer seja o tom ou argumento retórico que se empregue a tais iniciativas, o fato é que uma lei que pretenda proibir notícias falsas está inevitavelmente vocacionada a ser utilizada como fundamento para censura e violação de direitos.
4. A lei, a mentira e a verdade
A efetividade de uma lei que pretenda acabar com as fake news esbarra na inegável dificuldade de se distinguir entre notícia falsa (uma mentira) e uma opinião equivocada ou uma interpretação livre dos fatos. Se alguém diz que o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 foi golpe, isso é uma opinião ou uma mentira? À luz da lei e dos procedimentos legais, uma clara mentira. Contudo, assentada em interpretações históricas e ideológicas, uma opinião que não fere lei alguma, e, por mais absurda que soe, sua expressão é livre e constitucionalmente garantida.
Não se olvide, ainda, a possibilidade de uma legislação voltada ao combate às ditas notícias falsas acabar por reprimir as mock news, notícias fictícias que empregam de grande ironia e de paródia para fazer humor crítico, um dos elementos mais importantes na preservação de uma democracia efetivamente livre e saudável.
Excessos, como os ocorridos no recente caso da vereadora assassinada no Rio de Janeiro que teve sua imagem e reputação atacada por boatos infundados, já são alcançados pela legislação brasileira. Aliás, mentiras, falsas promessas, injúrias, calúnias e difamações, são combatidas com um enorme aparato legal que passa pela própria Constituição Federal, Código Penal, Código Civil, Código de Defesa do Consumidor e pelo Marco Civil da Internet, sem falar na construção doutrinária e jurisprudencial sobre o tema. O que não faltam são dispositivos legais que reprimam condutas maliciosas. Há um pouco de dificuldade na identificação de autoria destas noticiais falsas? Sem dúvida. Contudo, apesar da tecnologia ser relativamente nova, os investigadores vem obtendo resultados cada vez mais rápidos na apuração dos ilícitos, numa sequencia de pequenas vitórias que servirá para educar a comunidade digital sobre a responsabilidade de expressão que acompanha o livre exercício do opinar.
Ao contrário do que acreditam as vozes mais exaltadas dos que representam a visão clássica de informação, a população vem se educando, gradativamente, para este mundo em constante transformação. E se tem algo que a proliferação de fake news lega de importante, é a educação para o ceticismo e prudência na Sociedade da Informação, inclusive para o consumo desconfiado da informação vendida pela mídia tradicional, que a despeito da posição inquisitória, é também culpada dos mesmos pecados que denuncia genericamente.
O que é preciso ter claro é que o dito “combate” à epidemia de fake news não deve ser travado pelo processo legislativo, que envolve inegável risco de prejuízo à liberdade de expressão. Quem pode e deve encarar a natural tendência humana de criar mentiras, elaborar ilusões, aumentar um ponto, é a surpreendente e heroica vontade humana de alcançar o conhecimento por refutar tudo o que é falso, condenar o que é superstição, apontar o dedo aos sofismas: um combate que se dá no plano das palavras, no reino da fala, território da mentira e palco do restabelecimento da verdade.
Norival Silva Júnior
Advogado especialista em Direito Digital.
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