O espírito da música segundo Bento XVI

por Lucas Petry Bender (16/07/2018)

Entre não tomar conhecimento do abismo e exceder-se no abismo, a encarnação do Verbo na arte propõe um encontro com a realidade.

“O espírito da música”, de Papa Bento XVI (Ecclesiae, 2017, 200 páginas)

O crítico e professor universitário norte-americano Lionel Trilling relatou, em um ensaio dos anos 1960, a sua perplexidade diante do modo como seus alunos se relacionavam com as grandes obras da literatura moderna. Trilling observou que eles expressavam a experiência de ler autores como Tolstói, Dostoiévski, Joseph Conrad, Thomas Mann, entre outros, com um entusiasmo pueril e utilitarista, desprovido da verdadeira entrega de alma que tais obras requeriam – “ninguém se preocupava com a contemplação desapaixonada desses livros como forma de comunicar-se com uma realidade muito mais generosa do que aquela que surgia no cotidiano”, conforme definido por Martim Vasques da Cunha (A Poeira da Glória, pág. 356), que cita a seguinte reflexão de Trilling:

Pedi-lhes para que fitassem dentro do Abismo e todos, diligentes e contentes, fizeram exatamente isto, e o Abismo os cumprimentou com a cortesia séria comum a qualquer objeto que vale a pena ser estudado, respondendo: “Não sou interessante? E excitante, se considerar como sou profundo e quais são os animais terríveis que moram nas minhas entranhas. Tenha em mente que, se você me conhecer melhor, isto contribuirá para que seja um homem mais completo e bem formado.”

O modo de expressão irônico de Trilling trai a sua frustração – semelhante ao que ocorre com o professor Stoner no romance de John Williams – diante da mesquinha excitação provocada pelo abismo em seus alunos – quando se sabe que tais obras revelam o abismo voraz e incontornável da condição humana, que encanta e desencanta na mesma medida em que revela as grandezas e misérias do homem. É o que seguramente compreendeu o cineasta Luchino Visconti, ao usar repetidamente o sublime adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler para “narrar” a sua versão de “Morte em Veneza”, baseada no livro homônimo de Thomas Mann, e uma das obras citadas por Trilling em seu ensaio.

Passamos dos livros para a música para alcançarmos o ponto em que a arte – seja a literatura, o cinema, a música, as artes plásticas etc. – revela aquilo que Trilling sentia e sabia, aquilo inominado que nós sentimos e sabemos quando estamos diante do abismo, aquilo que não nos deixa esquecer que a matéria do cotidiano é permeável ao que experimentamos na arte, e vice-versa – que uma ganha sentido na outra, reciprocamente. Essa compreensão e essa sensibilidade, que podem parecer tão exigentes num primeiro momento, estão na base da cultura – quiçá de qualquer grande cultura, mas de modo especialmente fundamental na cultura ocidental, que por sua vez está enraizada no solo da tradição e da fé cristãs. E embora essa constatação também possa parecer muito exigente até mesmo ao cristão que ignore ou esqueça da importância da arte na gênese e no desenvolvimento da fé, é justamente essa a compreensão que o papa emérito Bento XVI (Joseph Ratzinger) demonstra no livro O Espírito da Música (tradução de Felipe Lesage).

No princípio era oração

A obra está dividida em três partes principais: 1) Os fundamentos teológicos e bíblicos da música sacra; 2) Liturgia e música sacra; 3) Antologia de textos sobre música sacra e música profana. Ao longo de todo o livro – fazendo referência desde os salmos até um compositor contemporâneo como Arvo Pärt, passando por Bach, Haydn, Mozart, Beethoven, entre outros – transparece a íntima relação de Ratzinger com a música, seja como epifania pessoal:

[…] tratava-se de uma música banhada em oração [Missa em dó menor, de Mozart], de um ofício divino no qual pudemos degustar algo da magnificência e da beleza mesma de Deus, que fôramos tocados por Deus pessoalmente. (pág. 141)

Seja como elemento bíblico:

O lugar ocupado pela música na religião bíblica pode ser medido muito simplesmente pelo fato de que as palavras “cantar” ou “canto” aparecem 309 vezes no Antigo Testamento e 36 vezes no novo. Trata-se de palavras entre as mais usadas na Bíblia. (pág. 115)

Ou como reflexão cultural:

A música religiosa tem sempre, portanto, a obrigação de buscar sua via novamente, combatendo em duas frentes: contra o orgulho puritano, ela deve justificar a necessária encarnação do espírito no ato musical; contra o cotidiano, ela deve buscar o caminho do espírito e do cosmos rumo ao divino. […] Quando estes êxitos são perseguidos na fé, o que se realizar não é uma mera atividade amável e secundária. Trata-se, ao contrário, de uma dimensão indispensável da vida cristã que se abre, uma dimensão fundamental do homem, sem a qual cultura e humanidade sucumbem inevitavelmente, corroídas ambas desde o interior. (pág. 53)

Ao desenvolver suas reflexões sobre a presença da música como elemento fundamental da sensibilidade e do rito cristãos, desde a gênese entre as comunidades dos primeiros séculos até os nossos dias, Ratzinger demonstra não apenas que vivencia a arte com aquela intensidade esperada por Trilling, como também ilustra o que o historiador britânico Christopher Dawson afirma em Criação do Ocidente, quando compara as estéticas pagã e litúrgica dos primeiros séculos cristãos, concluindo que “foi na expressão litúrgica da época que a riqueza poética, musical e artística encontrou seus meios mais criativos – uma expressão que nenhuma outra época posterior foi capaz de superar” (pág. 64-65), resultando também num florescimento espiritual que gestaria uma nova cultura.

Tornei-me uma questão para mim mesmo

Um dos exemplos que Dawson explora, também citado por Ratzinger, é a célebre conversão de Santo Agostinho, em que a música litúrgica desempenha papel decisivo, conforme narrado pelo próprio em suas Confissões:

Fomos batizados, e a angústia da vida passada fugiu de nós. Não me saciava, naqueles dias, da admirável doçura de refletir sobre a excelência de teu julgamento para a salvação do gênero humano. Quanto chorei, comovido profundamente por teus hinos e cânticos, que faziam ressoar suavemente tua igreja! Aqueles sons enchiam meus ouvidos e destilavam a verdade em meu coração; um sentimento pio transbordava dali, e escorria em lágrimas; e elas me faziam bem. (pág. 232)

Em seguida, Santo Agostinho explica que a prática de cantar em coro “hinos e salmos à moda das terras de Oriente” havia sido recém adotada pela igreja milanesa, sendo então transmitida e imitada para outros lugares do Ocidente. O episódio histórico da composição desses hinos remete à recusa do bispo Ambrósio em ceder duas igrejas para o culto ariano, heresia que havia ganhado a proteção do imperador Valentiniano e sua mãe, no ano de 385 ou 386. Incitada pelo bispo, a comunidade católica ocupou as igrejas, cercadas pelas tropas imperiais, até obter a revogação da decisão. A coleção de hinos ambrosianos, como designa a tradição católica, foi composta para que os fiéis mantivessem o ânimo ao longo dos dias de ocupação. “O santo povo pernoitava na igreja, pronto a morrer com seu bispo, teu servo. Lá minha mãe, tua ancila, entre as primeiras em solicitude e vigílias, vivia em oração. Nós, ainda frios ao calor de teu Espírito, contudo sentíamos a tensão da cidade atônita e turbada” (pág. 232-233), conforme narrado nas Confissões.

Na mesma obra, Santo Agostinho expressa de modo memorável a ambiguidade do prazer estético que a música proporciona – trecho bastante conhecido, mas que vale ser sempre relembrado, pois marca uma das passagens mais arrebatadores das Confissões, além de testemunhar o poder da música e de ilustrar a profundidade das raízes da arte cristã:

As volúpias do ouvido me amarraram e subjugaram com maior tenacidade, mas tu me soltaste e liberaste. Agora, confesso, encontro alguma satisfação nas canções que tuas palavras animam, quando são cantadas com voz suave e com arte, não ao ponto, porém, de me prender, mas de maneira que possa ir embora quando quiser. Todavia, esses cantos, associados aos textos que os vivificam e pelos quais penetram em mim, merecem no meu coração um lugar de certa dignidade, e mal consigo lhes tributar o que seria adequado. Às vezes, de fato, lhes atribuo um valor maior do que o oportuno, quando sinto que nossas mentes são comovidas mais intensa e piamente pelos próprios textos sagrados, se eles forem cantados assim, do que se não forem cantados assim, e que todas as afeições de nosso espírito, segundo sua diversidade, encontram seus modos próprios no som e no canto, pelos quais são estimuladas por não sei qual afinidade. Mas o prazer de minha carne, ao qual não deve ser consentido enfraquecer a mente, amiúde me leva à falta, quando a sensação não acompanha a razão como deveria, seguindo-a pacientemente, merecendo ser aceita apenas por causa dela, mas tenta precedê-la e conduzi-la. Assim peco nisso sem perceber, mas em seguida percebo.

Santo Agostinho prossegue, ponderando sua severidade diante da tentação do pecado, que chega ao ponto de cogitar que seria mais adequado que os salmos fossem apenas declamados, em vez de cantados. Ele continua:

Porém, quando relembro as lágrimas que verti ouvindo o canto da igreja no começo da reconquista de minha fé, e quando ainda hoje me comovo, não pelo canto, mas pelas coisas que se cantam com voz fluente e modulação perfeita, volto a reconhecer a grande utilidade dessa instituição. Oscilo, assim, entre o perigo do prazer e a experiência da salvação e me inclino, ainda que não por um julgamento inabalável, a me pronunciar a favor do hábito de cantar na igreja, para que, pelos deleites do ouvido, a alma mais fraca se aproxime do sentimento religioso. No entanto, como me acontece ser comovido mais pelo canto que pelo texto que é cantado, confesso cometer um pecado merecedor de castigo, e então prefiro não ouvir ninguém cantar. Eis onde estou! Chorai comigo e chorai por mim, vós que cultivais em vós algum bem, de onde procedem vossas ações. Quanto a vós que não o alimentais, esses relatos não vos comovem. Mas tu, Senhor meu Deus, escuta, olha e vê e tem misericórdia e me cura, eu, que perante teus olhos tornei-me uma questão para mim mesmo, e essa é minha doença. (pág. 285-286)

Encontra um alimento

Muitos outros exemplos semelhantes de relação direta – embora não sem ambiguidade – entre a estética musical e a revelação religiosa poderiam ser citados, dentro ou fora do âmbito litúrgico, ao longo de todos os séculos e tradições – como sintetizado pela filósofa mística Simone Weil (1909-1943):

Do mesmo modo, quando se presta perfeita atenção a uma música perfeitamente bela (e vale também para a arquitetura, a pintura etc.) a inteligência não encontra nela nada a afirmar ou negar. Mas todas as faculdades da alma, inclusive a inteligência, fazem silêncio e ficam suspensas à audição. A audição se aplica a um objeto incompreensível, mas que encerra realidade e bem. E a inteligência não capta nele nenhuma verdade, mas encontra um alimento. § Creio que o mistério do belo na natureza e nas artes (apenas na arte de primeira ordem, perfeita ou quase) é um reflexo sensível do mistério da fé. (Carta a um religioso, pág. 38-39)

Mesmo um descrente de amarga lucidez como o filósofo franco-romeno Emil Cioran (1911-1995) aborda a experiência musical através de arroubos místicos de rara capacidade expressiva, como ocorre com muita frequência em O Livro da Ilusões:

Ninguém experimentou com intensidade, com uma louca e incomparável intensidade, o sentimento musical da existência, a menos que tenha tido o desejo dessa absoluta exclusividade, a menos que tenha sido possuído de um irremediável imperialismo metafísico, quando desejara a ruptura de todas as fronteiras que separam o mundo do eu. O estado musical associa, no indivíduo, o egoísmo absoluto com a maior das generosidades. Queres ser só tu, mas não por um orgulho mesquinho, mas por uma suprema vontade de unidade, pela ruptura das barreiras da individuação, não no sentido de desaparição do indivíduo, mas de desaparição das condições limitativas impostas pela existência deste mundo. Quem não tenha tido a sensação da desaparição do mundo, como realidade limitativa, objetiva e separada, quem não tenha tido a sensação de absorver o mundo durante seus êxtases musicais, suas trepidações e vibrações, nunca entenderá o significado dessa vivência na qual tudo se reduz a uma universalidade sonora, contínua, ascensional, que evolui para o alto em um agradável caos. E o que é esse estado musical senão um agradável caos cuja vertigem é igual à beatitude e suas ondulações iguais a arrebatamentos? (pág. 8)

A carne da arte

Voltemos ao livro do papa emérito para refletir a respeito dessa tensão entre duas dimensões distintas do ser humano e da própria estrutura da realidade, que transparece nos relatos de Santo Agostinho e de Cioran. A síntese encontrada por Ratzinger vai no sentido de considerar a música como encarnação do Verbo – como espiritualização do corpo e como corporificação do espírito, simultaneamente. A matéria que vibra, que ressoa, que é tangida e trabalhada na voz e nos instrumentos musicais se converte em uma harmonia transcendente. Da mesma forma, os sentidos humanos passam por uma ascese que os orienta para além da reação instintiva ou maquinal, para além da resposta de reação prazerosa ou do puro deleite pessoal ou coletivo, encontrando um sentido que ganha plenitude ao ser conjugado à busca pelo encontro com a verdade, a beleza e a bondade.

[…] o desenvolvimento da grande música sacra ocidental, e mesmo de toda a música ocidental, foi contudo fruto dessa luta – a obra de um Palestrina ou de um Mozart não seria concebível sem esse processo dramático no curso do qual a criação torna-se instrumento do espírito, mas no qual o espírito torna-se, por sua vez, som e harmonia no seio da criação material, atingindo assim uma altura à qual ele jamais teria podido se elevar enquanto espírito “puro”. A espiritualização dos sentidos é a verdadeira espiritualização do espírito. (pág. 35-36)

Ratzinger considera que a transmutação do Verbo em carne, ao Deus se fazer homem, e o processo inverso da carne que se faz Verbo, a partir da ressurreição de Cristo, dá origem a uma nova unidade da realidade, que é refletida no fenômeno musical. Ao afirmar com todas as letras que “a transformação da fé em música faz parte do processo de encarnação do Verbo” (pág. 87), Bento XVI concorda desde um ponto de vista interno à Igreja o que já foi percebido também por pensadores da cultura contemporânea como Gregory Wolfe, para quem “toda a grande arte cristã é encarnacionista, porque a própria arte é o ato de unir forma e conteúdo, drama e ideia, meio e mensagem” (A beleza salvará o mundo, pág. 65). Percepção análoga também a da romancista Flannery O’Connor (1925-1964):

[…] todos os mistérios que alcançam a mente humana, exceto nos estágios finais da oração contemplativa, o fazem por meio dos sentidos. Cristo não nos redimiu por um ato intelectual direto, mas encarnou-se em forma humana, e fala-nos agora pela mediação da Igreja visível. Tudo isso pode parecer distante do assunto da ficção, mas não está, pois a principal preocupação do escritor de ficção é com o mistério tal como é encarnado na vida humana. (Mystery and manners: Occasional prose)

Seja feita a minha vontade

Diante das abordagens acima surge a problemática questão da autonomia da arte e do artista, que também é objeto da análise de Ratzinger. Na sua perspectiva, como já deve ter ficado evidente, não há obstáculo à liberdade da arte que se propõe a abrir caminhos para a eternidade. Bento XVI critica o “estetismo como fim em si”, que rejeita o fundamento de serviço a Deus e que nega a condição de criatura do homem, “o qual ela gostaria de elevar ao nível do puro criador”. Em oposição à fé cristã, a criatividade humana assim considerada alimenta-se de uma liberdade absurda, que gira no vazio e produz inverdades – como no caso da concepção filosófica e antropológica da modernidade, em que “por conta da virada idealista dada pela filosofia, o espírito humano passou a não mais ser receptivo – ele não mais recebe, ele não faz mais do que produzir” (pág. 68).

O problema da relação entre a cultura pop e a música também é enfrentado pelo autor, que classifica o rock e seus derivados como paixões elementares que assumem dimensão de culto ou anticulto nos grandes shows e festivais, seduzindo por meio da experiência coletiva de dispersão de forças vitais, que se afigura como uma breve e ilusória promessa de salvação. Bento XVI confia na capacidade da música em “abrir os espíritos e corações à dimensão do espírito”, em especial entre os jovens, que geralmente buscam confusamente a espiritualidade e a transcendência.

Ratzinger critica, ainda, a concepção baseada na obra do filósofo Schopenhauer (1788-1860), de que no fundamento da realidade não estaria a Razão ou o Verbo, mas a Vontade e a Representação – sendo a música a expressão mais original do humano, o que tem por consequência a depreciação da música submetida ou ligada à palavra.

Dessa exigência capital de se falar com Deus e Lhe cantar com as palavras que Ele próprio nos forneceu nasce a grande música ocidental. Ela não se originou por conta de uma “criatividade” pessoal na qual o indivíduo, tomando como critério essencial a representação de seu próprio eu, erige um monumento a si próprio. Tratava-se, antes, de reconhecer atentamente com o “ouvido do coração” as leis constitutivas da harmonia musical da criação, as formas essenciais da música transmitida pelo Criador no mundo e no homem, e inventar uma música digna de Deus, que seja, a um só tempo, autenticamente digna do homem e proclamadora em voz alta dessa mesma dignidade”. (pág. 141)

Assim no abismo como no céu

No entanto, permanece válido o campo específico da arte, que exige capacidade técnica e talento, embora tal aspecto não possua a autonomia desejada e proclamada pelo espírito da modernidade. Segundo Ratzinger, “as três condições da arte verdadeira expostas no Livro do Êxodo se impõem uma vez mais: o artista deve sentir que seu coração o impele ao trabalho; ele deve ter inteligência, o conhecimento, ou seja, a competência, o saber-fazer; e ele deve ter percebido aquilo que o próprio Senhor mostrou”. (pág. 68)

É o momento de voltarmos ao Morte em Veneza de Thomas Mann. Próximo ao final do romance, Gustav Von Aschenbach, o escritor que protagoniza a história, senta-se no chão de uma praça e, meio delirante, balbucia um monólogo revelador, cuja inspiração platônica está já degradada pelas desilusões da modernidade:

Pois a beleza, Fedro, grava bem isso, apenas a beleza é simultaneamente divina e visível; ela é, portanto, o caminho do sensível, ela é, meu pequeno Fedro, o caminho pelo qual o artista alcança o espírito. Mas tu crês, meu querido, que aquele que se encaminha para o espiritual pela via dos sentidos pode algum dia alcançar a sabedoria e uma verdadeira dignidade viril? Ou antes acreditas (tu és livre para decidir) que este é um caminho atraente, conquanto perigoso, na verdade um caminho equívoco e pecaminoso que necessariamente conduz ao erro? Pois é preciso que saibas que nós, poetas, não podemos percorrer o caminho da beleza sem que Eros se interponha, arvorando-se em nosso guia; sim, ainda que sejamos, a nosso modo, heróis e guerreiros disciplinados, somos como mulheres, pois a paixão é nossa sublimação, e nosso anseio não pode deixar de ser amor – para nossa satisfação e para nossa vergonha. Vês agora que nós, poetas, não podemos ser nem sábios nem dignos? Que fatalmente incorremos em erro, que fatalmente permanecemos devassos e aventureiros do sentimento? A maestria de nosso estilo é mentira e estupidez; nossa fama e respeitabilidade, uma farsa; a confiança depositada em nós pela multidão, altamente ridícula; a educação do povo e da juventude pela arte, um empreendimento temerário que deveria ser proibido. Pois, como pode servir de educador quem traz em si um pendor inato e incorrigível para o abismo? Bem que gostaríamos de renegá-lo e adquirir dignidade, mas para onde quer que nos voltemos, lá está ele a nos atrair. (pág. 90-91)

Interessa aqui compreendermos que se trata de alguém que sabe que o abismo da condição humana não é cortês e domesticado como supunham os alunos de Trilling; alguém que se coloca diante do abismo revelado pela arte sem condescendências acadêmicas ou diletantes. No entanto, a dignidade parece incompatível com tal autoconsciência. Nessa perspectiva – que está além da ingenuidade dos alunos de Trilling, mas aquém da síntese alcançada pela encarnação do Verbo – o amor se limita ao encanto de Eros, o erotismo se converte em devassidão, a maestria se esvazia no esteticismo, a beleza se faz feitiço traiçoeiro. Continua Aschenbach em seu monólogo:

É assim que renunciamos, por exemplo, ao conhecimento analítico, pois o conhecimento, Fedro, não tem dignidade nem rigor; ele é sábio, compreensivo e indulgente, não tem firmeza nem forma; simpatiza com o abismo, ele é o abismo. A este rejeitamos, pois, decididamente, e nossa única aspiração passa a ser então a beleza, o que quer dizer simplicidade, grandeza, um novo vigor, a espontaneidade reconquistada e a forma. Mas forma e espontaneidade, Fedro, levam à embriaguez e à cobiça, arriscam a levar um coração nobre a cometer um atentado atroz contra o sentimento, atentado que sua própria exigência de austera beleza repudia como infame – também elas conduzem ao abismo. Digo que elas nos conduzem, a nós poetas, para o abismo, pois não conseguimos elevar-nos, mas apenas exceder-nos. E agora eu me vou, Fedro. Quero que fiques aqui e só quando já não me avistares mais, só então, parte também. (pág. 91)

Entre não tomar conhecimento do abismo e exceder-se no abismo, a encarnação do Verbo na arte propõe um encontro com a realidade – encontro realizado com todo o coração, com toda a alma e com todo o entendimento.

Agnus Dei

Tudo posto, cabe perguntar se a incompreensão dos alunos de Trilling com relação às grandes obras da literatura não se reflete também na restrita participação da grande tradição musical na cultura contemporânea – em última análise, na dissolução do vínculo de relação direta entre a ventura humana e a eternidade do Criador, e no reconhecimento dessa relação como fundamento da cultura.

Que estímulo a cultura contemporânea oferece para que se reconheça como realidade viva o que sentiu Santo Agostinho ao ouvir aqueles hinos e cânticos? Ou para que se compreenda de coração o que fazia com que, por exemplo, Johann Sebastian Bach costumasse inscrever em suas composições as iniciais S.D.G. (em latim: Soli Deo Gloria – Glória Somente a Deus), inclusive em algumas de suas obras seculares? A que posição foi relegada a crítica cultural que assume o caráter sagrado da arte e da vida, como fazia o nosso eminente crítico Otto Maria Carpeaux, para quem a Paixão Segundo São Mateus era “’capaz de converter um ateu’. […] como uma mensagem que nos chega de um outro mundo que por misericórdia se digna de falar a nossa língua. Enfim: é uma Revelação, no sentido bíblico; por isso, já se deu a Bach o título de ‘quinto evangelista’” (Uma nova história da música, pág. 74).

A arte continua tocando nossos corações e os artistas continuam tendo suas capacidades técnicas desenvolvidas – resta-nos voltar a perceber “aquilo que o próprio Senhor mostrou”, o que só será possível se aceitarmos a aventura espiritual de nossas vidas, atravessando a noite escura de nossas almas com os olhos e ouvidos abertos; sobretudo, com o coração aberto a “expressar o infinito no finito, o todo no fragmento. Essa lei, que é a lei do amor – segundo Bento XVI (pág. 183) – é também a lei da arte em suas expressões as mais elevadas”.

Lucas Petry Bender

Servidor público, nascido em 1985, vive em Porto Alegre. Escreve sobre cinema em personacinema.com.br e no estadodaarte.estadao.com.br.

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