Diante dos acordes de João, toda a miséria da existência cessava por alguns minutos.
You make my life so glamorous,
You can’t blame me for feeling amorous!
(João Gilberto)
“About Gilberto… he could read a newspaper and sound good!”
(Miles Davis)
Nosso João foi levado aos Campos Elísios, tornou-se música. Seus hábitos reclusos e corpo cada vez mais minguado davam conta dessa paulatina transformação que poucos notaram. Há alguns dias, como despedida de seu estado corpóreo, jantou com sua atual companheira e também com seu advogado (confidente de leito) em um restaurante no Leme. Comeu ostras e lagostim, sua refeição favorita, sorriu para as câmeras de desconhecidos e abraçou garçons e motorista, como se abraçasse a mim e a você, ou seja, toda a legião de desconhecidos que sua música salvou e de quem agora se despedia.
João está definitivamente livre dos assédios, boatos, fofocas, problemas judiciais, financeiros e e toda a sorte de caricaturas que dele, há anos, se fazia na imprensa. Agora, com sua partida, abre-se espaço para que, com justiça, ele seja julgado e lembrado estética e não pitorescamente pelo legado que deixou e pelas existências que dignificou com sua música e não por suas peculiaridades de gente que era.
João virou acorde e caminhará para sempre entre nós. João é o Brasil. João é a virada do cordial para o amoroso na nossa música e também nas nossas relações, ele inventa, aliás, a amorosidade que a Bossa Nova transmitiu como proposta para todas as relações. Não à toa, Amoroso é o nome de seu mais belo disco. Havia uma música brasileira antes e uma outra depois do João. Seu violão foi a semente que produziu toda uma geração de compositores, intérpretes e ouvintes. João, com sua suavidade, nos ensinou a ouvir. Miles Davis, ao escutar a voz bruxuleante de João cantando “Desafinado”, disse: “he could read a newspaper and sound good!”, em uma tradução livre que tenta transportar o econômico inglês milesiano para o caudaloso português do samba: essa doçura soaria sublime, mesmo lendo matérias de jornal.
Diante dos acordes de João, toda a miséria da existência cessava por alguns minutos e todos nós nos tornávamos, ainda que momentaneamente, etéreos e sublimes como a sua voz. João foi uma dessas raras pessoas que se dedicaram de modo total para entregar à humanidade o seu melhor e, em contrapartida, torná-la mais rica e digna. Sem João não haveria o violão brasileiro tal como o conhecemos hoje. Sem João não haveria Bossa Nova. Sem João não haveria Bebel. Sem João não haveriam os principais discos da Bossa nova (“Chega de Saudade”, o disco de dividiu o átomo, “Getz & Gilberto”, que propaga a Bossa Nova para o mundo, “O amor, o sorriso e a flor”, um retorno ao samba, “Amoroso” e “Brasil”, possivelmente os dois mais belos discos já gravados). Sem João não haveria, aliás, o próprio Brasil como modernismo unificado em torno da bossa e dos ideais de polidez e intelectualidade. João prossegue vivo, caminhará a partir de agora não mais com suas vacilantes pernas, mas com a miríade de notas que ousou combinar e, ao lado de Tom Jobim, ecoará para sempre como a trilha sonora de nosso espírito nacional. Enquanto houver desejo de encontro, de serenidade e perfectibilidade sua música embalará, vibrante, todas as ainda infindáveis experiências humanas com “Barquinho de papel”, “Chora tua tristeza”, “Maria ninguém”, “Lobo bobo”, “Chega de saudade”, “Bim bom”, “Wave”, “Estate”, “Desafinado”, “Nanã”, apenas para citar algumas canções que sua interpretação divinizou e tornou arquetípicas.
João nasceu no Juazeiro da Bahia, em 1931. Em “Seara Vermelha” Jorge amado descreve o lugar como um areal inóspito onde até os cactos lutavam para viver. João sobreviveu. Sobreviveu às inesperadas enchentes do São Francisco, às piranhas, ao calor de desconsolo, ao abandono público, aos redemunhos de poeira que varriam periodicamente o lugar, à solidão que nunca o abandonou e, principalmente, sobreviveu ao rigor de Dona Patu, sua mãe, que lhe ralhava por ser avoado ao ponto de voltar pra casa da escola sem os livros (que perdera) e sem os sapatos (que inventara de enterrar enquanto jogava bola no campinho de areia). Sobreviveu e, mais que isso, tornou-se João Gilberto. Joãozinho de Dona Patu, a criança avoada que perdia livros e sapatos iria se tornar o Tamarineiro da música. Tamarineiros são árvores especiais que crescem em terra seca e estendem generosa copa em baixo da qual toda uma geração aprendeu a conversar e produzir mitos. O mito João nasceu igualmente à sombra dessa árvore sagrada. Foi embaixo de um Tamarineiro, na praça da Matriz no Juazeiro que, em 1945, João aprendeu a tocar seu violão presenteado por um tio boêmio. Levou-o para Aracaju onde estudava num colégio da diocese e, de volta ao Juazeiro, completa sua transformação embaixo da árvore quando se funde ao violão e à música como coisa única. De lá saiu para Salvador, depois para o Rio, para Nova York, Japão, de volta ao Rio somente para agora compor parte significativa da eternidade que nos sustenta. Nessa eternidade, hoje, ele janta com Jobim e Vinícius, seus companheiros que se encantaram antes dele e já são, há muito mais tempo, acorde e verso.
Muito obrigado, João. Muito obrigado por tudo. Eu sou um dos que tua obstinada dedicação salvou.
Pedro Gabriel
Psicanalista, mestre em Psicologia pela UFPE.