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Um muro na Palestina

por Daniel Lopes (17/08/2009)

por Daniel Lopes – Antes de mais nada, o conflito Israel-Palestina envolve uma “camuflagem semântica”. A definição é do jornalista francês René Backmann, redator-chefe e editor de Mundo da Nouvel Observateur, uma das melhores semanais do planeta. Através dessa camuflagem, Cisjordânia vira “Judéia e Samária”, as colônias israelenses lá e em Gaza são meros “assentamentos” e, […]

por Daniel Lopes – Antes de mais nada, o conflito Israel-Palestina envolve uma “camuflagem semântica”. A definição é do jornalista francês René Backmann, redator-chefe e editor de Mundo da Nouvel Observateur, uma das melhores semanais do planeta. Através dessa camuflagem, Cisjordânia vira “Judéia e Samária”, as colônias israelenses lá e em Gaza são meros “assentamentos” e, exemplo ainda mais revelador, o braço do exército israelense nos territórios ocupados responsável por lidar com a população nativa vira “administração civil”.

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O “muro de segurança” que começou a ser construído em 2002 é um outro exemplo do jogo de palavras. Seu traçado avança em vastas áreas da Cisjordânia, “protegendo” diversas colônias, muitas das quais nunca tiveram problema com terroristas e que, de qualquer forma, são construções ilegais de acordo com o direito internacional, localizadas muito além da Linha Verde estabelecida pela ONU para servir de fronteira entre os estados de Israel e Palestina. Um sério indício de que trata-se na verdade de um muro de anexação, são as terras constantemente “requisitadas” aos palestinos, grande parte agricultável, por motivos de “segurança nacional”.

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O muro vem quebrando laços econômicos, sociais, familiares. René Backmann visitou Israel e a Cisjordânia, vilas palestinas e colônias israelenses, conversou longamente com autoridades dos dois lados e com grupos de defesa dos direitos humanos. Seu Un mur en Palestine é talvez o mais esclarecedor painel sobre a questão escrito até o momento. Foi publicado em 2006 e ganhou este ano uma edição revista e ampliada. Uma legítima peça de jornalismo in loco, e quase escrevo jornalismo com J maiúsculo, pra diferenciar esse livro corajoso, generoso, bem pesquisado, bem escrito, das informações relaxadas que a maioria da mídia ocidental passa ao público quando o assunto é Oriente Médio. Embora cubra vastamente os dois lados (é de dar inveja a rede de contatos que possui no establishment político-militar de Israel), em nenhum momento o autor se deixa enganar ou se emprega em enganar o leitor com falsas simetrias.

Aqui está Backmann em Jerusalém Oriental, constatando que o muro de anexação vem para demolir laços históricos. Em uma área palestina em que todos se visitavam e livremente iam e vinham – para fazer compras, ir ao colégio, ao médico, ao trabalho –, “De um dia para o outro, como por um cruel passe de mágica, o outro lado da rua, os vizinhos, os comerciantes, o horizonte, o sol nascente haviam deixado de existir, apagados pelo muro.”

Alunos encontram dificuldades para ir às escolas e à universidade, comércios são arruinados pela queda no número de fregueses e dificuldade de fornecimento. Em caso de urgência médica, o incrível sistema de check points estabelecido por Israel entre a população árabe muitas vezes representa a diferença entre viver e morrer. Relata o médico Adnan Anafeh:

Em caso de urgência ou complicação, deve-se fazer vir uma ambulância de Belém ou de Ramalah e ir até o hospital de Ramalah. Quer dizer, entrar em contato com as autoridades israelenses, obter as autorizações necessárias para atravessar os check points e transportar o paciente pelas ruas estreitas e sinuosas que contornam Jerusalém. Isso pode levar trinta e cinco minutos ou três horas. Sobretudo à noite. Em caso de hemorragia interna ou de ataque cardíaco, esse tempo perdido pode ser fatal para o doente. Você acha que os israelenses pensaram nisso?

Passemos desse caso hipotético de Jerusalém para um real da Cisjordânia. René Backmann relata:

Em fevereiro de 2004 – o incidente é comprovado por um documento da agência das nações unidas para o auxílio a refugiados palestinos –, uma criança de 2 anos, sofrendo forte febre e convulsões, não pôde ser transportada rapidamente ao hospital de Qalquiliya, a passagem de Ras-Atiya estando fechada. Seus pais e o médico que lhe acompanhava tiveram que fazer um retorno de mais de uma hora pelas vilas de Izbat Salman, Kafr Thulth e Azzun para poderem chegar a Qalqiliya, e a criança morreu no caminho.

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Helmut Konitzer, alemão que trabalha em comunidades cristãs de Jerusalém, observou a René que, quando os primeiros blocos gigantes do muro do Oriente Médio estavam sendo firmados, entre os dias 13 e 14 de agosto de 2002, faziam exatamente 41 anos que o primeiro tijolo do Muro de Berlim fora posto no chão. “Um detalhe”, escreve René, “a que sem dúvida ninguém prestou atenção, naquela noite, mas que não poderia escapar a um alemão.”

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Em um artigo de 1923, escreveu Vladimir Jabotinsky, pai ideológico do partido de direita Likud: “Nossa ação de imigração na Palestina deve portanto, ou acabar, ou continuar sem que nos detenhamos diante da posição dos árabes; de tal forma que nosso estabelecimento possa se desenvolver sob a tutela de uma força que não dependa da população local, ao abrigo de uma muralha de ferro a que essa população não poderá jamais fazer frente. Tal deve ser nossa política quanto à questão árabe.”

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As frequentes e longas incursões do muro de anexação Cisjordânia adentro isolam comunidades palestinas em verdadeiros bolsões, separados uns dos outros pelo muro ou por vias de acesso exclusivas para israelenses ou de passagem estritamente regulada. Muitas vezes, para visitar parentes ou fazer compras em outra área, os indivíduos são submetidos a uma burocracia tremenda, em que “coisas simples se tornam complicadas, gestos banais se tornam impossíveis”. Isso igualou o dia-a-dia dos palestinos ao que René Backmann define como um “quebra-cabeça kafkiano”. Segundo relatório da ONU de meados do ano passado, o número de palestinos nas “zonas fechadas” (termo diplomático dos bolsões) era de 35 mil na Cisjordânia, mais 250 mil em Jerusalém Oriental.

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Arnon Sofer, da Escola de Defesa Nacional do exército israelense, e especialista no “perigo demográfico árabe”, deu no início desta década uma palestra com planos para a construção de uma “cerca” para somar definitivamente a Israel as colônias mais populosas da Cisjordânia e bairros de maioria judaica de Jerusalém Oriental, incorporando assim, oficialmente, 400 mil colonos e garantindo o caráter judaico de Israel. Na plateia, Ariel Sharon, que assim que chegou ao posto de primeiro-ministro mandou chamar o Sr. Arnon a seu gabinete. Sharon estava de início reticente quanto à construção de um muro para conter ataques terroristas – por causa de sua oposição a qualquer atitude que pudesse ser vista por inimigos e aliados como um ato de fraqueza, puramente defensivo, e porque o projeto desagradava aos extremistas da direita religiosa e nacionalista, que temiam (e temem) que o muro seja um futuro impeditivo para uma maior expansão e o fim do sonho da “retomada” da Grande Israel.

Mas a comoção causada na opinião pública após ataques de palestinos contra israelenses (após rejeitarem a “generosa” oferta de Sharon para a construção de um estado palestino sobre 42% das terras da Cisjordânia) obrigou o primeiro-ministro a tomar medidas mais drásticas. O que começou em meados de 2001 como a execução de um plano de segurança que previa a criação de uma “zona se separação” entre israelenses e palestinos de “meros” 80 quilômetros, em abril de 2002 tomou contorno mais amplo, com a previsão de incorporar três grandes porções da Cisjordânia. Hoje, mais de 400 quilômetros de barreira foram erguidos (entre cerca convencional, de arame farpado e o muro propriamente), de um total planejado de mais de 700.

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Outro homem público que ajudou a convencer Sharon da construção do muro foi Abraham Dichter, à época deputado pelo Kadima, mesmo partido de Sharon. Para Dichter, “barreiras altas fazem bons vizinhos”.

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O estrategista Uzi Dayan conta que em 2002, quando recebeu ordem de Sharon para levar adiante a primeira fase da construção, propôs três “parâmetros” sobre os quais fundar sua ação, segundo ele logo aceitos pelo chefe: “Primeiro: eu deveria fornecer a melhor segurança possível aos israelenses. Segundo: eu deveria incluir a oeste da barreira o menor número possível de palestinos e o maior número possível de israelenses. Por fim, eu devia me esforçar para não perturbar a vida cotidiana dos palestinos.”

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Netzah Mashiah foi o engenheiro encarregado por Sharon de chefiar a esquipe responsável pelas construções. Saído das forças armadas, onde serviu por 23 anos, Mashiah esclarece que as terras “requisitadas” aos palestinos por Israel “por motivos de segurança” e sobre as quais o muro passará, “não significa que nós nos tornamos proprietários das terras. Nos as reteremos apenas enquanto durar a missão a que a barreira se destina: fazer desaparecer o terrorismo. Partimos do princípio de que essa barreira é provisória. E que a duração de sua existência dependerá da maneira com que os palestinos caminharão rumo à paz. Ela pode durar tanto cinco minutos como cinco décadas.”

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David Grossman – aliás autor de um excelente livro de campo sobre as animosidades reais e imaginárias entre israelenses e palestinos, The yellow wind – escreveu em 2004 no Le Monde: “Ser forte e se perceber fraco é uma imensa tentação. Nós [israelenses] temos dezenas de bombas atômicas, tanques, aviões. Enfrentamos gente desprovida de todas essas armas. No entanto, permanecemos mentalmente como as vítimas. Essa incapacidade de nos vermos tal como somos em nossa relação com o outro constitui nossa principal fraqueza.”

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Ron Nachman, administrador da colônia de Ariel, uma das maiores (e bem adentrada na Cisjordânia), disse a Backmann que apenas o argumento da segurança dos israelenses não convenceu completamente Sharon da construção do muro. Apenas após ver os mapas do general Uzi Dayan, com as maiores colônias da Cisjordânia definitivamente incorporadas – colônias ocupando áreas com grande reserva de água e absolutamente fundamentais para um estado palestino viável –, apenas então o primeiro-ministro deu apoio total. Tal incorporação vai contra as resolução das Nações Unidas, União Europeia e mesmo (teoricamente) dos EUA.

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Com Ruthie Kedar, uma israelense que trabalha em uma organização de defesa dos direitos dos palestinos nos territórios ocupados, René escuta a opinião do intérprete Rafik Mrabe: “É verdade, podemos dizer que tudo é feito para romper os laços sociais. Eu tenho uma irmã em Habla, a 3 quilômetros, uma outra em Ras-Atiya, ainda mais perto. Não as vejo há mais de três meses. Temos apenas um meio pra se comunicar, o telefone. E tudo por razões que não têm nada a ver com a luta contra o terrorismo ou com a segurança dos israelenses. Essa é a grande mentira dessa questão.”

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A “administração civil” – ou seja, o setor militar que supervisiona o movimento dos palestinos – costuma fugir de qualquer explicação ou responsabilidade pela vida penosa dos que estão sob sua sombra com o mantra “questão de segurança”. Assim, quando moradores perguntaram certa vez a soldados israelenses o que iriam fazer com as 8 mil oliveiras que haviam acabado de desenraizar, eles retrucaram que não poderiam informar, porque se tratava de uma questão de segurança nacional.

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O muro não apenas separa terrivelmente palestinos de palestinos, mas também comunidades israelenses e palestinas que tinham historicamente boas relações. É o caso do kibutz Metzer, formado em grande parte por exilados judeus das ditaduras latino-americanas do século passado, e as vilas árabes de Qaffin e Meisar. Antes do muro, crianças de uma localidade e outra se visitavam, e, em períodos de festividades locais, todos comemoravam juntos. Nos anos 70, Meisar e Metzer tinham uma equipe de futebol comum, inscrita na federação israelense. Inconscientemente, o muro do século 21 pôs fim a essas boas relações – para quem acredita em processos inconscientes quando se trata dos efeitos da construção desse muro.

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Michael Sfard, jovem advogado israelense que representa palestinos e esteve entre o grupo de 450 reservistas que em 2002 se recusaram a servir nos territórios ocupados, desabafa: “Eu cresci num país em que os governos de direita como de esquerda permitiram e deram apoio à colonização dos territórios palestinos. E por essa ocupação, por essa colonização, Israel paga um preço moral muito alto. Nosso código ético está degradado. Mesmo nossa cultura foi tocada. Fundado sobre os valores do humanismo, do pluralismo, da democracia, o estado de Israel ao qual me sinto ligado não existe mais. Sim, é fato, hoje em dia eu tenho um problema com minha identidade israelense. Por quê? Porque tudo isso que se faz hoje em dia do outro lado da Linha Verde – o desenvolvimento da colonização, as demolições de casas, a construção do muro, os bloqueios, as prisões, as humilhações, as execuções dirigidas –, se faz em meu nome.”

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Um dos principais objetivos das anexações de terra de 1967 em diante, confirmam diversos oficiais israelenses, foi a separação de Jerusalém da Cisjordânia – “O objetivo real sendo tornar impossível qualquer divisão futura de Jerusalém”, diz o coronel Shaul Arieli.

Para a política defendida por estrategistas como Menahem Klein e o ex-primeiro-ministro Sharon, que não quer que Israel expulse os palestinos de Jerusalém, apenas que os controle pela força de uma maioria judaica, René Backmann cunhou o termo destinado a se tornar definitivo: spartheid.

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Ron Nachman, da colônia de Ariel, vigia-se para não cair nunca na armadilha do inimigo, de chamar a Cisjordânia, Cisjordânia e os palestinos, palestinos. Usa sempre os respectivos termos Judéia e Samária e árabes.

Nachman é um dos maiores entusiastas da colonização de terras palestinas por Israel. Colonização em massa, não a criação de comunidades muito espalhadas e parcamente habitadas – segundo ele, uma fraqueza e uma falha estratégica. “Você acha que o [Monte] Sinai teria sido evacuado há um quarto de século [após acordos entre Egito e Israel com o fim da disputa territorial iniciada com a guerra de 1967] se Israel tivesse construído duas ou três vilas de 15 mil habitantes? E você acha que em 2005 Sharon teria feito evacuar Gaza se, ao invés de vinte implantações somando 8.000 pessoas, houvesse em Goush Katif uma cidade de 80.000 habitantes?”

Mais adiante, o mesmo colono, com a mesma franqueza: “(…) eu observei de perto a reação dos israelenses aos atentados suicidas. E concluí uma coisa simples: os israelenses querem a separação. Eles não querem estar misturados com os árabes. Eles não querem nem mesmo lhes ver. Você poderá dizer que isso é racismo. É possível, mas é assim que as coisas são.”

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“O que querem os israelenses? Um sistema de apartheid que não dirá seu verdadeiro nome?”, pergunta Saeb Erekat, deputado palestino de Jericó, ao abordar René sobre o sistema de estradas instituído por Israel na Cisjordânia, com vias exclusivas para israelenses e interditadas aos palestinos. Completa: “Você conhece um só outro lugar no mundo onde existam duas redes viárias distintas, numa mesma terra, para dois povos?”

 

::: Un mur en Palestine ::: René Backmann ::: Folio/Gallimard, 2009, 330 páginas :::
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LEIA TAMBÉM:
::: Palestine: Peace not apartheid ::: Jimmy Carter ::: Simon & Schuster, 2007, 288 páginas :::
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::: The yellow wind ::: David Grossman ::: St. Martins Press, 2002, 232 páginas :::
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Daniel Lopes

Editor da Amálgama.

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