[ o artigo trata de Disgrace (Desonra), obra de 1999. contém alguns spoilers, principalmente a partir do ponto em que indicamos, abaixo ] por Marilia Bandeira * – Por suas peculiaridades, a África do Sul propiciou farto material para Coetzee e, como disse Nadine Gordimer, alguns de seus romances não poderiam ter se originado em […]
[ o artigo trata de Disgrace (Desonra), obra de 1999. contém alguns spoilers, principalmente a partir do ponto em que indicamos, abaixo ]
por Marilia Bandeira * – Por suas peculiaridades, a África do Sul propiciou farto material para Coetzee e, como disse Nadine Gordimer, alguns de seus romances não poderiam ter se originado em nenhum outro lugar do mundo. A representação estética produzida por ele tem como pano de fundo uma das sociedades mais violentas do mundo, na qual o estupro é um problema nacional, e onde há até poucos anos os nativos eram sistematicamente submetidos à violência tanto do Estado quanto da sociedade civil.
Como resultado da violência contínua e injusta (fartamente representada em outras obras do autor), na construção da realidade elaborada por Coetzee em Disgrace, a violência está disseminada em todas as camadas da sociedade pós-apartheid, e não se encontra mais restrita ao poder do Estado.
No entanto, os elementos mais presentes na estrutura de Disgrace são a inversão de forças ocorrendo em várias situações, cujos resultados são as muitas perdas e o deslocamento da identidade dos brancos em oposição ao fortalecimento dos negros; a associação da figura do protagonista com imagens demoníacas; e o reconhecimento do fim do apartheid e seus resultados como conseqüência da circularidade da história, levando a um pessimismo revelado na análise que o autor fez da sociedade branca sul-africana e do futuro que a espera.
No entendimento do autor, não haveria como os brancos saírem ilesos após tantos séculos de maus tratos contra os nativos. Repetidamente, o narrador de Disgrace aborda a história como a grande motivadora da violência sofrida pelos personagens David e Lucy, pai e filha. Os elementos possibilitadores do mal historicamente construídos na colonização agora são reelaborados pelos nativos que alcançaram o poder e pelos brancos que lá permaneceram, levando ao enfrentamento os diferentes agentes e contrapondo, segundo a visão de Coetzee, a violência historicamente sofrida com mais violência.
Percebe-se que os elementos possibilitadores do mal presentes em outros de seus romances se reposicionam, transmutam-se, vestem outros discursos, mas não desaparecem. Constrói-se uma nova abordagem, em que há a reversão da história construída pelos mais fortes, cujo resultado havia sido o apagamento ou a distorção da história dos mais fracos. Disgrace leva o leitor a perceber que não importando de que lado se está, a vitória de uns significa a derrota para outros. Isso implica não só a reescritura da história, mas a redefinição dos discursos permitidos e daqueles proibidos. Coetzee, no romance em questão, reconhece a culpa histórica de seus antepassados, mas retrata uma sociedade em que as inversões se deram em todas as esferas, inclusive na agência da violência, o que acarretou profundas transformações na subjetividade dos sujeitos envolvidos nesse processo.
O leitor apercebe-se, ao longo de Disgrace, que o protagonista David vai sendo esvaziado em sua identidade. Antes um homem bonito, possuidor de a certain degree of magnetism (p. 7), cuja maior preocupação a satisfação de seus desejos sexuais, vivendo em an anxious flurry of promiscuity. He had affairs with the wives of colleagues, he picked up tourists in bars […]; he slept with whores (p. 7), viu-se, repentinamente, envelhecido, um homem que não mais atraía os olhares das mulheres. Sem muita disposição para jogos de sedução a cada vez que sentisse desejo, mantem encontros semanais com a prostituta Soraya como um meio de satisfazer suas necessidades sexuais.
Quando os encontros com Soraya cessam, ele pensa em castração, em preparar-se para the proper business of the old: preparing to die (p. 9). A semana sem a sessão sexual com Soraya is as featureless as a desert. There are days that he does not know what to do with himself (p. 11). Envelhecer e morrer parece ser o único futuro de David, até Melanie Isaacs surgir em sua vida como a last leap of the flame of sense before it goes out (p. 27). A entrada de Melanie, uma jovem aluna sua na universidade, na vida do protagonista é marcada no texto pelas águas das chuvas, que simbolizam a vitalidade e a vida trazidas para o deserto deixado pelo fim da relação com Soraya. No dia em que David abordou Melanie it was raining; from the pathside runnels comes the soft rush of water (p. 12). Na primeira vez em que força-se sobre ela, mantendo relações no chão da sala, também chove: On the living-room floor, to the sound of rain pattering against the window, he makes love to her (p. 19). Chove novamente, quando, ao tentar fugir após as aulas, ele a segura em frente à faculdade. Não mais a chuva reconfortante das outras vezes, mas águas tempestuosas: Rain falls all of Tuesday, from heavy clouds blows in over the city from the west. […] ‘Wait for me here’, he says. ‘I will give you a ride home’ (p. 20). A imagem da água está tão fortemente ligada a Melanie que mesmo quando David, já na fazenda da filha, relembra a tarde em que invadiu a casa dela, a memória vem acompanhada de uma nova informação: a lembrança do som da chuva, até então omitida ao leitor: He sees himself in the girl’s flat, in her bedroom, with the rain pouring down outside the heater in the corner giving off a smell of paraffin […] (p. 89). O cheiro de parafina entremeado ao som da chuva é o prenúncio do fogo que viria.
Antes da denúncia que marca o fim das chuvas e o começo do fogo, o namorado de Melanie comparece à aula de David e ao interpretar o personagem Lucifer, de Byron, implicitamente compara-o a David:
What kind of creature is this Lucifer?
[…]
He does what he feels like. He doesn’t care if it’s good or bad. He just does it.
Exactly. Good or bad, he just does it. He doesn’t act on principle but on impulse, and the source of his impulses is dark to him. […] His madness was not of the head, but heart. (p. 33)
Coetzee constrói o paralelo entre Lucifer e David, justificando-o, de certa forma, pois ele não tem consciência de seus impulsos. David não percebe a ironia presente na análise elaborada pelo rapaz, cuja interpretação coincide com seus próprios atos, continuando a explicar o poema, ignorante do quanto de si estava contido em sua análise:
[…] Note that we are not asked to condemn this being with the mad heart, this being with whom there is something constitutionally wrong. On the contrary, we are invited to understand and sympathize. But there is a limit to sympathy. For though he lives among us, he is not one of us. […] Byron will suggest, it will not be possible to love him, not in the deeper, more human sense of the word. He will be condemned to solitude. (pp. 33-34)
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O fogo, elemento predominante na vida de David após a refrescância das chuvas, é prenunciado na análise do poema elaborada pelo namorado de Melanie. À interpretação do poema de Byron, seguem-se as metáforas do desejo de David, que se julga preso pela chama da paixão, remetendo diretamente à última chama dos sentidos, que ele esperava manter acesos com Melanie antes de tornar-se um homem velho. David analisa Byron, mas pensa em si ao comparar seus desejos e the moment of expire that the light leaps up one last time like a candle-flame […] (p. 22). Os elementos ligados ao calor e ao fogo se repetem. No mercado onde a filha Lucy vende legumes, there is a smell of burning meet (p. 71). Quando os invasores de sua casa ateiam fogo nele, he is bathed in a cool blue flame, his hair crackles […] A flame dances soundlessly on the back of his hand (p. 96). Mais à frente, ele dirá a Lucy que vengeancy is like a fire. The more it devours, the hungrier it gets (p. 113). Todos os componentes representantes do mal e do inferno bíblico estão presentes e relacionados a David: o demônio, o fogo e o cheiro de carne queimada. Há uma clara ligação entre o cool flame da vingança, o fogo do amor sensual que dirige a Melanie, e o fogo do inferno, onde os pecadores queimarão pela eternidade, excluindo, para sempre, as chances de regeneração. Há ambigüidade na construção, e o leitor se pergunta se David, aqui representando um sistema falido, deve ser interpretado como Lúcifer, segundo a análise do poema de Byron, ou se a África do Sul, para ele, transformou-se num inferno, ou ambas as coisas.
O fogo marca o início das mudanças operadas em David, que principia a se transformar. Após ser expulso da universidade pela revelação do seu envolvimento com Melanie, renegado pelos colegas, evitado por todos e perder a posição de professor (seu meio de subsistência) e a honra, o declínio de David se intensifica, abrindo espaço para o esvaziamento e o preenchimento em alguém diferente, que somente encontrará alívio nas mãos de Bev Shaw, amiga de sua filha e responsável pela clínica veterinária local, cuja manutenção depende da caridade e da ajuda voluntária.
A decadência de David é consequência das inversões de poder, iniciadas já nas relações entre ele e Soraya e, posteriormente, entre ele e Melanie, que permeiam todo o romance e estruturam a narrativa. Em todas as ligações mantidas por David Lurie há a inversão das forças, e ele, o homem branco, é subjugado e punido por não reconhecer e não aceitar seu novo lugar naquele grupo social. De antigo detentor da autoridade que lhe era conferida pela cor e pela posição superior ocupada por um intelectual no sistema acadêmico e na sociedade, passa a pária e indesejado.
A maior inversão do romance, embora não a mais importante, acontece quando David deixa a cidade decidido a passar um tempo com sua filha na fazenda que esta possui. No ambiente rural, a perda de poder de David se acentua em oposição ao ganho econômico e social obtido por Petrus, negro, ex-empregado na fazenda, atual co-proprietário. Graças aos subsídios do governo e ao conhecimento de que vivem em novos tempos, Petrus vai se firmando como uma nova classe social emergente, parte da atual raça dominante. No entanto, fica evidenciado no romance que nem mesmo entre os nativos todos terão as mesmas oportunidades na nova sociedade. Entre Petrus e os homens que atacaram Lucy e David abre-se o fosso da diferença social e econômica cujo resultado separa os homens entre aqueles que detêm o poder e os que não encontram espaço na sociedade. Petrus representa a nova classe média negra, resultado do poder político decorrente do fim do apartheid, cujo novo governo promove transformações em todas as esferas, especialmente por meio de subsídios para a compra de terras, a construção de casas, o plantio e, muito especialmente, por meio da equalização das oportunidades. Pollux, um dos invasores da casa, por sua vez, largou a escola e não encontra emprego. Os dois outros rapazes, segundo as impressões de Lucy, vivem de estuprar e roubar. Nem todos os negros conseguiram um lugar melhor na sociedade e nem todos puderam contar com os subsídios do governo. Coetzee prenuncia a insatisfação daqueles que não alcançam uma posição melhor na sociedade após o fim do governo repressor, o que leva à distopia, e talvez, a mais violência.
David menciona a grande campanha de distribuição em curso no país, onde é A risk to own anything: a car, a pair of shoes, a packet of cigarettes […] a vast circulatory system (p. 98), compartilhando a opinião de Bill Shaw, marido de Bev Shaw, de que parecem estar, novamente, vivendo em estado de guerra. David vê a invasão de sua casa na cidade e o roubo de seus pertences como war reparations; another incident in the great campaign of redistribution (p. 176). Para o protagonista, a redistribuição elaborada pelo governo tem seu paralelo não-oficial nos roubos e invasões das propriedades dos brancos que aconteceram na África do Sul nos anos subseqüentes ao fim do apartheid. A equalização significa, na prática, uma redistribuição de rendas e oportunidades que implicará, para o homem branco, uma insegurança que ele nunca experimentou antes.
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[ a partir deste ponto, o artigo traz spoilers mais sérios em algumas de suas análises. caso você esteja planejando ler Disgrace em breve, sugerimos que volte aqui em seguida para ler o restante do artigo ]
Numa primeira leitura, fica claro ao leitor que enquanto Petrus prospera, David se deteriora. Petrus, que a princípio se apresenta a David como o dog-man, passa a proprietário da fazenda de Lucy e patriarca do lugar, pai adotivo do filho que ela espera, assumindo até mesmo sua proteção, tirando de David o direito de protegê-la, inerente à função de pai. David vai perdendo espaço e acaba dedicando-se a ajudar na eutanásia e, depois, a cuidar dos corpos dos cães de Bev Shaw, tornando-se ele mesmo um dog-man. Há uma clara inversão de papéis retratando as muitas inversões que vêm ocorrendo na sociedade sul-africana. As oposições são construídas por Coetzee, marcando as diferenças entre ambos e as novas posições ocupadas por cada um. O texto reforça a ascensão de Petrus, cuja cabeça é screwed on right (p. 64), e a decadência de David, que mais e mais is becoming: stupid, daft, wrongheaded (p. 146), pois vive no passado e não sabe sobreviver no mundo novo onde todos os valores que nortearam sua vida estão transformados.
Há uma ironia entre as funções assumidas por um e por outro, pois antes Petrus cuidava de cães de guarda, criados para proteger a casa dos brancos e atacar os negros. A elite canina, representada pelos cães de guarda, poderia representar, metaforicamente, as elites brancas que usavam os serviços dos negros para os cuidados da família, os trabalhos domésticos e outros mal-pagos. O assassinato dos cães do canil de Lucy, todos de raça e usados para a segurança dos brancos, simboliza o fim de uma época ou do que significava ser branco naquele país. Em oposição, David cuida dos cães viralatas de Bev, a escória até mesmo entre os cães sem raça, os últimos numa hierarquia cujo topo era ocupado pelos cães dos brancos, de raças mais nobres, melhor alimentados, mais fortes e bonitos. Os cães de Bev, vivendo da caridade e um dia de cada vez, eram mortos por serem muitos e por não despertarem o amor de ninguém. É desses animais, representantes do que há de mais inferior no mundo canino, que David passa a cuidar.
Uma outra inversão significativa é representada pela casa de Petrus, antes morador do estábulo, construída em um lugar mais alto que a casa de Lucy, on an eminence east of the old farmhouse (p. 197). Pela manhã, a casa deixa uma longa sombra sobre a de Lucy, sobrepondo-se a ela. Do estábulo, lugar de animais, a nova casa de Petrus impõe-se sobre a da fazenda, antiga residência dos colonizadores. A nova construção recebe, pela sua localização (east), o sol nascente. Esta imagem simboliza as novas posições na nova sociedade, na qual agora o sol nasce primeiro para Petrus e sua família, numa visão pessimista da posição que ocuparão os brancos no país, e também o renascimento e a esperança para os povos nativos. É interessante perceber que Petrus, antes da construção de sua casa, morava no estábulo, local de animais nobres, enquanto David passa a viver no canil – não o luxuoso e bem arrumado canil de Lucy, mas as gaiolas superlotadas de cães abandonados da clínica de Bev.
Coetzee vai fornecendo ao leitor subsídios para compreender a situação dos brancos como a vê David, um homem dos “velhos tempos”, alguém que ainda não aceitou, de fato, as mudanças e a perda do poder. Em uma de suas conversas com David, Lucy lhe diz que precisam aceitar o fato de que para ficarem ali deverão pagar o preço, aprenderem a começar do chão.
Perhaps […] that is what I must learn to accept. To start at the ground level. With nothing. Not with nothing but.(sic) With nothing. No cards, no weapons, no property, no rights, no dignity.
Like a dog.
Yes, like a dog. (p. 205)
David fez parte de uma época e de um país cujos valores estavam fundamentados na posse, no poder, e na cor branca de sua pele. Para ele, a possibilidade de ficar sem propriedades, sem armas para protegê-lo e sem sua posição na sociedade, significava perder sua dignidade e tornar-se menos que um humano – equiparando-se aos animais. Para aqueles que durante séculos se mantiveram no poder, perdê-lo tão completamente é algo tão abstrato, não importando quão real possa ser, que torna-se difícil de ser imaginado ou vivido.
A dificuldade em lidar com a diferença e com a perda do poder; assim como a demonstração do quanto os discursos que barbarizavam os nativos ainda estão entranhados no pensamento do homem branco, está evidenciada na passagem do ataque a David e quando este vê Pollux espionando Lucy no banho. Embora aparentemente um homem cosmopolita, que fala várias línguas, no íntimo David representa o pensamento colonial camuflado pelo verniz do homem moderno. Enfurece-se ao ponto de, mais uma vez, deixar escapar o que reprime tão cuidadosamente.
The word still rings in the air: Swine! Never has he felt such elemental rage. He would like to give the boy what he deserves: a sound trashing. Phrases that all his life he has avoided seem suddenly just and right: Teach him a lesson, Show him his place. (p. 206)
O uso do verbo to avoid nos mostra como David apenas evitava usar termos racistas, e não que não acreditava neles. Ele se vê tão diferente de Pollux que escapa à sua compreensão o fato de que é a ele a quem está sendo ensinada uma lição; é ele quem está sendo colocado em seu lugar – ou em seu “não-lugar”. Escapa-lhe também que, quando retornou à cidade, foi espiar Melanie no teatro, sendo agredido com bolinhas de papel pelo namorado dela, da mesma forma como agrediu o menino que espiava sua filha. O paralelo entre quem ele chama de Menino Chacal e sua própria imagem é outra das ironias construídas pelo autor que escapam ao protagonista.
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Dessa forma, David Lurie vai se tornando um ser deslocado, estranho em seu próprio meio, um homem sem lugar. O deslocamento de David está marcado nas suas idas e vindas entre o campo e a cidade, perdendo em cada etapa um pouco mais do que lhe compunha a identidade. Perdeu seu lugar na universidade, ficou mal-visto na vizinhança, foi para o campo (onde perdeu sua boa aparência). Volta para a cidade e constata primeiro que os assentamentos nativos estão avançando rapidamente na direção dos centros urbanos; em seguida, encontra em sua casa invadida uma pomba – símbolo da esperança e da paz – morta e em decomposição, da mesma maneira que estão se decompondo seu mundo e sua alma.
Após ser rejeitado por Soraya e Melanie, restava-lhe o amor da filha, cujos cuidados tinha como certos. Buscou na casa de Lucy um abrigo temporário, um local para reorganizar sua vida e seus pensamentos. Depara-se primeiro com a violência física perpetrada pelos três homens e depois com a humilhação e o descaso enfrentado pelos brancos em um país dominado por negros, onde não existem mais locais especiais para os da sua cor. Começa a sentir na própria pele como eram tratados os negros quando o poder estava com os brancos. Queimado, machucado, dolorido e cansado, espera por duas horas até conseguir ser atendido em um hospital. A polícia, também ineficiente, não os ajuda. Lucy, imersa em si mesma, não lhe serve de conforto. A grande mudança vai se delineando. A sensação de ser esvaziado, de perder a seiva – ou o sangue – que lhe dá vida e energia torna-se constante a partir do ataque.
A grey mood is settling on him. It is not just that he does not know what to do with himself. The events of yesterday have shocked him to the depths. The trembling, the weakness are only the first and more superficial signs of that shock. He has the sense that, inside him, a vital organ has been bruised, abused – perhaps even his heart. For the first time he has a taste of what will be like to be an old man, tired to the bone, without hopes, without desires, indifferent to the future. […] he feels his interest in the world draining from him drop by drop. It may take weeks, it may take months before he is bled dry, but he is bleeding. When that is finished, he will be like a fly-casing in a spider web, brittle to the touch, lighter than rice-chaff, ready to float away. (p. 107)
De homem bonito, respeitado, professor universitário, David enfrenta, a uma só vez, sua aparência externa, repulsiva devido às queimaduras, e a interna, devido ao esvaziamento. Enfrenta, também, o distanciamento de Lucy, seu último refúgio e o único amor que lhe restava. David vai se tornando desesperadamente oco, seco, drenado de vida. Sente, dia a dia, que The blood of life is leaving his body and despair is taking its place (p. 108). É criticado até por Petrus que sugere que Lucy é forward-looking, e não backward-looking, implicitamente recriminando-o por não compreender e não tentar se adaptar aos novos tempos. Lucy, olhando para o futuro, negocia. Ele, David, preso ao passado, definha sem, contudo, perder a arrogância que lhe é peculiar.
David reconhece-se como um dog-man, o braço direito de uma mulher que cuida de cães – a mesma função exercida por Petrus. No entanto, e embora essa inversão ocorra de fato, depois do ataque sofrido por David e Lucy, não será essa a maior transformação operada em David. Uma vez informado sobre a gravidez de Lucy, o protagonista sente-se totalmente perdido, sem saber como agir. Quer interferir na vida e nas decisões da filha cuja escolha, no entanto, já foi feita quando ela decidiu não denunciar os estupradores. David está perdido, não sabe o que fazer de seu tempo, não sabe o que fazer consigo próprio. Desajustado na cidade, também não encontra a si mesmo no campo. Perde, finalmente, o amor e a casa de sua filha. Ao agredir o garoto e enfrentar Petrus, é criticado por Lucy, cujo desejo é viver naquelas terras custe o que custar. Está disposta a pagar o preço necessário para manter seu estilo de vida e sua paz. I am prepared to do anything, make any sacrifice, for the sake of peace (p. 208), diz ela ao pai. Lucy, pelo amor que tem ao seu modo de vida e às terras em que vive, aceita negociar suas posições para poder ficar, fortalecendo seus vínculos com a terra, pois sua gravidez e a submissão às normas não explicitamente impostas pelos novos donos do poder tornará seu filho parte dessa sociedade que se reconstrói. David a questiona, pois para ele seus modos de viver estão se tornando irreconciliáveis:
“And I am part of what you are prepared to sacrifice?”
She shrugs. “I didn’t say it, you said it.”
‘Then I’ll pack my bags.’ (p. 208)
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Restando-lhe somente o trabalho que pretende desenvolver sobre Byron, David encontra apoio em Bev, de quem tornou-se amante apesar do desprezo que sentia e de considerá-la extremamente feia. Para ele, tornar-se amante de Bev era o mais claro sinal de seu declínio.
Let me not forget this day, he tells himself, lying beside her when they are spent. After the sweet young flesh of Melanie Isaacs, this is what I have to come to. This is what I will have to get used to, this and even less than this. (p. 150)
David Lurie acha-se superior a Bev e melhor que Petrus. Posiciona-se num nível superior a todos. Sequer suspeita de que, talvez, seja Bev a lhe fazer o favor de cuidá-lo como aos cães abandonados, assistindo-o sempre e em tudo o que precisa. David habituou-se a pensar nela como poor Bev, por ser por demais desinteressante e feia. Após tornar-se seu amante, o narrador fala ao leitor numa de suas muitas intromissões And let him stop calling her poor Bev Shaw […] If she is poor, he is bankrupt (p. 150).
Apesar de seu desprezo, entretanto, é por intermédio de Bev que David reinicia seu processo de cura. A chuva representada por Melanie é substituída pelas águas salutares oferecidas por Bev. No dia do ataque à fazenda, She runs water for him in their big, old fashioned, cast-iron bath (p. 103). Na manhã seguinte, Bev serves him a breakfast of cornflakes and tea (p. 104), faz curativos em suas queimaduras with a sterile solution (p. 106), reforçando a relação entre David e os cães de Bev ( a quem ela deixava estéreis). É possível, ainda, tecer outras considerações, percebendo na posição de David um recomeço – like a dog – conforme sugerido por Lucy. Enquanto ele sente o fluido vital deixando seu corpo, Bev o recompõe. Quando ele se recupera fisicamente, oferece-lhe algo que começa como sexo e passa depois a afeto.
A ligação e a identificação de David com os cães da clínica vai sendo construída, mostrando que a inversão de poderes foi somente o estopim, o início de algo mais profundo: a transformação de David em um dos cães de Bev, alguém a quem ela oferece sua ajuda para curar-se ou para uma morte suave. É também através dos cães de Bev que David inicia um processo de re-humanização, quando finalmente sente-se capaz de amar: “he has learned by now, from her, (…) what he no longer has difficulty in calling by its proper name: love” (219).
David afirma que a clínica de Bev é Not a clinic, […] but last resort. […]. Bev Shaw, not a veterinarian but a priestess, full of New Age mumbo jambo, trying, absurdly, to lighten the load of Africa’s suffering beasts. (p. 84). Esta está entre as passagens que renderam críticas a Coetzee. Primeiramente, porque fica implícita a sugestão de eutanásia, ou de morte sem dor, para diminuir o sofrimento das Africa’s suffering beasts. Os cães eram sacrificados por Bev por serem muitos e doentes – os estropiados sem dono, sem destino e sem amor. Uma das imagens fortes ligadas a Bev Shaw diz respeito ao que ela chama de escorted death. Ela acredita que aos que não têm lugar, aos indesejados, deve-se dar uma morte amorosa, ajudando-os a um fim sem dor, facilitando a passagem. David afirma que a clínica não é, na essência, um local de tratamento, mas de morte. Esses cães, que representam a escória da raça canina, encontram em Bev um último alento, uma morte tranqüila. A pergunta sem resposta é quem seriam, de fato, os Africa’s suffering beasts a quem Coetzee se refere.
Além dessa questão, por si só delicadíssima, está implícita a ideia de eugenia, já mencionada pelo protagonista ao dizer que os negros desejavam misturar suas sementes com as mulheres brancas em busca de aprimoramento.
No final, David faz da clínica a sua casa. No quintal onde ficam os cachorros, arma uma mesa, uma cadeira de braços, um guarda-sol e passa seus momentos livres nesse arremedo de aposentadoria na praia, tocando um velho banjo de brinquedo encontrado entre os velhos brinquedos de Lucy, com o qual pensa compor uma ópera. É a imagem de um homem louco, como ele mesmo reconhece. Seu último estímulo, a ópera que espera compor, está – como sua vida – estagnada e sem energia. Alimenta os cães, lê, toca o banjo. Desiste, finalmente, de sua opereta ao perceber que está produzindo the kind of work a sleepwalker might write (p. 214), algo desprovido de energia e lirismo. It would be nice, avisa o narrador, to be returned triumphant to society as the author of an eccentric little chamber opera. But that will not be (p. 214). O retorno triunfal, a volta por cima, não acontecerá. Podemos ler essa passagem como mais uma metáfora relativa ao pessimismo do autor quanto ao futuro dos brancos sul africanos, pois é categórico ao afirmar que não haverá volta triunfante, dando este capítulo da História por encerrado.
Depois de Katy, a cadela abandonada, David sente a particular fondness por um dos cães da clínica, um macho aleijado. Sem que ninguém o queira, logo será submetido à eutanásia. O cão passa a ser companheiro de David, que o solta quando está lendo ou escrevendo. Não lhe deu nome, pois não queria criar vínculos com o cão. A identificação de David com os cães velhos, abandonados e aleijados reflete sua própria posição, o desânimo que o domina e sua inutilidade nos tempos atuais.
Na última parte do romance, ao ajudar Lucy no mercado, ela lhe diz pretender ser uma boa mãe e uma boa pessoa. You should try to be a good person too, diz ela ao pai, que lhe responde: I suspect it is too late for me (p. 216). O senso de finitude, do esgotamento do tempo e da ausência de vontade firma-se em David, que não encontra motivação e forças – nem mesmo o menor desejo – em ajustar-se a um novo mundo.
David reconhece a inversão dos papéis desempenhados por ele e Petrus, mas não percebe que ele foi muito além de tornar-se “o outro”, de assumir o lugar que Petrus antes ocupava, pois tornou-se tão indesejado quanto os cães de Bev. Por fim, renunciando ao único projeto que lhe restara, a ópera, passa a viver junto aos seus iguais, aos cães abandonados da clínica, tornando-se mais um dos Africa’s suffering beasts cuidados por Bev. Sua desistência da vida está simbolicamente representada pelo ato de renúncia à amizade oferecida pelo cão aleijado, que carrega, like a lamb (p. 220), até a mesa da eutanásia, num claro gesto de desistência a tudo o que poderia significar vida e futuro.
Segundo a visão do autor, podemos concluir que os problemas raciais não se evaporaram, e continuam fortes e presentes, determinando mais uma vez quem tem acesso a que nessa estrutura social que se reconstrói. Coetzee não só não foge de, como também reforça, os binarismos negro versus branco, bem versus mal. A raça ainda é o fator que determina as oportunidades de cada um, e a “equalização” promovida pelo atual governo, sem dúvidas, estreitou as possibilidades antes amplamente facilitadas à comunidade branca, sem contudo atender a todas as demandas das comunidades negras, criando uma classe de excluídos pertencentes à mesma cor dos governantes, dentro de um sistema organizado com base na cor e na raça dos sujeitos membro dos grupos sociais.
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Em Disgrace, a família Isaacs e Petrus são os representantes de uma classe social emergente, que recebe benefícios por ações afirmativas dos governos, enquanto os rapazes estupradores representam o resultado de anos de subensino, subemprego, subvida; e a certeza de que somente o fato de serem negros não lhes garante, automaticamente, um lugar ao sol. O fato de Disgrace ter sido escrito somente quatro anos após o fim do “apartheid” colabora tanto com a visão pessimista, quanto com o fato de que havia muitos descontentes, pois a liberdade não lhes havia trazido benefícios financeiros e sociais imediatos.
Percebe-se, igualmente, que em toda a narrativa os conceitos de civilidade e barbárie estão indefinidos, pois ambos os grupos apresentam indícios de terem em si, e em suas identidades, as duas características. O leitor chega à última página de Disgrace sem conseguir identificar se a desonra a que se refere o título diz respeito a David, a Lucy, a Melanie, a Bev, a Petrus, aos violadores de Lucy, ou aos cães. Todos, cada um a seu modo, desonraram e foram desonrados. A ausência de um código ético definidor daquilo que é ou não permitido é o principal fator, em nossa leitura, que leva à desonra de todos.
* Marilia Fátima Bandeira é Mestre em Literatura Inglesa pela USP. Atualmente trabalha no doutorado com as obras de J. M. Coetzee, Nadine Gordimer, Chinua Achebe e Wole Soyinka.
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