A irrelevância normativa do catolicismo

por Fernando da Mota Lima – Mesmo quando o catolicismo exercia efetiva função normativa no Brasil, já se observava a frouxidão dos seus meios de controle sobre o comportamento dos fiéis. Há registros históricos de viajantes estrangeiros assinalando o caráter exterior do nosso catolicismo. O fato era correntemente notado nas procissões, missas e outros serviços religiosos. Se naquele tempo, refiro-me genericamente ao século XIX, já era assim, o que dizer da atualidade regida por uma cultura orientada para o prazer e a permissividade? Nosso catolicismo foi sempre um catolicismo festeiro e sincrético, livremente mesclando traços das culturas formadoras do Brasil: a portuguesa, a indígena e a africana. Isso explicaria, sem nenhum espanto ou incorreção, o fato de uma antropóloga francesa, Marion Aubrée, afirmar que nosso catolicismo é permissivo.

O parágrafo acima concorre para contextualizar casos como a excomunhão de alguns católicos de Pernambuco envolvidos num caso de aborto de natureza excepcional. O decreto partiu do arcebispo de Olinda e Recife. Dado que o episódio foi amplamente noticiado e comentado na mídia, há mais de um ano, poupo-me do trabalho de reconstituí-lo neste artigo ligeiro. Meu propósito é tão-só destacar a irrelevância normativa do catolicismo, diria das religiões em geral, na nossa atualidade cultural. Parte desse poder normativo derivava do poder secular antes exercido pela religião. A separação dos poderes do Estado e da Igreja, fruto do advento da modernidade ocidental, encurtou drasticamente o poder da religião num mundo regido pela autonomia das esferas de poder.

No caso do catolicismo brasileiro, atuam singularidades históricas que não posso detalhar neste artigo. O que ressalto, em benefício do meu argumento, é que foi sempre mais frouxo, sempre mais permissivo do que suas contrapartes européia e norte-americana. Se era tradicionalmente festivo, marcado pela tom exterior de suas práticas, os estragos causados pela liberação dos costumes a partir dos anos 1960 tornaram-no o que é hoje: um catolicismo à maneira do padre Marcelo Rossi e outros artistas pop. Nosso catolicismo de conveniência e fachada induz supostos fiéis a praticarem livremente o aborto sem dramas maiores de consciência. Assim como o aborto, outros pontos dogmáticos da doutrina católica são rotineiramente ignorados pelos fiéis. Não raro, ignoram-nos por pura e simples inconsciência religiosa. A prática dominante aparenta confinar-se aos limites exteriores da fé, a um catolicismo festeiro, como acima frisei citando indiretamente Darcy Ribeiro.

Configurado esse quadro, qual a conseqüência efetiva da excomunhão ditada pelo arcebispo? Diria que quase nula, pois poucos católicos vivem com efetivo engajamento religioso nossa fé de conveniência e foguetório. A prova da irrelevância da excomunhão está no fato de o próprio arcebispo ter vindo subseqüentemente a público para acenar com o perdão e conseguinte anulação do interdito que acabara de decretar. Eis aí uma variação sintomática da nossa cultura regida pela falta de caráter, compreendido este no sentido em que o utiliza Mário de Andrade em Macunaíma. Trocando em miúdos, fica o dito pelo não dito.

O mais grave de tudo é constatar que a excomunhão foi imposta a todos os envolvidos, salvo àquele que é o verdadeiro executante do mal: o padrasto estuprador. Isso sugere com evidência exemplar a margem de responsabilidade da nossa tradição religiosa na realidade corrente da violência exercida contra a mulher. Apesar de todas as nossas peculiaridades de ocidentais periféricos, felizmente somos há muito modernos o bastante para consolidar em termos práticos e legais a distinção fundamental entre poder religioso e secular. Do contrário, nosso clero estaria ainda ditando normas sobre o que podemos e não podemos fazer, fôssemos ou não católicos.



  • http://presencadapeste.blogspot.com rayssa gon

    não concordo com absolutamente nada do texto.

    só pra citar um exemplo: dominou, durante muito tempo,na historiografia sobre o seculo de ouro mineiro que , nesse periodo, a manifestação religiosa era basicamente exteriorizada e festiva. explicando: muita festa pouca religião. pouca religião pq , se constatou, as pessoas pararam de se confessar e de tomar parte nos sacramentos. mas, começou a se confirmar, depois, que elas se sentiam tão aniquiladas pelo sentimento de culpa e devoção que não se consideravam dignas dos proprios sacramentos, manja?

    dizer que nosso “catolicismo” é sincretico basicamente esconde o fato de que, se realmente ouve a mistura “negro+indio+branco”, ela não foi igualitaria muito menos não-violenta.

    permissivo ou não, o cristianismo no brasil (catolico ou protestante) ainda é uma das grandes barreiras que emperram a conquista de direitos civis como o casamento gay e o aborto. se ninguem ligou muito pra excomunão dos medicos e da mãe que participaram da interrupção daquela gravidez fruto de estupro, isso não significa que a igreja não manda nada ou que não é considerada.

    muito pelo contrario!!!!!!

    ninguem ta nem aí pra excomunhão, E MESMO ASSIM esses padres e bispos continuam bloqueando o acesso a esse procedimento!!! oras!!!

  • http://www.aalmaearosa.blogspot.com sandrio cândido.

    Que o catolicismo brasileiro tem plena consciência de sua fé, sabemos.
    mas ao citar om padre marcelo você entra em um, lado bastante polemico na igreja. Sim nem todos os católicos são iguais, hoje pode se dizer que esta é uma igreja multipla, assim como a assembleia de Deus, ela é una e dividida em congregações,pastorais e movimentos, entre os movimentos mais conhecidos estão a opud dei, arautos do evangelho e rcc.
    RCC, ou se ama ou se odeia este movimento, e para criticar a igreja muitos usam este como base, os padres cantores peretncem quase todos a este movimento, inclusive o padre marcelo.
    Dentro da rcc, temos regras de obediência a varios niveis e os padres renovados tambem obedecem a seus superiores, como o marcelo, se usamos a musica como forma de evangelizar, não podemos dizer que estamos a promover festas.

  • http://LiteraturaeCríticaCultural Fernando da Mota Lima

    Raíssa e Sandrio:
    Vocês têm razão e não têm. Não digo isso com a intenção de brincar com contradições. Quero dizer que meu argumento não abrange a totalidade do universo católico. Nesse sentido, vocês, como qualquer outro leitor, podem apontar exemplos e fatos da realidade que contradizem o que afirmo. O argumento sociológico, é o caso do meu artigo, é generalização necessária, pois só assim a gente pode explicar sociologicamente a realidade. A generalização simplifica, como toda generalização, mas é um princípio lógico do argumento. Infelizmente, não é possível neste espaço expor essa questão tão complicada de modo mais satisfatório. Concordando ou não, muito grato pela leitura.
    Fernando.

  • http://www.pensamentobrasilmelhor.blogspot.com Blog de Um Brasileiro

    Excelente texto.
    Realmente a Igreja Católica perdeu o poder de influenciar diretamente as decisões das pessoas. Talvez, como você mesmo diz, pelo novo paradigma focado em prazer, desejo, etc.
    Contudo, enquanto a Igreja Católica murcha, observamos uma crescente nos Evangélicos radicais. Eles estão dominando e impondo formas de pensar bastante perigosas.. Talvez esteja ocorrendo uma mudança no eixo, porém mais perigosa, graças à intransigência destes.

  • http://amanciosiqueira.wordpress.com Amâncio Siqueira

    “Do contrário, nosso clero estaria ainda ditando normas sobre o que podemos e não podemos fazer, fôssemos ou não católicos.”
    O clero não é nosso, mas ainda está ditando normas sobre temas como células-tronco, aborto e casamento homossexual. Com o apoio de bancadas evangélicas, é verdade.

    • http://LiteraturaeCríticaCultural Fernando da Mota Lima

      Amâncio:
      Na minha incompetência, acabo de apagar um comentário que escrevi em resposta ao seu. Tentarei refazê-lo. O que segue é extensivo aos comentários de Rayssa e Sandrio. Não nego poder político à Igreja para interferir nos assuntos que você justamente menciona. Meu post refere-se claramente à irrelevância normativa do catolicismo em assuntos de cunho privado, como aborto e outras ações e escolhas morais que fazemos relativas à nossa vida privada. É nisso que sustento a irrelevância do catolicismo, assim como de outras religiões. Qual a importância teólogica e moral, hoje em dia, de uma excomunhão? Os exemplos no meu post são claros e, penso , irrefutáveis. Queria apenas que os leitores que de mim divergem atentassem para o fato de que não posso dizer tudo num artigo, mesmo quando sei mais do que digo. O artigo é curto demais para que o autor dê conta de todos os implícitos e nuaances de um argumento. Muito grato pela leitura sempre atenciosa, Amâncio.
      Fernando.

  • sandriocândido

    Fernando. Atente-se para o fato de que a excomunhão quase nunca é executada, somente radicais a coloca,volto q questão do catolicismo como um todo, mesmo em um artigo deve se levar em conta que o catolicismo abrange varios movimentos desde os radicais(opus dei,arautos do evangelho,rcc) aos liberais(católicos pelo diresito de decidir etc), Nisto digo que se você é catolico e pertence ao conjunto da fé católica não irrelevancia,posto que você concorda com o que diz a santa sé e a congregação para doutrina da fé, se você é ateu, o que vai tornar importante na sua vida é a filosofia etc…Bem acredito que lutar pelo que cremos não é algo irrelevante…qual a importancia hoje em dia de uma teoria do darwim, já que temos provas de que esta teoria não é verdade, veja os estudos recentes sobre o evolucionismo, qual a importancia de uma excomunhão, primeiro você sabe o que é uma excomunhão?

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