por Daniel Lopes – O médico e escritor cearense Ronaldo Correia de Brito, radicado no Recife, ficou mais conhecido após o aclamado Galiléia, romance de 2008. Retratos imorais, seu novo livro, reúne contos escritos ao longo de vários anos. Acredito que até por isso seja uma obra de qualidade inconstante. Há textos que não marcam […]
por Daniel Lopes – O médico e escritor cearense Ronaldo Correia de Brito, radicado no Recife, ficou mais conhecido após o aclamado Galiléia, romance de 2008. Retratos imorais, seu novo livro, reúne contos escritos ao longo de vários anos. Acredito que até por isso seja uma obra de qualidade inconstante. Há textos que não marcam de forma alguma o leitor, daqueles que seriam descartados por qualquer editor, não fossem do punho de um autor consagrado.
Mas há também as estórias que lembram que trata-se, enfim, de um livro de Ronaldo Correia. Nelas, três pontos sobressaem: o poder das metáforas (ótimas, jamais fúteis), a influência do teatro (Ronaldo também é autor de diversas peças) e a onipresença do tema da degradação (social ou corporal ou ambas ao mesmo tempo). Não deixa de ser gozado, para além do título, o conto “Homem com gastrite erosiva moderadamente leve”, ou “Homem buscando a cura” – onde um padre que sofre de narcolepsia (sono repentino durante a realização de tarefas corriqueiras) busca desesperadamente ajuda na homeopatia.
Os contos com textos que mais lembram o teatro são “Duas mulheres em preto e branco” e “Mãe numa ilha deserta”, este último um monólogo, não da mãe, mas do filho que lhe faz “companhia”. “Duas mulheres…” é o conto de abertura, e um dos dois melhores do volume. Se passa num quarto de apartamento numa área urbana do Recife, altas horas da noite. As mulheres do título, figuras de meia-idade, foram, nos anos de chumbo, membros da “esquerda festiva”. São amigas desde sempre, seus maridos idem, e os casais sempre moraram próximos, mas agora uma delas descobre que a amiga dormiu com seu marido. No quarto, a agride verbal e fisicamente, e a outra, de maneira absurda, leva socos e chutes sem reagir, mesmo estando com os membros livres e sofrendo ameaça de levar um tiro na cabeça (a ser disparado por uma arma que a opressora jura existir em algum lugar do quarto!). No conto, o drama pessoal se desenrola paralelo ao drama social: na rua lá embaixo, menores consomem crack e perturbam motoristas. Logo, um deles é baleado por um menino. Após o estampido, a mulher violenta arruma um tempinho pra se escandalizar:
– Podia ter sido você, ou Miguel, ou qualquer um de nossos filhos. Ninguém vai saber quem matou. O assassinozinho fugiu correndo.
A agredida corre o risco de perder a vida, mas não perde o gancho:
– Você vai fugir correndo quando me matar ou vai se entregar à polícia?
Alguns dos personagens de Retratos imorais são religiosos. Quando do lançamento de Galiléia, Ronaldo escreveu no Terra Magazine que “o livro que marcou mais profundamente minha escrita foi a História Sagrada, que sempre li como um compêndio de narrativas e nunca como um escrito religioso. Concordo com o ponto de vista de Robert Alter de que a Bíblia é prosa de ficção”. Dessa forma, o autor não é daqueles que fetichizam a religiosidade. Ele, por exemplo, não parte incontinenti para trabalhar a crendice popular como um mero aspecto da riqueza cultural brasileira ou qualquer tolice do tipo (Ronaldo entende demais de Nordeste para deixar essa romantização a cargo daqueles que nunca pisaram na região). Pelo contrário, a religiosidade das massas, como o turismo católico no Ceará, aparece antes como consequência (e ao mesmo tempo engrenagem perpetuadora) de uma realidade cruel.
Assim, no conto “Romeiros com sacos plásticos”, que se passa numa das romarias em Juazeiro, à miséria espiritual soma-se a miséria política, quando é anunciado, paralelo ao evento, um comício do governador do estado – “Ele prestigia a festa dos romeiros e garante votos na próxima eleição”, pondera a exaurida mas ainda consciente romeira-narradora. Enquanto isso,
Os padres não cansam de pedir rezas para aliviar os pecados. Que pecados? Possuir umas cabras, dormir em cama, comer três vezes por dia.
Onde a espiritualidade aparece bem, por ser algo além de mera manifestação religiosa, é em “Pai abençoa filho”. Esse conto, pra colocar de forma clara, é simplesmente a estória de despedida mais linda que eu já li desde “Eveline”, do James Joyce.
No texto de fundo autobiográfico, um jovem Brito, de 17 anos, está deixando Crato, no Ceará, para ir estudar medicina no Recife. Desejo do pai. Tarefa de filho mais velho, sair de casa pra arrumar condições pra dar suporte na escalada social dos outros irmãos, mas o filho mais velho não quis cumprir a sina, então foi o segundo mais velho, Brito, o escoltado pelo pai nas ruas do Crato até a garagem do ônibus. Enquanto andam, e ao contrário do Orfeu no Hades, o jovem cearense segura a tentação de olhar para trás.
Mas se seus olhos não se voltam, e o menino se vira com as imagens que o rabo da vista capta, sua mente regride, e lhe invadem o peito as lembranças da cidadezinha (“um povo separado do mundo, vivendo feudalmente num tempo em que já explodira a bomba atômica”) e da casa. O “feudal” não tem apenas conotação negativa; as referências a tempos há muito idos ajuda o narrador na inadiável tarefa de trazer ao presente aquele pedaço do sertão de outra forma tão diferente mesmo de regiões próximas no Nordeste:
(…) No Egito Antigo, na era dos reis divinos, os sacerdotes sacrificavam o rei e a rainha, no ato da cópula, para que o sangue derramado propiciasse as enchentes do rio Nilo. Um dia, essa morte foi simbolizada através do teatro. Em vez do sacrifício de sangue, seu simulacro. No perdido sertão dos Inhamuns, repetíamos um ritual parecido. Nos longos períodos de estiagem, banhávamos os túmulos dos mortos cantando e chorando, pedindo que a chuva trouxesse vida novamente à terra seca e infértil.
Ou:
Em maio, celebrava-se Maria como os gregos festejavam Ártemis e os romanos, Diana.
Crescido numa casa onde homem não podia chorar (lei do pai), o jovem Brito se despedira dos irmãos e da mãe com pouco mais que rápidos acenos de cabeça. Se falasse, temia rebentar o choro. A sós com o pai na garagem, pede a benção rapidamente, sobe no ônibus e vai embora. Na viagem, chorou por horas, com a convicção de que “era senhor do meu pranto” e de que não estava quebrando nenhum dos códigos estabelecidos pelo velho Brito.
::: Retratos imorais ::: Ronaldo Correia de Brito ::: Alfaguara, 2010, 184 páginas :::
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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