a Maria Ivonilda
André Díspore Cancian, 28 anos, ateu desde os 14, nasceu em Catanduva-SP. Autodidata declarado, frequetou clássicos da filosofia, ciência e psicologia, e é figura manjada na web brasileira, na qual se notorizou como editor do site Ateus.net, endereço que reúne uma enorme quantidade de artigos e vídeos de alta qualidade. Em 2002, publicou por conta própria a obra Ateísmo & Liberdade, de 300 páginas, atualmente na sexta edição. Em entrevista ao Amálgama, ele fala deste e de seu outro livro (O vazio da máquina), de seus projetos na rede e de filosofia.
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— APRESENTAÇÃO —
Amálgama: André, como consta na própria descrição do site, o Ateus.net foi criado em 1999. Fale-nos um pouco sobre a história dele, os motivos que te levaram a fundá-lo, o que mudou até então, como é a recepção do conteúdo do site da parte de ateus e por religiosos. E o Ateísmo & Liberdade, é uma extensão do trabalho que você vem realizando no site? O que podemos encontrar nele?
André Cancian: Quando criei o site, a intenção era construir uma biblioteca com os melhores textos que já houvesse lido sobre o assunto. Tais materiais são fáceis de encontrar, mas ficam dispersos, sendo trabalhoso localizar leituras de qualidade sem estar familiarizado com a bibliografia do assunto, então resolvi reuni-las. Esse é o tipo de coisa que gostaria de ter tido a oportunidade de usufruir quando comecei a ler sobre o assunto. Porém, como não a encontrei, então a criei. O site sempre foi, e ainda é, centralizado nessa estrutura. O que mudou desde então foi que o conteúdo não é mais o único foco; agora o site também foca o diálogo entre os visitantes. Para tal fim foi criada uma comunidade chamada ateus.network, na qual os visitantes podem interagir, não ficando mais limitados ao recebimento de informações. Isso resume bem a ideia e história do site. Sobre o livro que escrevi, bem, ele aborda os mesmos assuntos do site e, em minha opinião, não acrescenta muito ao seu conteúdo, apenas está mais bem organizado, explicando os assuntos de maneira mais didática. Assim, se alguém ler todos os textos do site ou o livro, penso que o resultado será virtualmente o mesmo.
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— VERDADE, FÉ E RELIGIÃO —
Sobre a relação entre a verdade, a fé e a religião, Denis Diderot tem uma citação no ensaio O passeio do cético, a que faço referência agora apenas para efeito de ilustração: “Os homens praticamente mataram uns aos outros por causa de coisas que não entendiam. Percorrei toda a história eclesiástica, e ficarei convencido de que se a religião cristã tivesse conservado sua antiga simplicidade, se só tivesse exigido dos homens o conhecimento de Deus e o amor ao próximo, se não tivesse embaraçado o cristianismo com uma infinidade de superstições, que o tornaram, nos séculos seguintes, indigno de Deus na opinião dos sensatos, numa palavra, se se tivesse pregado aos homens tão somente um culto cujos primeiros fundamentos eles encontrassem em suas almas, eles nunca o teriam abandonado e não teriam quereladas após o ter admitido.” Na sua opinião, o homem se afasta radicalmente da verdade, isto é, em um sentido prejudicial, tanto para ele quanto para os demais, ainda quando passa a crer em divindades, ou apenas quando admite a necessidade de criar uma sociedade fundamentalmente baseada na crença? Em outras palavras, a fé é em si mesma perniciosa ou apenas quando se transforma em religião e passa a integrar as instituições?
Se analisarmos o que é a fé em si mesma, em termos funcionais, não poderemos dizer que ela é boa ou ruim em si mesma. A fé é basicamente uma crença de fundo emocional, portanto pouco flexível. Isso não é culpa da religião. Nosso cérebro emocional é assim, mais rudimentar, singelo, intransigente que nossa parte racional. Por tal razão, não podemos esperar que instituições baseadas no condicionamento dessa porção do cérebro sejam maravilhosamente flexíveis, pois elas estão atreladas à nossa biologia de uma maneira bastante fundamental.
Agora, veja que esse modo de enxergar as coisas não situa a religião de forma estanque, como um modo sui generis de conceber a realidade. Por exemplo, o modo como desenvolvemos confiança em outros indivíduos, como passamos a gostar de algum estilo musical, de algum novo hobbie, é bastante parecido com o modo como desenvolvemos uma nova fé; não consigo ver uma coisa separada das demais. Pois bem, nessa ótica, a fé cumpre uma função em nossas vidas; ela pode ser útil ou prejudicial, e isso depende de como condicionamos nosso cérebro emocional. Não costuma haver muito problema enquanto a religiosidade se limita a questões subjetivas, como o sentido da vida, o valor da vida, a caridade etc.; acho que esse espaço existe porque a ciência nunca teve muito a dizer sobre o modo como devemos governar nossas vidas pessoais. Além disso, certas pessoas se sentem mais seguras se derivarem seus valores pessoais desse tipo de estrutura mais “profunda” do que simplesmente de um capricho pessoal; a meu ver, tudo bem.
Porém, quando esse modo de agir começa a competir no terreno do conhecimento, passamos a ter problemas, pois o cérebro emocional lida com o conhecimento não como algo aberto, transitório, discutível, que deve ser aperfeiçoado, mas como uma espécie de partido, ou time. As pessoas, nessa situação, param de buscar estar certas para buscar provar às demais que estão certas, mesmo que estejam completamente erradas, mesmo que isso envolva ignorar os fatos. Aqui temos nosso lado mais animal e primitivo se inserindo como representante do saber. Nessa situação, acho que a fé pode ser vista como ruim, e deve ter seu espaço, se não suprimido, ao menos limitado e vigiado, pois a fé sempre foi muito boa em forjar a aparência de racionalidade. A fé não sabe lidar com o fato de que todo conhecimento é provisório. Ela se apega a esboços e os faz dogmas, e isso não é bom, pois emperra o progresso do conhecimento.
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— ATEÍSMO, ÉTICA E POLÍTICA —
Na atualidade não é raro nos depararmos com manifestações claramente ateístas, principalmente partindo de pessoas vinculadas a instituições importantes como a academia. Aqueles que receberam o sugestivo epíteto de “Cavaleiros do Apocalipse”, a saber, Dawkins, Hitchens, Dennett e Harris, por exemplo, ganham cada vez mais visibilidade da mídia por suas atividades. O fato é que isso, por mais contraditório que pareça, também gera desconforto aos que se dizem ateus; muitos alegam que o ateísmo não deve interferir na política, pois, segundo eles, uma vez feito isso, haveria uma legião de “novos ateus”, isto é, tão fundamentalistas quanto aqueles que são objeto de sua crítica. Logo no primeiro capítulo de Ateísmo & Liberdade, você dá a entender que a confusão a respeito da referida relação (ateísmo, ética e política) surge a partir do momento em que os sujeitos não sabem desvincular a posição ateísta de determinada pessoa da sua própria vida prática. Nos fale sobre isso.
Sempre fiz questão de deixar clara a separação entre ateísmo e vida prática. Devemos ser ateus porque deus não existe, e só. A princípio, essa não deveria sequer ser uma questão de escolha, assim como não se escolhe acreditar ou não no monte Everest. O monte existe, está lá; deus não existe, é mitologia. Deveria ser óbvio. Porém, no assunto deus, há uma grande força da tradição por detrás, então passa a ser natural abrirmos uma exceção em nossa estrutura cognitiva para acomodar apenas esse caso especial. Pois bem, isso explica por que não há lógica em tentar rechear o ateísmo com qualquer tipo de filosofia ou visão de mundo. O ateísmo não tem conteúdo, não diz nada, não representa nada, é apenas um nome. Claro que, no processo de defender-se, de justificar-se, o ateísmo acabou, por assim dizer, tomando o corpo de uma doutrina, mas ela é só um efeito colateral, uma coleção de macetes surgida da necessidade prática de defender-se numa sociedade majoritariamente religiosa, em que ateus se colocam do lado da ciência, tomando emprestado seu método para justificar sua descrença.
O que deve ficar claro é que, nesse processo, os ateus estão defendendo a si próprios, não o ateísmo. O ateísmo não diz nada, quem diz são os ateus, e eles não têm muita coisa em comum. Porém, como qualquer grupo, se se sentem incomodados, não vejo por que não deveriam poder ter suas liberdades pessoais garantidas com o mesmo rigor com que se protegem as liberdades religiosas. Ou seja, assim como ateus não podem interromper rituais religiosos simplesmente porque deus não existe, faz sentido que religiosos não possam interferir naquilo que é importante para os ateus. Mas que coisas seriam essas? Não fica muito claro em nome de que se pode lutar, senão por uma espécie de tolerância genérica em relação aos descrentes, o tipo de coisa que permitirá que se integrem lentamente ao tecido estrutural de nossa cultura como algo comum, tornando o ateísmo uma escolha trivial, assim como se tornou trivial a escolha da própria sexualidade.
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— METAFÍSICA —
Há uma atitude recorrente em seus livros, que consiste em apontar a capacidade de os indivíduos se enganarem ao pensarem a si mesmos como “especiais”. Na ciência, encontramos os neurocientistas, por exemplo, procurando fornecer respostas concretas a respeito do funcionamento do nosso cérebro, e, consequentemente, quando fazem isso com sucesso, eliminam nossas concepções equivocadas a respeito de eventos como velhice, morte, etc. Passando para o âmbito religioso, é evidente que as instituições religiosas contribuem fortemente para a perpetuação de “mitos” relacionados a esses assuntos. Na sua opinião, as ciências e os segmentos científicos modernos são capazes de um dia enterrar de vez a referência ao sobrenatural, ao “metafísico”? E ainda: como você, enquanto mantenedor do maior site de ateísmo de um dos países mais católicos do mundo, pensa a contribuição do ateísmo para que isso ocorra?
Não há referência alguma ao sobrenatural em nosso conhecimento moderno. Já entendemos bastante bem nossa biologia, entendemos como se formaram os planetas, entendemos que a matéria que hoje faz nossos corpos foi forjada no interior de estrelas, e isso não é simplesmente mais uma ótica, são os fatos; podemos provar que é assim, e isso basicamente finaliza o assunto. Se o grosso de nossa cultura não foi capaz de acompanhar os passos do conhecimento moderno, essa já é uma questão distinta, não um argumento em favor de medievalismos. O que quero dizer é que a referência ao sobrenatural só sobrevive nas porções mais atrasadas de nossa cultura, baseadas em modelos bastante ultrapassados da realidade. Deus faz parte do senso comum como uma espécie de princípio explicativo antiquado, mas ainda bastante difundido. É como gasolina: sabemos que é ineficiente, que polui, que há alternativas mais limpas e inteligentes, mas é difícil mudar, pois seu uso se encontra profundamente consolidado. Assim como a gasolina, Deus é algo obsoleto, mas que funciona bem o suficiente para não nos darmos ao trabalho de mudar até que haja motivos suficientemente bons.
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— OS SÍMBOLOS E O IMAGINÁRIO SOCIAL —
Sei que você, assim como eu, se interessa muito por filosofia. Emil Cioran, em sua obra Silogismos da amargura, formula a seguinte sentença: “Há dois mil anos que Jesus se vinga de nós por não ter morrido num sofá.” Chega a ser cômico o deboche do autor para com um desses símbolos mais famosos da história, mas o fato é que Cioran atenta para a extrema relação que mantemos com os símbolos e como eles integram o chamado “imaginário social”. Na sua opinião, por que as pessoas sentem tanta necessidade de símbolos, como Jesus Cristo? E por que eles exercem tanto poder sobre o imaginário social?
Símbolos nos dão segurança, são uma forma de justificarmos nossos costumes, ainda que de maneira circular. Até certo ponto, nós somos conscientes de que precisamos nos adestrar, condicionar nosso universo emocional para que ele corresponda às nossas expectativas e nos permita viver como desejamos. A religião cumpre exatamente esse papel. Assim, apesar de sabermos que a vida não tem sentido, que ela é simplesmente um acaso, e que qualquer ressalva que fizermos a esse respeito não será mais que o desespero de uma vaidade infantil, sabemos também que pensar dessa maneira é altamente desmotivador. Ou seja, mesmo que isso seja verdade, trata-se de uma verdade que atrapalha nossa vida prática, e é aqui que começamos a perceber a importância de relativizarmos a objetividade de nosso conhecimento, mesmo porque, se não estivéssemos dispostos a negociar nesse particular, acabaríamos morrendo de fome, porque não há motivos objetivos para nos alimentarmos, apenas instintos esculpidos por pressões seletivas ao longo das gerações.
Bem, isso nos permite perceber que nossa vida intelectual e nossa vida prática são regidas por regras distintas, sendo óbvio que a religião só diz respeito à prática. Tendo isso em mente, pensemos, por exemplo, na razão pela qual o deus do cristianismo é ao mesmo tempo perfeito e humano. Claro que, racionalmente, isso é um absurdo, mas aqui isso não importa. O importante é que essa é uma ideia motivante, eleita por seu valor simbólico. Ninguém recorre à religião porque quer estar certo, mas porque quer sentir que está certo. São coisas distintas. Retomando então a pergunta, penso que os símbolos são uma forma que encontramos de legitimar esse distanciamento da verdade com fins práticos.
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— SOBRE A SITUAÇÃO DOS ATEUS NO BRASIL —
No ano passado, Idelber Abelar, professor universitário e ateu declarado, movimentou a blogosfera brasileira quando conclamou os ateus a saírem do armário. Na época, algumas pessoas defenderam que a polêmica levantada pelo autor não pertencia à realidade brasileira. O que você pensa a respeito? Os ateus sofrem preconceito e discriminação? O debate público está ganhando forma ou é quase inexistente? Em suma, qual é a real situação dos ateus hoje no Brasil?
Bem, não tenho muito a dizer a esse respeito. Penso apenas que se ficarmos aguardando pela chegada de um mundo melhor para começarmos a nos preocupar em ser aceitos, isso não vai acontecer nunca.
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