por Juliana de Albuquerque Katz
“(…) que a impressão de beleza é a síntese de todas as impressões
favoráveis que o indivíduo percebe. Somente a justa satisfação
de todas as suas exigências, psíquicas ou físicas, pode determinar
semelhante estado de espírito”. (COUTINHO, 1995)
Estou em Israel. Daqui escrevo sobre Pernambuco. Ou melhor, sobre um pernambucano cujo nome resume toda a tradição vanguardista do nosso povo: Aluízio Bezerra Coutinho (1909-1997). E, por isso, tenho agora saudades da minha Casa Tropical: Casa-Forte – o meu ethos.
Aprendi a pensar debaixo de um pé de ingá. Conheci o Recife num telhado da Boa Vista. E, de tanto ver o mar, acabei atravessando o Atlântico. Mas Pernambuco me persegue. Foi necessário guardar distância da minha terra para conhecer a obra de Bezerra Coutinho. E foi através da sua obra, numa redução fenomenológica, que pude fazer a verdadeira experiência do meu torrão natal.
De Pernambuco para o mundo. Bezerra Coutinho viajou comigo até aqui. E agora estou presa à leitura da sua obra em pleno Oriente Médio. Onde, finalmente, constato ser notável a atualidade do seu pensamento ou a pertinência do seu método. Pois aqui, na minha Altneuland, encaro o maior dos problemas estéticos, ou seja: o problema da habitação. Que recrudesce por se tratar, antes de tudo, de um problema ético. Não apenas no sentido de uma análise das condutas humanas e das suas normatizações, mas naquilo que condiz ao próprio homem enquanto aquilo mesmo que o homem é: liberdade. Principalmente a liberdade de interagir e se deixar adaptar ao meio como um organismo vivo complexo que sobrevive às exigências da seleção natural. E, para isso, é preciso que tal liberdade ontológica seja respeitada de forma que se atinja, finalmente, entre os indivíduos de determinado meio, a capacidade de síntese de “todas as impressões favoráveis que um indivíduo percebe”: impressões psíquicas ou físicas, para que haja a impressão da beleza.
Segundo o estudo de Aluízio Bezerra Coutinho, a experiência colonial brasileira com a importação do modelo de sobrados para deitar habitações nos trópicos mostrou-se desfavorável na medida em que aqueles não se mostraram hábeis o suficiente para manter as exigências de higiene no Novo Mundo. Se o projeto dos sobrados foi, em Portugal, eficiente, existiu um motivo para tal: a inter-relação entre arquitetura e meio-ambiente. O que de forma alguma sucedeu, por exemplo, em Pernambuco.
A experiência pernambucana com os sobrados pode ser comparada à experiência israelense com a importação indiscriminada dos produtos intelectuais da escola Bauhaus. Pois o projeto de residência de um israelense médio não capta a necessidade de interação com o meio. O que, de uma forma ou de outra, significa atirar por terra o pensamento e a ideia inicial de Walter Gropius (1883-1969) quando fundou aquela escola de arquitetura.
Ora, o trabalho de Gropius, contemporâneo ao de Coutinho, primava por captar o espírito do seu tempo e, por isso, exigia uma nova arquitetura. Uma arquitetura que cumprisse a tarefa de síntese dos ramos do conhecimento intelectual e, ainda, cumprisse um dever social. A extrema funcionalidade e o custo reduzido das obras tinham como fim a produção em massa de bens de consumo. Todavia, por detrás dessas preocupações residia uma ideologia ainda mais forte: a Bauhaus deveria ir além do racionalismo funcional. Evitar arbitrariedades e ater-se ao essencial para a criação do novo.
Mas o novo não chegou para o israelense médio que vive isolado em cubículos úmidos, onde no verão mal se recebe a luz do sol ou o vento e, no inverno, guarda a aparência triste de uma caserna militar ou de um bunker. Assim, o trabalho de Gropius tornou-se desvirtuado em Israel. Perdendo, sobretudo, a esperança de estar cumprindo um dever social. Pois a funcionalidade dos prédios foi esquecida e o baixo custo na produção de bens de consumo tornou-se um fator arbitrário. De maneira que, hoje, tem-se em Israel uma paisagem urbana monótona e que não valoriza a integração do homem com o meio.
E sem essa valorização da ecologia, ou da consciente integração do homem com o meio, não se pode falar em saúde habitacional. Há uma queda nos hábitos de higiene de uma população e, em consequência disso, a disseminação de uma série de mazelas físicas e psicológicas. Daí a grande importância do estudo de Coutinho: pois onde não há saúde não existe a íntegra percepção da realidade. E quando falhamos em apreender a realidade, também falhamos em refletir sobre o belo.
Assim, o que a obra de Coutinho pretende, através da sua apreensão holística dos ramos do saber, é libertar o homem da cegueira intelectual. E, porque não dizer, existencial. Se em O problema da habitação higiênica nos países quentes em face da “Arquitetura Viva” ele se ocupou de traçar uma ligação entre medicina, ética, ecologia e arquitetura, para que não permanecêssemos tal batalhão de Simplícios, em A Origem da Vida essa verve revolucionária do seu pensamento segue em marcha.
Neste livro, que em edição anterior mereceu o belíssimo prefácio da Profª Maria do Carmo Tavares de Miranda, nos defrontamos com o esforço do pernambucano em rebater as proposições vazias dos discursos criacionistas e místicos. Proposições que, muito embora recheadas de retórica, pouco adicionaram ao estudo e ao desenvolvimento das ciências particulares. Afinal, não faziam outra coisa que afastar o homem de si mesmo. Ou seja: da sua ligação com o mundo e da sua necessidade de se explicar o mundo e de se explicar a si mesmo.
Para Coutinho, enquanto ramo do saber científico, a biologia deveria ganhar legitimidade diante das outras ciências tradicionais como a matemática ou a física. Mas, para isso, se tornava necessário que o discurso referente à biologia amadurecesse. Daí parte a sua crítica à Teilhard de Chardin e o reconhecimento dos esforços de Darwin, Von Neumann e tantos outros nomes que buscaram afastar o homem da bolha de superstição teológica para trazê-lo de volta ao bom senso quanto à questão: o que é a vida?
Quando o professor nos chama atenção para compreender a vida como
a soma dos processos que se manifestam nas estruturas que, incorrendo em grave risco de argumentação circular, reconhecemos como vivas à maneira de nós mesmos, e que diferem em aparência e comportamento com o que se vê no que chamamos objetos inanimados, inertes, matéria bruta, (…) (COUTINHO, 1995)
ele, imediatamente depois, propõe a reflexão: como a vida se originou e se encaixou entre os fenômenos naturais? O que irá caracterizar o seu trabalho enquanto tentativa de reflexão filosófica. E aqui nos deparamos mais uma vez com a sua capacidade de criação intelectual.
Num texto claro, aos moldes da boa redação cartesiana, Aluízio Bezerra Coutinho não colocou a sua obra refém de doutrinas ideologizantes. E assim, sem a intenção de enganar o leitor, ele irá tecer severas críticas à metafísica tradicional de traços onto-teológicos. Neste sentido, a metafísica será citada, reiteradas vezes, como o domínio de intelectuais “de inclinação filosófica mais ou menos mística, impregnados de teologismo.”
A discussão velada de Bezerra Coutinho sobre o conteúdo dessa onto-teologia reside no fato de que, atualizado sobre as tendências do pensamento da sua época, ele irá se posicionar ao lado dos racionalistas críticos. Tendo por preocupação a teoria do conhecimento e, por isso mesmo, a sustentabilidade do discurso científico, através de uma concepção de método científico que vá proporcionar, enfim, a ideia de progresso na ciência.
Todavia, a originalidade da obra do Professor Aluízio Bezerra Coutinho não cede aos rótulos. E, por isso, se torna possível dizer que em A Origem da Vida, na sua luta contra as superstições herdadas pela metafísica tradicional, ele não irá vislumbrar o projeto científico por si só. Mas irá compreender que este só será possível a partir do momento em que guardar a interação com o sujeito e o meio em que este se insere. Enfim, o progresso do discurso científico dependerá do sujeito tomar para si as rédeas da sua própria situação de finitude. Pois só assim tal discurso irá se referir ao sujeito e terá sustentabilidade, tornando-se, por fim, impregnado de uma preocupação ética, ou seja, uma busca pela liberdade.
—–
P.S.: Escrevi este texto em setembro de 2009 para o projeto de um livro em homenagem ao centenário do médico e pensador pernambucano Aluízio Bezerra Coutinho. Como o projeto do livro não decolou, resolvi pelo menos dividir com vocês algumas das minhas primeiras impressões sobre Israel e sobre o pensamento de Bezerra Coutinho. Um agradecimento especial à Silvia Katz por despertar o meu interesse pela obra do seu pai.
—–
Referências:
— História e Filosofia das Ciências, de Aluízio Bezerra Coutinho (Ed. Universitária da UFPE, 1995)
— O problema da habitação higiênica nos países quentes em face da “Arquitetura Viva” (Tese na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1930)
-
Silvia Katz
-
http://www.dosespiritos.com Juliana de Albuquerque K.
-
-
http://literaturaecríticacultural Fernando da Mota Lima
-
http://www.dosespiritos.com Juliana de Albuquerque K.
-
-
David Rosenthal
-
http://www.dosespiritos.com Juliana de Albuquerque K.
-
-
José Eulalio Cabral
-
http://www.dosespiritos.com Juliana de Albuquerque K.
-
-
Raul Manhaes de Castro