Livro de Alex Kershaw relembra os aventureiros pilotos dos EUA que lutaram na Batalha da Grã-Bretanha
por Daniel Lopes
Foi um tempo em que a sobrevivência da democracia na Europa – no mínimo lá – ficou de responsabilidade da Grã-Bretanha, especialmente de seu líder Winston Churchill. O futuro aliado por afinidade da ilha, os Estados Unidos, ainda estava formalmente neutro no conflito europeu, com Roosevelt tendo seu desejo de entrar na guerra oposto por amplos setores da sociedade – de pacifistas dogmáticos a descarados filofascistas, passando por comunistas e outros “anti-imperialistas”, “realistas” e opositores adeptos de ideologias menos totalizantes. E o futuro aliado de conveniência dos ingleses, os soviéticos, estavam em pacto de paz com os nazistas, feito para ganhar território, metade da Polônia sendo a pérola da coroa. Após abarcar metade da Polônia, os nazistas haviam derrubado a França e partiram para a conquista da Grã-Bretanha. Foi o fracasso alemão aí que tornou possível a importância, talvez mesmo a existência, no futuro de Stalingrado (quando os estadunidenses, trazidos à guerra pela resistência inglesa, estavam ajudando materialmente os russos) e Normandia (um empreendimento essencialmente anglo-americano).
O plano de Hitler em 1940 era claro. Como expressou o genocida em diretiva de setembro, “a Luftwaffe usará de todas as forças à sua disposição para destruir a Força Aérea britânica tão rapidamente quanto possível. Em primeira instância, os ataques devem ser dirigidos contra as suas formações de voo, as suas organizações de terra e as suas organizações de suprimento… Reides de terror como represália, eu me reservo o direito de ordená-los.”
À liquidação da Royal Air Force se seguiria naturalmente a invasão por terra e a nazificação do país. O caráter heroico de Churchill, alguns de seus oficiais e, principalmente, de seus milhares de pilotos já foi analisado em diversas ocasiões. Mas a ação britânica na Batalha da Grã-Bretanha foi na verdade uma ação multinacional – ou melhor, multinacionalidade. Com Os Eleitos, de Alex Kershaw, a participação de estadunidenses nesse conflito se tornou mais conhecida do grande público. Oito pilotos dos EUA participaram da maior batalha de aviação da história. Em breve, mais de 200 se uniriam à aviação britânica com apoio de seu país, mas esses oito foram uma vanguarda. Eram pilotos comerciais, ou até mesmo pilotavam por hobby. Como seu país estava oficialmente neutro, se esses homens fossem surpreendidos pelas autoridades saindo da América para lutar na Europa, seriam presos por vários anos, multados em milhares de dólares e perderiam passaportes. Ainda assim, nacionais dos Estados Unidos acabaram fazendo parte de esquadrões de interceptação da RAF – para o lado britânico, a Batalha foi eminentemente defensiva: os caças alemães saiam do norte da França com o objetivo de bombardear alvos na ilha, e britânicos e aliados, obrigatoriamente sempre alertas, tinham poucos minutos para ganhar os ares e dar combate aos agressores; às vezes eles falhavam e alvos eram atingidos na Inglaterra, milhares desses jovens pilotos perderam as vidas, mas no final das contas o esforço valeu a primeira e decisiva derrota da força aérea nazista.
Alex Kershaw, britânico radicado nos EUA, acompanha em seu livro a trajetória desse punhado de estadunidenses que, precocemente, lutou pela Grã-Bretanha. Dado os altos riscos – não apenas de prisão e multa nos EUA, mas de morte na Europa –, por que esse pessoal resolveu enfrentá-los mesmo assim? Por motivos diversos. Alguns foram prescientes, imaginando que seus compatriotas mais cedo ou mais tarde se veriam enfrentando os nazistas; outros foram para o velho continente por puro aventureirismo e ambição financeira, não resistindo nem à tentação de voar em máquinas mais velozes que as que até então pilotavam, nem ao dinheiro oferecido por agenciadores de pilotos operando na América do Norte (a “fuga” de alguns passou pelo Canadá); outros foram por idealismo (como William Fiske, premiado atleta olímpico de 27 anos nascido no Brooklyn, que em 1936 já havia se recusado a competir na Baviera, pela região ser o berço do Nacional Socialismo); e pelo menos um foi movido por messianismo (o católico descendente de irlandeses Arthur Donahue, que, segundo Kershaw, acreditava que “Deus tinha lhe dado a missão de derrotar as forças do nazismo, ou do barbarismo, conforme ele preferia chamar”). A propósito, algumas vitórias da RAF nesses meses de 1940 realmente pareciam ser milagres, levando-se em conta a frequente superioridade numérica de aviões alemães.
O percurso que alguns desses jovens percorreram até se verem lutando contra a Luftwaffe sobre as águas do Canal dá uma noção da velocidade com que a balança estava pendendo para o lado do totalitarismo. Kershaw narra a saída de um pequeno grupo de amigos dos EUA determinado a lutar ao lado dos finlandeses contra os invasores soviéticos. Como a queda da Finlândia não lhes deixou com tempo para tanto, esse grupo se viu na França, disposto a defendê-la dos nazistas, chegando de trem a Paris junto com as bombas da aviação inimiga. A inacreditável burocracia dos franceses (bem lembrada pelo homem de letras e de armas Marc Bloch em seu livro sobre a queda da França) fez com que ainda não fosse dessa vez que o grupo entraria em peleja contra Hitler. De Paris, os pilotos fugiram para Tur-Arcay, mesmo caminho tomado por autoridades francesas, de lá para Bordeaux, de lá para Saint-Jean-de-Luz, e de lá tomaram uma embarcação que estava escapando para a Inglaterra – menos de duas horas depois, os alemães tomaram a cidade. Na Inglaterra, finalmente ação. Dos oito homens que Kershaw acompanha, apenas um sobreviveria. Fiske, o atleta do Brooklyn, morreria em agosto de 1940. Donahue, o católico que ouviu o chamado de Deus para lutar contra a barbárie nazista, morreria em setembro de 1942.
O tipo de divulgação histórica que Alex Kershaw pratica consegue vasta audiência e familiariza o grande público com eventos importantes. Mas esse tipo de divulgação corre sempre dois riscos: não contextualizar devidamente os eventos em destaque e perder completamente de vista outras partes igualmente importantes do todo. Os Eleitos escapa do primeiro risco, narrando aventuras eletrizantes em paralelo às decisões de líderes europeus, mas não escapa do segundo. Embora a partir do final de 1940 o número de estadunidenses na aviação britânica subiria drasticamente, no período especificamente coberto por Kershaw outras nacionalidades se destacaram mais na Batalha da Grã-Bretanha do que os estadunidenses. Neozelandeses (135 pilotos reconhecidos oficialmente), canadenses (112), australianos (32), sul-africanos (25) e irlandeses (10) foram mais numerosos que estadunidenses, como também o foram poloneses (145), tchecoslovacos (88), belgas (28) e franceses (13). O fato do primeiro grupo ter se juntado por fazer parte dos Domínios britânicos não torna seus membros menos heroicos. Tampouco o fato do segundo grupo ser formado de dissidentes dos países invadidos por Hitler, que lutavam pela sobrevivência de suas nações pré-nazificação e pela vida ou memória de amigos e familiares, tornam esses homens menos nobres. Ainda assim, essas pessoas são negligenciadas em Os Eleitos. Citá-las não tiraria o brilho do punhado de estadunidenses, como citar os estadunidenses não tira o brilho, por exemplo, do solitário jamaicano que lutou nos ares contra o nazismo. Conforme eu vejo, se você está escrevendo um livro sobre um grupo de pilotos estrangeiros no lado britânico da Batalha da Grã-Bretanha, você tem a obrigação de elaborar pelo menos um anexo para reconhecer outros grupos tão ou mais importantes para a Batalha do que o que você tomou para objeto de estudo. Com certeza um livro sobre os estadunidenses teria maior obrigação de citar o papel dos mais de 140 dissidentes poloneses do que vice-versa.
::: Os Eleitos ::: Alex Kershaw (trad. Renato Aguiar) ::: Record, 2011, 336 páginas :::
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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