Um mistério em tons de cinza
por Orlando Simões
Um das maiores escritoras de seu tempo, um homem casado e entediado com a vida que leva entre o banco onde trabalha e sua casa, uma esposa com um estranho problema de saúde e uma ainda mais estranha jaula no centro de sua sala com uma misteriosa “coisa” em seu interior, um analista que adora fazer comentários impertinentes e desnecessários sobre tudo, uma telefonista insistente e que sabe escolher as piores horas para fazer seu serviço… Isso tudo em São Francisco, Califórnia, como sempre adora frisar uma voz em off, típica do cinema noir.
O casal Sweetheart leva uma vida aparentemente normal — apática, mas normal… e aparentemente. A srª Sweetheart passa seus dias em vigília diante de uma jaula no centro de sua sala, no centro da jaula uma estranha criatura rosna e grita, no interior da cabeça da jovem senhora estranhos sons atormentam seus pensamentos enquanto a rotina diária da vida doméstica a consome de tédio e seu casamento com Sweetheart é cheio de discussões e troca de farpas. Mas a jovem senhora Sweetheart aspira uma vida melhor, pretende ser escritora, uma grande escritora como é Deborah Rope, sua maior inspiração.
O que a solitária senhora Sweetheart não sabe é que Deborah Rope acaba de se tornar sua vizinha. Isso vai mudar sua vida para sempre. O que a jovem esposa do Sr. Sweetheart não esperava era o surgimento de um tórrido caso de amor entre seu esposo e sua grande fonte de inspiração. Então a peça-filme toma ares macabros e misteriosos com uma trama improvável envolvendo motivações torpes e um plano de assassinato ainda mais improvável e muito mais torpe.
O diretor Saulo Sisnando nos entrega um verdadeiro espetáculo híbrido entre o cinema e o teatro em uma trama divertida e ao mesmo tempo mórbida, com diálogos irônicos e situações surreais que beiram o absurdo e põe a lógica e a sanidade de seus personagens em cheque. E a nossa também. Não sabemos o que motiva aquelas pessoas em suas vidas tão vazias: Uma escritora voluptuosa, uma jovem senhora perdida num casamento sem amor, um marido frio, distante e promíscuo, uma criatura presa numa jaula rosnando para tudo e todos, um investigador com um mistério insolúvel nas mãos… Nada é claro para quem se depara com as cenas no palco.
No palco as atrizes Adelaide Tereza e Luiza Braga se revezam no papel da triste e melancólica Darlign Sweetheart, esposa desprezada, escrava de uma doença que a impossibilita de ir até o jardim de sua casa, a pobre mulher cultiva uma admiração sem tamanho pela escritora Deborah Rope que. O diretor optou pro criar no palco um espaço múltiplo, mesclando planos em um cenário minimalista, utilização praticamente inexistente de cores, exceto por detalhes de cena e o grande toque fica por conta da tonalidade cinzenta de sua montagem.
Como em um filme em preto e branco no melhor estilo noir, Sisnando literalmente tinge de cinza seu elenco e os faz contemplar sempre para a frente, como se centrassem o foco de seus olhares para uma câmera cinematográfica fictícia em algum ponto ao fundo do teatro.
E não para por aí. O diretor aproveita duplamente seu elenco para hibridizar ainda mais sua proposta de criar uma peça-filme. Ao utilizar em diversos pontos o recurso das projeções em vídeo para contar ou mostrar pontos ocultos da história, Saulo acerta em cheio ao dar a seus espectadores a oportunidade de acompanhar a trama por dois modos diferentes: um ao estilo teatral, outro ao estilo cinematográfico.
Sem esconder sua grande predileção pelo tema e estilo dos filmes noir, Saulo e seu elenco se afinam para incorporar os estereótipos deste estilo: a mulher fatal em contraponto à mulher mais frágil e indefesa, o homem promíscuo divido entre elas. Ao se encontrarem, é um embate e uma troca de farpas para ganhar um luta que se trava no campo das ideias e das palavras — de um lado, a voraz e sedutora escritora Deborah Hope, do outro, a tímida e insegura dona de casa que não pode nem chegar ao Jardim, a senhora Darling Swetheart que nutre um misto de ódio e admiração pela sua vizinha e objeto de adoração. Mas o fã supera o ídolo e Darling cria sua obra-prima, um livro fantástico capaz de arrancar elogios de sua rival, nas letras e na cama do marido.
Mas somos todos rondados por uma estranha fera, uma criatura que habita o interior de uma jaula, ou seria o interior de uma mente? Seria um doppelganger das lendas alemãs? Seria uma segunda pessoa a dividir uma vida pela metade com sua gêmea? Saulo não dá respostas fáceis para o que nos entrega no palco. Com um humor ora escrachado, ora sarcástico, o diretor e seu elenco nos colocam dúvidas ao seguirem adiante na trama. Ninguém disse que teatro tem de ser fácil. Pensemos, pois.
O grupo Teatro de Apartamento sintoniza muito bem com as propostas de Saulo, tanto ao usar e abusar da estética noir quanto ao criar em uma peça praticamente um filme em tempo real. Com espetáculos como “Quatro vs. Cadáver” e “O incrível segredo da Mulher-Macaco” e muitos outros, o versátil grupo se diverte no que faz e nos diverte e arranca o riso, mesmo nas situações mais insólitas — como o perceber de um cabide feito de ossos, um jantar de carne de vaca, um interrogatório misterioso e uma fatia de bolo que eu particularmente acho muito doce.
“O misterioso desaparecimento de Deborah Rope” teve sua estreia no começo do mês de junho e ficou em cartaz na cidade de Belém durante todos os finais de semana do mês. Como parte de um processo de pesquisa para sua dissertação de mestrado, muito provavelmente a peça de Sisnando percorrerá outras cidades do país, como foi o caso das já citadas “Quatro vs. Cadáver”, que fez turnê por estados do norte e nordeste, e “O incrível segredo da Mulher-Macaco”, que teve exibições no Rio de Janeiro.
Só no aguardo…