Mais algumas mentes brilhantes

Keynes é o arquétipo do "gênio econômico" que emerge do livro, reunindo profunda curiosidade intelectual, flexibilidade, inteligência e veia política.

“A imaginação econômica: Gênios que criaram a economia moderna e mudaram a história”, de Sylvia Nasar

Este livro da economista (mestre pela New York University) e jornalista Sylvia Nasar propõe-se a mostrar como a humanidade, a partir de meados do século XIX, superou boa parte de suas limitações materiais (a chamada armadilha malthusiana, definida no clássico de 1798 An essay on the principle of population) e conseguiu viabilizar um aumento de quase seis vezes na população do planeta, chegando aos dias de hoje com, salvo exceções que confirmam a regra, o melhor padrão de vida de sua história. Na visão da autora, isso deve-se em parte significativa à militância de economistas, esses curiosos seres que começaram a ter sua atividade bem delineada ao longo da Revolução Industrial, marco inequívoco do início da acumulação capitalista, e resolveram investigar como lidar com problemas sociais que envolvem essa acumulação, a produção de mercadorias, sua alocação e relação com os conceitos abstratos de valor e moeda.

Evidentemente, é impossível isolar a contribuição dos economistas para a evolução do capitalismo. Todos os mencionados no livro são produtos de seus tempos e circunstâncias (mais do que quanto os moldaram, creio), mas Nasar consegue montar uma grande defesa do ofício – especialmente daqueles que não só tentaram teorizar sobre economia, mas tiveram (ou tentaram ter) papéis decisivos na formulação e discussão de políticas desenhadas para aumentar o bem estar da sociedade ou resolver problemas criados por guerras e outras demonstrações de estupidez da espécie. Por esse princípio, ficaram de lado alguns reconhecidos pioneiros da dismal science, como Adam Smith e David Ricardo, e Karl Marx tem a relevância diminuída por sua falta de contato com a realidade (nunca visitou uma fábrica, aponta a pesquisa histórica) e excessiva abstração teórica.

O livro começa de verdade com Alfred Marshall, o pai da economia marginal, e segue pela vida de uma figura pouco estudada nos cursos de história do pensamento econômico por aqui: Beatrice Webb, uma aristocrata (filha de um dos milionários do primeiro boom de estradas de ferro na Inglaterra) brilhante e inquieta que, entre outros feitos, foi das primeiras a estudar a condição miserável dos trabalhadores britânicos do fim do século XIX, co-fundou a London School of Economics, colaborou com o socialismo fabiano e foi pioneira no esboço de um estado de bem-estar social (welfare state).

A cronologia segue pelas vidas do austríaco Joseph Schumpeter e do americano Irving Fisher durante os anos de prosperidade antes da Primeira Guerra, e é após o término desta, com boa parte da Europa destruída e o fim temporário do ideal cosmopolita do início do século XX, que desponta o grande personagem do livro: John Maynard Keynes. Sua figura é predominante até sua morte, em 1946, passando pela crítica presciente ao Tratado de Versalhes (no magistral As consequências econômicas da paz), o entendimento da Grande Depressão (que, em alguma medida, desmoralizou tanto Schumpeter quanto Fisher, este famoso por acreditar que os preços de ações americanas haviam atingido uma “planície permanentemente elevada” poucas semanas antes do crash de 1929), a invenção da macroeconomia com a Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, a atuação durante a Segunda Guerra e a influência sobre o acordo de Bretton Woods e quase todos os economistas importantes das gerações seguintes.

No vácuo deixado por Keynes, o principal pólo do pensamento econômico começa a se deslocar da Cambridge inglesa para a Cambridge vizinha a Boston (onde estão Harvard e o MIT), Chicago e os demais centros universitários dos EUA. No Reino Unido ainda seriam formados Joan Robinson (que parecia a maior promessa de continuação da tradição de Keynes, mas se perdeu com a instabilidade psiquiátrica e o apoio imperdoável ao totalitarismo comunista) e o grande teórico indiano de desenvolvimento e justiça social Amartya Sen (que, em 1986, também cruzaria o Atlântico para lecionar em Harvard, onde trabalha até hoje).

– A autora -

Em 1950 Friedrich Hayek transfere-se da London School of Economics para a Universidade de Chicago, onde Milton Friedman já trabalhava desde 1946. Em Chicago, sob a influência de Hayerk, seria moldado o paradigma liberal que vem dominando a economia política há mais de 30 anos. Curiosamente, a autora dá pouco destaque para os economistas americanos mais recentes – dedica apenas um capítulo a Paul Samuelson e fala mais sobre a passagem de Friedman pelo serviço público pouco antes e durante a Segunda Guerra (onde, ironicamente, dedicou-se a tentar aumentar a arrecadação federal de impostos) do que sobre seus papéis de mentor intelectual da virada liberal dos anos 1980 e, possivelmente, economista mais influente desde Keynes.

Keynes é o arquétipo do “gênio econômico” que emerge do livro, reunindo profunda curiosidade intelectual, flexibilidade, inteligência e veia política. Os demais retratados, em sua maioria, também tiveram influência na sociedade e na criação e implementação de políticas públicas. Hoje o papel do economista parece fragmentado em pesquisas especializadas, muitas vezes fechadas em suas áreas e com pouco interesse no que ocorre no mundo como um tudo (como exercício, vale passar os olhos na lista de ganhadores do Nobel de Economia nos últimos anos e tentar apontar quantos foram influentes no dia-a-dia de alguma parte da população). Talvez esse fosse mesmo o caminho natural da economia e de outras ciências sociais, mas creio que uma das mensagens possíveis do livro é que pensadores econômicos generalistas, de grande capacidade de persuasão e influência política, fazem falta nos nossos dias. Amartya Sen, hoje com 78 anos, é o mais jovem retratado no livro, e quase não há menção à crise iniciada em meados de 2007 – talvez porque ainda está para surgir a grande figura pública que vai se meter a resolvê-la (Paul Krugman adoraria ocupar esse lugar, o que, aparentemente, não vai ocorrer tão cedo).

À época do seu lançamento nos EUA (setembro do ano passado), A imaginação econômica foi amplamente comentado e resenhado, em parte pelo sucesso da autora com a biografia (posteriormente levada ao cinema) do matemático, pioneiro da Teoria dos Jogos e Nobel de Economia John Nash (Uma mente brilhante), mas muito também, creio, pela combinação do grande interesse do público americano por história e economia com a falta de uma obra abrangente e não-técnica sobre o tema desde The worldly philosophers, de 1953 (que soma mais de quatro milhões de cópias vendidas). Não é uma história do pensamento econômico (fala relativamente pouco de teoria e da evolução das ideias – para isso, Robert Solow, em sua resenha do livro de Nasar publicada na New Republic, recomenda o também recente Economics evolving, do norueguês Agnar Sandmo), nem uma história econômica do período pós-Revolução Industrial: é a história de uma tradição de economistas agindo como intelectuais públicos e engajados com as causas que julgavam decisivas para as sociedades em que viviam.

A autora parece concordar com um célebre brinde corporativista chamado por Keynes: “Aos economistas – que são os protetores não da civilização, mas da possibilidade de civilização.” O trabalho de pesquisa foi imenso (o livro tem mais de 60 páginas de notas bibliográficas), e Sylvia Nasar tem um grande talento para entreter o leitor com anedotas, sem comprometer a linha narrativa (às vezes repete fatos já citados como se fossem novos, mas é um pecado menor). Perdoadas essas limitações e algumas omissões, é uma grande leitura, fica recomendado.

::: A imaginação econômica :::
::: Sylvia Nasar (trad. Carlos de Moura) :::
::: Companhia das Letras, 2012, 584 páginas :::
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  • cilene

    o livro é muito interessante ainda estou lendo……

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