Indivíduos que, em plena tormenta, não sucumbem às religiões políticas
Quando se lê sobre a resistência civil a regimes ditatoriais no século 20, é impressionante como uma figura se destaca: a do indivíduo religioso, bastante assíduo em sua congregação, que, muitas vezes contra a orientação da própria hierarquia desta congregação, resolve se posicionar contra um governo autoritário.
Não é, óbvio, que inexistam exemplos de religiosos solidários a ditadores, de Franco a Castro. Não é que inexistam ateus se erguendo mesmo contra totalitarismos oficialmente ateus. É que na longa noite que foi a maior parte do século passado, as paixões ideológicas foram de tal magnitude que, uma vez embebido certo ideário, para o sujeito sair disparando contra qualquer autoritarismo, e não apenas contra os alvos preferenciais de sua linha partidária, era muito difícil. Em um contexto como esse, ser uma pessoa religiosa permitiu a uma infinidade de homens e mulheres manter calibrado o termômetro instintivo que reconhece o mal de onde quer que venha, sob qualquer disfarce ideológico. É como se as religiões clássicas, com muitos séculos mais de existência que as religiões políticas, tivessem conseguido, por tentativa e erro que fosse, preparar melhor seus adeptos para identificarem com mais nitidez que os religiosos políticos a desumanidade consumada ou em potencial.
Por exemplo, é impossível não notar que os dois únicos brasileiros homenageados pelo Museu do Holocausto de Jerusalém com o título de Justo Entre as Nações, por ajudarem a livrar judeus do nazifascismo, ao mesmo tempo em que colocavam suas carreiras e talvez vidas em perigo, são sujeitos profundamente católicos – o embaixador na França Luiz Martins de Souza Dantas e Aracy de Carvalho Tess, do corpo diplomático brasileiro na Hamburgo dos anos 1930. Há boas biografias dos dois, escritas respectivamente por Fábio Koifman e Mônica Schpun. A oposição de ambos os homenageados à bandidagem nazista era essencialmente cristã. Tendo que explicar suas interferências nos “assuntos alemães” a um indignado Itamaraty, Souza Dantas escreveu em um memorando de 1942 que agiu “movido pelos mais elementares sentimentos de piedade cristã”. Pode-se dizer que essa linha e tantas outras foram elaboradas apenas para amolecer corações no Itamaraty? Não, se você tomar como base o todo biográfico do embaixador. Para vários outros exemplos, ainda na Europa do século 20, o leitor pode conferir o quase inacreditavelmente bom Moral combat de Michael Burleigh.
Estive lembrando de indivíduos como Aracy de Carvalho ao percorrer vários capítulos do livro do veterano jornalista Paulo Moreira Leite sobre a resistência civil à ditadura militar brasileira, A mulher que era o general da casa. Especialmente no texto sobre a dita cuja, que vem a ser Therezinha Zerbini. O livro de Moreira Leite reúne reportagens publicadas em veículos tão diferentes quanto Veja e Caros Amigos. A única inédita é o perfil de Therezinha, que abre o volume. Casada em 1964 com o general Euryale Zerbini, membro do lendário e imaginário “dispositivo” de João Goulart nas forças armadas, e logo afastado de suas funções pelos golpistas, Therezinha não perdeu um segundo antes de transformar sua casa paulistana em centro de resistência ao governo ilegítimo e cada vez mais violento.
Quando eu digo que a mulher que era o general da casa não perdeu um segundo, estou exagerando só um pouquinho. E como sempre há gente perguntado o que há de muito difícil em se opor a ditaduras, é preciso continuar lembrando do apoio do povão e das elites que as ditaduras costumam gozar em boa parte de suas lamentáveis existências. No caso brasileiro, botar banca com o novo governo logo no 1° de abril de 1964 era ir contra ao que se tinha como opinião esclarecida e razoável. Quer ver, veja. Outro dia li um livro de 1965 chamado Mobilização da audácia, de José Stacchini. Nunca mais foi reeditado, mas ainda pode ser encontrado em sebos. Tenha o seu antes que suma por completo, ainda mais se você é jovem. É uma obra recomendável por três motivos. 1)Stacchini foi um competente repórter do Estadão, com acesso aos protagonistas do golpe de 64, e esse seu livro de reportagens, parcialidade posta de lado, tem o mérito de ter sido um dos primeiros, se não o primeiro, a ligar todos os fios políticos que desencadearam a derrubada de Goulart. 2)É uma obra para ser sacada da estante a cada vez que alguém tentar reescrever a história de apoio da grande imprensa à interrupção da ordem democrática. Mobilização da audácia tem não menos que três introduções, bastante elogiosas ao posicionamento do jornalista e de seu jornal diante do golpe (que ele chama “Revolução”, e eu não decidi se isso era mais patético em 1965, quando era claro sintoma de papagaice e lambeção de saco do governo ilegítimo, ou hoje em dia, quando a insistência no termo deriva da pirraça de milicos que nunca se conformaram em passar para o papel de coadjuvantes após a redemocratização). As introduções elogiosas foram escritas por ninguém menos que o marechal Odylio Denys (ele mesmo) e os generais Olympio Mourão Filho e Carlos Luiz Guedes (sim, os próprios). O senhor Denys lembra que Stacchini pertence a “um dos nossos maiores diários – O Estado de S. Paulo – que sempre se empenhou no programa defendido pela Revolução”, e festeja também “seu chefe, o grande brasileiro Júlio de Mesquita Filho”. Sem mais. 3)Até pelo apoio da imprensa bem lida, o livro é mais uma prova da capilaridade do apoio ao golpe nas classes médias, às quais pertenceram ou pertencem todos os perfilados por Paulo Moreira Leite em A mulher…. Para eles, ir contra aquele estado de coisas era cada vez mais perigoso em termos de status e integridade física.
Compreensivelmente, as ações de Therezinha Zerbini foram se tornando mais sutis e cheias de truques à medida que o regime apertava o torniquete. Mas ela jamais esmoreceu. Recebia mães pobres de todo o país, em São Paulo atrás de seus filhos detidos. Fundou o grupo Mães Paulistas Contra a Violência. Ajudava a arrumar documentos falsos para resistentes que passavam à clandestinidade. Abrigou alguns destes por alguns dias. Em 1970, passou 8 meses no presídio de Tiradentes. Vendeu brincos de brilhante para arrecadar dinheiro e, com orientação do pessoal do consulado estadunidense de São Paulo, foi a uma conferência da ONU no México em 1975, Ano Internacional da Mulher, onde leu a quem quis ouvir o Manifesto da Mulher Brasileira em Favor da Anistia. Misturou-se à delegação dos EUA em viagem oficial ao Brasil, conseguindo penetrar no Congresso e fazer breve contato com a primeira-dama Rosalynn Carter. Em um momento de seu relato, Moreira Leite opina que “avaliando tantos perigos, a impressão é que às vezes ela cedia a impulsos temerários.”
Concordo. Foi por aí que eu vi o espírito de uma Aracy de Carvalho. Therezinha era (é) católica, muito religiosa – “A família sempre frequentou o convento dos dominicanos”, informa Moreira Leite, “tão perto de casa que, quando é meio dia ou dá seis horas, ouve-se o tocar dos sinos. Nesses momentos, Therezinha interrompe qualquer coisa que estiver fazendo, para de falar, fecha os olhos e reza a Ave Maria”. Ver jovens com rostos arrebentados por tortura parece ter despertado nela muito mais que a consciência de um “sistema” violento. Aquele Estado policial era conhecido demais, primitivo demais, para que se levasse a sério qualquer pretensão de novidade.
Nem Moreira Leite nem a própria Therezinha, por ele entrevistada, colocam as coisas assim tão claramente, mas eu mesmo não fiquei com dúvidas de que ela via o regime militar muito mais do que em termos ideológicos. A corda que os eventos pós-março de 64 tocaram nela foi mais profunda. Ela se opunha ao mal básico. Tanto que não deixou de ver, em plenos anos de chumbo, o potencial para se gerar o mal entre os próprios membros do campo a que havia se aliado para fazer oposição a Castello Branco e sucessores. Sim, porque suas divergências com a esquerda iam muito além da querela com as feministas que a fez deixar o jornal Brasil Mulher, que ajudara a lançar, e fundar o Maria Quitéria. Ela era fundamentalmente contra as ações dos grupos armados da oposição. Não creio que ela jamais tenha ido a uma biblioteca para ler teóricos marxistas, antimarxistas, feito a ponte entre “guerrilha maoísta” e “maoísmo”, e finalmente chegado à conclusão de que seria prudente se opor a tal coisa desde já. Não mesmo. Foi apenas intuitivo. E em momentos de cegueira político-ideológica, não é preciso mais que intuição para colocar uma pessoa moralmente degraus acima das correntes principais. Foi o lado religioso de Therezinha que manteve seu bom senso intacto durante a tormenta.
Ela sempre foi também espirituosa. Quando, em colóquio com universitários radicais, sofreu apupos ao dizer que a anistia deveria levar o país à democracia, não à revolução, se limitou a dizer para a molecada que “a vaia é democrática, mas não é civilizada.” Podemos ter certeza de que, houvesse um regime autoritário de esquerda sucedido em qualquer momento o regime autoritário de direita, Therezinha estaria igualmente na oposição. E é isso que faz dela, aqui pelos meus critérios, uma heroína brasileira. Espírito parecido movia o rabino Henry Sobel, perfilado por Moreira Leite. Bem como o reverendo Jaime Wright, idem. Wright foi outro religioso que teve consciência de que a violência e o potencial para tragédias não vêm sempre do mesmo lado do espectro político. Quando seu irmão Paulo, que viria a ser morto pela repressão, lhe mandou uma correspondência fazendo a apologia da luta armada, após treinamento teórico e prático em campos chineses e cubanos, Jaime respondeu dizendo ter detectado certo ódio em seu discurso.
É muito saudável que um livro como A mulher que era o general da casa saia de vez em quando. As novas gerações de brasileiros continuam associando resistência à ditadura à resistência de grupos armados, urbanos ou do Araguaia, ou à resistência política de partidos e intelectuais tranquilamente classificáveis como pró-ditaduras. Assim vamos rebaixando a importância de gente como Therezinha e outros opositores civis e democráticos, como José Mindlin e Washington Novaes, também lembrados por Moreira Leite.
É saudável ao quadrado que o livro tenha saído exatamente em um momento em que estamos prestes a entrar em mais uma onda de romantização de Carlos Marighella. Não bastasse ter virado videoclipe dos Racionais Mc’s (lançado em primeira mão na MTV), o guerrilheiro chega agora em agosto às telonas de algumas capitais (nos espaços Unibanco/Itaú), com o documentário Marighella, dirigido por sua sobrinha Isa Ferraz. Também tenho dúvidas de que a biografia de Mário Magalhães a ser lançada em outubro pela Companhia das Letras irá ajudar na desromantização. E no entanto, qualquer um que leve a sério o que Marighella e militantes da ALN disseram ou escreveram sobre o que consideravam uma sociedade ideal, e o que seria permitido cometer para se chegar até ela, está livre para duvidar de que, tivessem esses grupos derrubado a ditadura e chegado ao poder, eleições gerais teriam sido convocadas. Mais provavelmente, em comparação, nossos historiadores do século 21 estudariam Castello Branco no mesmo capítulo dedicado ao mais famoso Mohandas indiano.
Não que esses grupos tiveram alguma chance. O que Marighella e seus companheiros do campo e das cidades conseguiram com ideomania e vocação para o martírio foi aumentar o efeito positivo da propaganda da ditadura nas camadas menos radicalmente conservadoras e, mais triste, fazer com que jovens de talento perdessem a vida como bucha de canhão de um projeto político indigesto na melhor das hipóteses. Para dizer a verdade, alguns dos perfilados de Paulo Moreira Leite, apesar de civis e longe de totalitários, também não estavam imunes às piores tentações de uma religião política. Florestan Fernandes, por exemplo. É sabido que, por ele, o Partido dos Trabalhadores jamais teria sequer começado a guinada para a socialdemocracia (percurso ainda incompleto), mas só mesmo os muito sectários negarão que tratou-se de um homem basicamente íntegro. Divergir de Fernando Henrique Cardoso não é a pior coisa do mundo. Ainda assim, o que diabos foi aquilo dele reagir ao massacre da Paz Celestial dizendo que todo governo revolucionário tem o direito de se autodefender? A lição que fica dos textos de Moreira Leite é que ninguém precisa ser moralmente degradado para correr o risco de justificar uma barbaridade qualquer, e, por outro lado, que ninguém precisa ser radical para ser revolucionário.
::: A mulher que era o general da casa :::
::: Paulo Moreira Leite :::
::: Arquipélago Editorial, 2012, 224 páginas :::
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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