Vasques da Cunha identifica o ideal utópico como o mal secreto que insiste em nos seduzir

“Crise e Utopia: O dilema de Thomas More”, de Martim Vasques da Cunha

Bastante mencionada e pouco compreendida, a ideia de utopia carece de entendimento mais adequado. Isso porque sua parca definição conceitual compromete o que todos nós acreditamos saber sobre esse “não-lugar”, para retomar uma palavra-chave dos dicionários e mesmo dos textos proto-filosóficos. Uma das razões para esse estado de coisas é a falta de bibliografia a um só tempo atualizada e dedicada à discussão desse tema. Pois o ensaísta e escritor Martim Vasques da Cunha aceitou o desafio, como se lê em Crise e Utopia: O dilema de Thomas More, ora publicado pela Vide Editorial. A obra é fruto de trabalho acadêmico de Martim Vasques, que defendeu dissertação sobre o tema na PUC-SP há alguns anos.

Um dos primeiros destaques para o livro é exatamente o fato de se tratar de um texto originalmente concebido para a academia. Mesmo os leitores não tão afeitos ao contexto universitário sabem que, de um modo geral, as dissertações e teses elaboradas nas universidades Brasil afora, a despeito de seu comprometimento, são, de um lado, pouco articuladas com o debate fora dos muros da escola e, de outro, escritos num estilo beletrista e pernóstico que mais afugenta e desinforma do que atrai e informa os leitores (uma hipótese: talvez por essa razão, muitas das pesquisas, infelizmente, não encontram reverberação fora da universidade). Esse não é o caso de Crise e Utopia. Martim Vasques consegue, num estilo bastante incisivo, desenvolver um raciocínio, que, aos poucos, aprendemos, os leitores, se tratar de algo interessante e fundamental.

E aqui chegamos ao ponto da constituição da obra. Divida em três partes, o primeiro capítulo, “Elementos teóricos para a compreensão do conceito de crise”, é certamente o mais denso, pois, como sugere o título, o autor discorre longamente com o propósito de demonstrar a dimensão do problema. E aqui, novamente, uma diferença: para o bem ou para o mal, o autor não faz concessões, posto que o texto não dá trégua no aprofundamento e nas referências filosóficas e no debate entre os autores. O que me parece mais pertinente é discussão proposta sobre a relação entre magnanimidade e pusilanimidade, dentro do subcapítulo “O político do espírito”. Nas palavras do autor, citando entre aspas o pensador espanhol Ortega y Gasset:

Nos nossos dias, o estudo da política e da religião pende para o lado da segunda (pusilanimidade), forte sem dúvida, mas que reflete a imposição de que o político ideal seria uma “boa pessoa”, como se um conceito abstrato fosse a coleira perfeita para um sujeito que, ao articular e comandar uma sociedade, precisa comportar-se como o restante da humanidade – ou seja, “como uma mulher que se casa com um artista porque é artista, e depois se queixa porque este não se comporta como um chefe de repartição”.

Em sua pesquisa, apresentada na forma de ensaio, Martim Vasques se apropria das referências e dos autores citados. Assim, já no primeiro capítulo, se é verdade que existem inúmeras citações longas, também é correto afirmar que o autor não se esquece de comentá-las e de colocá-las no contexto mais adequado ao estabelecer e intermediar o diálogo entre esses autores.

– O autor –

No capítulo seguinte, “O drama da crise religiosa no pensamento humanista”, Vasques chama outros pensadores para o diálogo. Thomas More, Santo Agostinho e até mesmo Erasmo de Roterdam são alguns que servem de esteio para prosseguir no debate filosófico, além das menções a Eric Voegelin e William Shakespeare. Neste momento, pode-se imaginar, erroneamente, tratar-se de afetação ou mesmo name-dropping por parte do autor. Todavia, o que se vê é que tais autores e suas respectivas referências são preciosas para a leitura que está sendo feita. Para além disso, nota-se a apropriação dos temas e conceitos do capítulo anterior são essenciais para chegarmos a essa etapa. Dito de outra maneira, não haveria possibilidade de enfrentar esses pensadores acima – nem o autor muito menos o leitor – se, logo no primeiro capítulo, o entendimento sobre o conceito de crise não tivesse sido feito. A essa altura, portanto, não soa absurda a problematização acerca do Elogio da loucura de Erasmo de Roterdam. O autor “perfila” Erasmo e, com base na trajetória deste pensador, o define como “um talento para a bajulação a fim de conseguir cargos que possibilitaram uma estabilidade financeira mínima”. Tal descrição ecoa logo adiante, quando, ao discorrer sobre o Elogio, Vasques assinala que:

O título original possui um trocadilho com o nome de More que, transposto para o latim, significa “loucura”. Esta é, aliás, a personagem principal, trajada em trapos e guizos, que se apresenta em um palco e anuncia que tudo que se encontra no mundo está sob o seu domínio. Poucas vezes um escritor conseguiu captar tão bem aquilo que Camões chamava de “o desconcerto do mundo” em uma figura simbólica palpável; Erasmo deixa que a sua Dama Loucura fale sobre os estúpidos, sobre os sábios que proferem suas formas escolásticas sem terem nenhuma noção do que acontece com a realidade e, principalmente, sobre o clero, despido de qualquer função em uma era em que a crise já se instalou por completo e, segundo Erasmo, é vista como uma banalidade.

É no terceiro capítulo do livro, “Et in Arcadia Ego”, que a exposição e a análise sobre a Utopia de Thomas More ganha tratamento de choque por parte do autor. Já no início, Vasques observa de que forma a obra de Thomas More influenciou o pensamento do seu tempo e desmonta o credo comum de que o texto seria o precursor de um novo gênero literário, o relato utópico. O ensaísta, então, recorre aos diálogos platônicos para mostrar a natureza do texto de More. Esse pressuposto é básico para o que viria em seguida, a saber: entender a Utopia nos seus elementos centrais.

Martim Vasques investiga e analisa o texto à luz não apenas das referências (explicadas, muitas vezes, nas notas ao fim do volume), mas, essencialmente, descortinando o que há de substância na obra de Thomas More. Como poucos, consegue identificar a persona de More no livro e, a certa altura, dispara: “a conversa entre Tomás Morus e Rafael Hitlodeu não é apenas o relato de um divertissement entre dois homens que divergem em assuntos políticos; trata-se de um verdadeiro problema da alma que ocorria na própria consciência de More, de um drama que o consumia existencialmente e que ele, como é de hábito em escritores de gênio que procuram seus leitores atentos, tentou comunicar através das ironias que só o discurso provocado pelo amor à sabedoria permite.”

A leitura comentada do ensaísta da obra de Thomas More resulta numa análise que, efetivamente, problematiza o que acreditamos entender por utopia. E tudo isso porque o autor investe numa abordagem que não hesita em tomar emprestado instrumentos da análise literária, por exemplo, para construir uma interpretação válida acerca do texto de More. Em outras palavras, a ideia de utopia, que muitas vezes nos parece tão ideal, acaba por funcionar apenas como um subterfúgio ilusório, esse iceberg, longe do mundo das aflições, que pode se transformar num gulag, conforme certa literatura do século XX nos ensinou.

Em Crise e Utopia: O dilema Thomas More, o autor Martim Vasques da Cunha identifica esse ideal utópico como o mal secreto que, dissimulado, insiste em nos seduzir. Um texto perturbador quando, por aí, alguém insiste em vislumbrar (e anunciar) que um “outro mundo possível”.

::: Crise e Utopia: O dilema de Thomas More :::
::: Martim Vasques da Cunha :::
::: Vide Editorial, 2012, 324 páginas :::
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Fabio S. Cardoso

Jornalista. Autor de Capanema (Record, 2019).

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