Julian Assange, o Wikileaks e o princípio de voz ativa

O que os constrangimentos contra a liberdade do criador do Wikileaks podem ensinar sobre a noção de “liberdade” empregada nas ditas democracias?


Julian Assange, a face visível do Wikileaks, vive o mais novo capítulo de uma série de acontecimentos ocorridos desde que o próprio Wikileaks ganhou notoriedade. Acusado de estupro na Suécia (ou mais precisamente: solicitado para esclarecimentos – que em tese poderiam ser feitos sem deportação – antes de uma possível acusação formal), ele agora se refugiou na embaixada do Equador, em Londres, para não ser deportado. Mas o perigo não se esconde na controversa acusação de estupro (na qual ele fez sexo consentido, e o “estupro” refere-se à camisinha estourar numa relação e não ser usada em outra), e sim numa possibilidade real: a extradição aos Estados Unidos, onde Assange provavelmente será condenado à morte. Nisso tudo, o que os constrangimentos contra a liberdade do criador do Wikileaks podem ensinar sobre a noção de “liberdade” empregada nas ditas democracias? A notoriedade do Wikileaks, e sua recente banalização também (curiosamente empreendida por certos setores da imprensa que deveriam ter bastante interesse nos vazamentos), possuem uma história curiosa, e ela se refere à invasão do Iraque.

Os EUA invadiram o Iraque em 2003 sob a justificativa principal das “armas de destruição em massa”. Nunca encontradas, depois da invasão sua existência foi inclusive desmentida (rendendo até roteiros em Hollywood). Mas desde antes da mentira vir à tona – desde antes do início da guerra -, dentro e fora dos EUA diversos protestos denunciavam o caráter provavelmente fictício ou ilegítimo do motivo principal da invasão. Como confiar em argumentos mal expostos para uma gigantesca operação mal esclarecida? A despeito da força dos inúmeros protestos e das fortes suspeitas sobre as justificações da guerra serem fictícias, por sua vez a invasão foi bem real.

No nível do debate, suspeitar ou desmentir as justificativas fictícias ou mentirosas não afastou do exame de ninguém o fato de que, a despeito da mentira, a invasão ocorreu e persistiu, independente de qualquer ficção. Mas como, se os motivos não são absolutamente claros?

Nesse contexto, ainda em 2002 um assessor de George W. Bush disse a um jornalista do New York Times algo muito curioso (Ron Suskind, “Faith, Certainty and the Presidency of George W. Bush“, NYT, 17/10/2004). Segundo o assessor de Bush, o jornalista ainda adotaria um princípio de “comunidade baseada na realidade”. Trocando em miúdos: talvez por ser jornalista, o repórter acreditaria “ainda” no fato de ser possível as pessoas criarem consensos, dissensos ou planos de debate comum pelo “estudo judicioso da realidade sensível”. Mas como assim? A razão (no caso, o “estudo” de nossa “realidade”) não derrubaria mais o despotismo? Não viveríamos mais sob o legado de pensamentos como o Esclarecimento do século XVIII? “Não é mais o modo como o mundo funciona”, disse o funcionário. E acrescentou: “Somos um império agora e, quando agimos, criamos nossa própria realidade. E enquanto vocês estudam essa realidade – judiciosamente, como queiram -, agimos novamente, criando outras novas realidades, que vocês podem estudar também, e aí está como as coisas serão. Somos os atores da história… e vocês, todos vocês, apenas ficarão estudando o que nós fazemos”.

O assessor claramente separa, de um lado, o exame crítico do que motivaria ou não a guerra, e de outro, as implicações e funcionamentos efetivos dela. Segundo ele, de algum modo não há absolutamente tanta importância em estabelecer um plano comum de debate, pois o país mais poderoso do mundo pode, em determinados contextos, agir e intervir a despeito desse plano comum. E mais: a crítica e o debate estão aquém da ação. Protestar contra os motivos ou acusar certas mentiras não parece – nas palavras do assessor e na invasão do Iraque – surtir maiores efeitos, aparentemente contrariando até mesmo os princípios do jornalismo (grosso modo criar debates a partir de informações coerentes). Se George W. Bush “mentiu”, se criou ficções ou se – como pretendem alguns – a ficção derivaria de certo evangelismo republicano dos EUA, isso não importa: a guerra continuou e, diga o que quiser, ela perdura.

Isso é especialmente notável, porque diz respeito à relativa despotencialização de diversos veículos considerados historicamente importantes para as democracias, como o jornalismo, a “opinião pública” ou certa militância. Visto que a denúncia dos principais motivos da guerra (Saddam ameaçando o “mundo” com suas armas de destruição em massa) se mostrou ineficaz, outros deveriam ser os motes para uma crítica bem sucedida, isto é, uma crítica interferindo não apenas na “razão” mas também na ação. Se outros regimes – o chinês, por exemplo – em tese reprimem posicionamentos contra as ações do governo, se na China alguém se pronunciando contra o Regime pode ser preso porque sua fala seria “perigosa”, curiosamente múltiplas manifestações públicas internas e estrangeiras não abalaram as posições do governo Bush filho.

Mas será assim? Nas sociedades “democráticas” pode-se dizer o que bem entender sobre certos compromissos públicos, sem que o discurso do homem considerado livre e cidadão produza maiores efeitos? Como contrapor a ineficácia das críticas e suspeitas públicas à guerra em um país livre como os EUA, com o perigo atribuído de falar certas coisas em público em regimes como o chinês? Algo ocorre quando se atribui a regimes como o chinês a impossibilidade de falar livremente (sob o risco de prisão), enquanto a livre voz atribuída às democracias não oferece comparativamente maiores perigos. Casos como o da guerra do Iraque nos ensinariam que a liberdade de voz sem efetividade significaria, no limite, ausência de voz ativa?

O ano de 2010 ofereceu, no contexto dessas perguntas, alguns acontecimentos inusitados. A começar pelo vídeo Collateral Murder (“Assassinato Colateral”), publicado pelo então amplamente desconhecido Wikileaks. Gravado em 2007 e vazado posteriormente, o vídeo causou imediatamente efeito. Junto com outras imagens da década, o arquivo desmonta diversas pautas derivadas dos porta-vozes do exército (por exemplo a da “guerra limpa”), porque mostra militares dentro de um helicóptero matando precipitadamente iraquianos considerados “insurgentes”. Dentre os “insurgentes” estavam Saeed Chmagh e Namir Noor-Eldeen, jornalistas da Reuters. Junto com a precipitação dos militares, o vídeo mostra diversas auto-justificações superficiais. Por exemplo, depois de metralharem uma van que tentou socorrer as vítimas, ao descobrir que lá haviam crianças (feridas no ataque) um dos atiradores exclamou: “é falha deles trazer as crianças para a batalha”.

O caso teve grande notoriedade na época. Mas como se sabe, casos isolados muitas vezes perdem seu teor de “choque” durante o tempo. Nesse sentido, a importância do site de Assange a partir de Collateral Murder ultrapassou o fator de caso isolado. Ao contrário de outros episódios, o vídeo faz parte de uma estratégia. Não é à toa que foi um dos primeiros grandes casos do Wikileaks. Depois desse, o site vazou diversos outros documentos de caráter estratégico, não apenas dos EUA mas de diversos outros países. Se esse site, e com ele a figura de Julian Assange, ganharam primeiro plano no fim de 2010, isso não se deve apenas aos casos vazados, mas sobretudo à frequência da divulgação dos vazamentos. Dados estratégicos isolados criam incidentes, logo contornados pelas forças em jogo. Críticas pontuais podem resultar em maiores ou menores efeitos sazonais. Mas o que dizer de uma fonte multiplicadora de vazamentos, acessível a todos?

Note-se também o teor “estratégico” dos vazamentos. O conteúdo de cada um deles mostra ações pontuais, por exemplo correspondências militares ou políticas. Mas essas ações pontuais fazem parte de toda uma maquinaria, também estratégica, ligada por exemplo à linha de atuação de uma embaixada ou mesmo as movimentações de um exército. O ataque a um ponto particular não afeta substancialmente o traçado de uma linha. Mas quando o Wikileaks multiplica a quantidade e o acesso de vazamentos, estes deixam de ser incômodos pontuais e afetam as linhas mesmas de ação dos órgãos envolvidos (até militares norte-americanos já comentaram sobre o risco de vazamentos exporem, por exemplo, tropas em combate). Ao invés de o Wikileaks ser uma espécie de instrumento de contestação geral de um evento coordenado (acusações de “manobras imperialistas”, lobby de megacorporações, interesses “no petróleo” ou outros motes bastante amplos), o site ataca as diversas articulações ou pontos responsáveis por alimentar a existência do evento. Grosso modo, não busca contestar o evento de fora, mas sim implodi-lo, oferecendo ao público articulações e coordenações internas suficientes para gerar incômodo.

Disso tudo derivam os curiosos casos de constrangimento direto ou indireto sofridos por Julian Assange. Ou mesmo a prisão de Bradley Manning, soldado acusado de vazar o vídeo citado acima. Depois de delatado, Manning foi preso e inclusive há acusações sobre violações de seus direitos. O caso de Assange, mais conhecido, envolveu desde a controversa acusação de estupro na Suécia até o bloqueio de seus meios mais diretos de acesso ao consumo (contas bancárias, cartões de crédito etc.). O próprio Wikileaks saiu do ar. Servidores receberam constrangimentos para não hospedar o endereço (ataques cibernéticos, interdição de hospedagem em diversos países), enquanto operadoras financeiras (Visa, Mastercard, Paypal) dificultaram transferências de dinheiro de apoiadores. Desde então, o site se multiplicou em uma série de outros servidores, muitos deles diariamente atacados.

O tipo de informação e o estilo de divulgação do Wikileaks, com suas denúncias em bloco aguardadas por diversos jornais mundo afora, resultaram em curiosos constrangimentos institucionais. Eles não se limitaram a recursos policiais, mas envolveram até mecanismos cotidianos (comerciais, materiais, acesso a bens de consumo…). Se acima pareceu espantosa certa ineficácia de protestar contra a guerra ou a ironia do assessor de Bush, salta aos olhos a desmedida dos constrangimentos contra os envolvidos no Wikileaks. Em um contexto de alardeada liberdade de palavra mas sem voz necessariamente ativa, suas palavras geraram curiosos efeitos. E eles acenam ao que dizia o soldado Manning, entre o medo e a ingenuidade, ao próprio homem que o traiu e delatou: “Só Deus sabe o que vai ocorrer a partir de agora. Espero que haja uma grande discussão mundial, com debates e reformas. Se não for assim – estamos condenados como espécie”.

Amálgama




Marcio Miotto

Professor de filosofia das ciências humanas (UFF-RPS).


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  • Manoel Galdino

    Muito bom, finalmente um texto decente wobre Assange e o Wikileaks

  • Isayas Castro de Sousa

    Os EEUU não são diferentes dos nazistas quando “criam sua própria realidade”, pois havia um ministro de comunicação de hitler que dizia: “uma mentira dita cem vezes torna-se verdade”, mas que tipo de verdade ela se torna? Uma verdade que legitima guerras ilegitimas? Uma verdade que dá suporte à existência do inferno torturador de Guantánamo? uma verdade que faz um país defensor dos direitos humanos, no caso a Suécia, esteja a agir de forma cínica e perversa contra Julian Assange? Uma verdade dessas ninguém merece.
    Julian Assange é o que o escritor Moacir Scliar chamaria de: “O exército de um homem só.” Sem país, sem povo, sem armas de fogo, mas com a mais poderosa de todas as armas, a verdade.

  • André Mattana

    “há acusações sobre violações de seus direitos”, vulgo tortura.