É um Montaigne vibrante, ativo e apaixonado que surge de cada página do livro de Sarah Bakewell
Pensando em termos práticos, tinha tudo para dar errado: após incidente que quase lhe tirou a vida, um aristocrata decide se aposentar do cargo de juiz e se encerra na sua casa para fazer aquilo que nunca fez – escrever um livro. Diante da ausência de assunto, ele resolve escrever sobre si mesmo, sobre qualquer coisa que vem à mente e sobre as sensações que vivencia, usando de uma forma livre, sem limites, sem temas definidos, sem estrutura alguma. Se fosse uma pessoa interessante, a história seria fantástica. Contudo, o aristocrata em questão é alguém dotado dos piores vícios possíveis. É preguiçoso, excêntrico, repleto de falhas que admite com orgulho, glutão, um pai omisso, um marido ausente, alguém que nunca se aventurara mais longe do que alguns quilômetros da sua propriedade. Mesmo assim, contra todas as possibilidades, o homem escreve. E, pela primeira vez na história literária, o foco deixa de ser a trama e passa a ser o próprio autor, que se torna figura indissolúvel da própria obra que produz. O livro foi publicado, virou um sucesso ainda na época em que o autor vivia e, após a sua morte, foi lido, venerado, disseminado, elogiado e ferozmente criticado. Foi considerado cristão demais e, menos de cem anos depois de tal constatação, acabou sendo incluído na lista de livros proibidos da Igreja Católica. Foi amado pelos reis e utilizado pela Revolução Francesa. O livro fomentou revoluções e esteve na cabeceira de pessoas tão diferentes como Napoleão Bonaparte, Blaise Pascal, Stefan Zweig e Virginia Woolf, que considerava seu autor como o pai do “fluxo de consciência”. Ao mesmo tempo, foi utilizado como panfleto amoroso nos jogos de sedução realizados em um país diferente daquele em que foi produzido. Por fim, a obra atravessou os séculos, mas, até hoje, não se sabe se ela corresponde ao original, se foi adulterada pela primeira mulher editora que se teve notícia (e fã declarada do autor) ou se a versão constantemente reescrita é a aprovada pelo autor ou aquela que a sua família deixou vir ao mundo.
Tinha tudo para dar errado e, por isto mesmo, acabou sendo tendo sucesso.
O homem é Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) e o livro que passou a vida toda escrevendo e reescrevendo é Os ensaios. Na obra Como viver: ou uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta, a escritora Sarah Bakewell lança luzes sobre um homem que, mais do que escrever um livro, desnudou-se para a humanidade usando palavras e papel. Tão forte é a sensação causada pela leitura dos ensaios de Montaigne que a reação mais comum dos seus leitores é sentir que o autor leu a sua mente. No momento em que se transformou no seu próprio foco de análise, o escritor francês revelou a face e os segredos de todos os homens.
Em um primeiro momento, analisando-se somente o título (e pela própria disposição da obra dentro das livrarias), pode-se pensar que é um livro de autoajuda. A julgar pelas palavras introdutórias da autora, foi a sua intenção: mostrar que as respostas para as questões existenciais da atualidade sempre estiveram presentes nos textos filosóficos. Para tanto, Bakewell sintetiza todas as dúvidas que permeiam o espírito das pessoas (e fazem a alegria das editoras voltadas para o mercado sempre fulgurante da autoajuda) em uma pergunta, o “Como viver” do título, oferecendo vinte tentativas de resposta tomando por base a obra e a vida de Montaigne. Desta forma, surgem capítulos como “Não se preocupe com a morte”, “Leia muito, esqueça quase tudo que lê e raciocine com lentidão” e “Reflita sobre tudo; não se arrependa de nada”. Os capítulos não se prendem à ordem cronológica da vida do escritor biografado; ainda que apresentem uma unidade de conteúdo entre temas, com um sucedendo o outro de maneira natural, Bakewell permite que a história de Montaigne se desloque no tempo e no espaço, utilizando ainda detalhes da recepção crítica da sua obra, características da editoração, detalhes históricos que afetaram a leitura e as influências positivas e negativas deixadas na obra de outros escritores.
A autora se detém na forma com que Montaigne construiu a estrutura dos seus ensaios. A palavra “ensaio” foi criada por ele para definir a própria obra, pois o francês considerava que eram mais tentativas de desenvolver um assunto do que o desenvolvimento em si mesmo. Por conseguinte, Montaigne iniciava o tema e deixava a pena discorrer livremente. Era normal que um ensaio iniciasse com um título anunciando aquilo que se pretendia expor e, no decorrer, fosse distorcido pelo fluxo do pensamento do autor, até acabar de forma muito distinta do imaginado. Não suficiente, ele passou a vida toda escrevendo o mesmo livro e revisando os ensaios feitos. Desta forma, muitas ideias acabaram sendo alteradas com as sucessivas revisões. Não é surpreendente que, em um ensaio, o autor defenda uma ideia e, em outro, defenda o oposto da tese antes exposta. A coerência não era a maior preocupação de Montaigne, justificando o motivo pelo qual todas as possibilidades de interpretação podem ser encontradas na sua obra.
É um Montaigne vibrante, ativo e apaixonado que surge de cada página do livro. Assim como ocorre após a leitura de Os ensaios, a biografia ora publicada faz com que o homem que é seu objeto se acomode diante do leitor, tome um chá e explique os motivos da sua conduta. O leitor é transportado para um período instável da história humana; trafega por meio de dramas monárquicos e conflitos religiosos, que espalham seus tentáculos sobre a obra do escritor. Adepto do estoicismo, Montaigne se esforça para ficar distante de todas as questões, mantendo-se “em cima do muro” quanto aos dilemas franceses, típicos da construção problemática de uma nação. Aliás, este é outro mérito da biografia: não se pretende disfarçar as vozes dissonantes ou invejosas que atacaram as razões de Montaigne. Elas são reveladas, formando um contraponto necessário. Desta maneira, o leitor descobre que Montaigne foi considerado um covarde por ter fugido da própria casa durante uma epidemia de peste, deixando para trás os demais moradores da propriedade (quase todos morreram). A relutância de Montaigne em assumir postos políticos, assim como a sua capacidade de agradar ambos os lados no jogo instável da política francesa sem nunca mostrar seus pensamentos, é revelada aos olhos do leitor, mas não como uma tentativa de justificar as decisões tomadas, e sim como uma forma de entender melhor a obra. Mais do que tudo, se percebe que Montaigne foi fiel ao escrito, e aquilo que relatou não passa de reflexo da sua personalidade indecisa.
A autora é bem sucedida no propósito de nos conduzir pelos detalhes do século XVI. Da mesma maneira com que o leitor visita a biblioteca de Montaigne, construída fora do castelo para preservar a sua intimidade, ele também entra nos bastidores do castelo real, acompanhando os eventos que deram origem à Noite de São Bartolomeu, um dos episódios mais trágicos da luta entre católicos e protestantes. Em seguida, o leitor experimenta a insegurança que era viver em um período de guerra civil, sem leis claramente estabelecidas, com bandoleiros e soldados sem emprego aterrorizando inocentes. No meio deste caos, Montaigne está na sua torre, escrevendo sobre si mesmo, em um movimento que a autora considera ser o princípio dos blogs. Ao mesmo tempo, o escritor francês vivencia aquilo que escreve: por exemplo, por uma questão de coerência com os seus escritos, mesmo nos períodos mais conturbados, Montaigne deixava a porta da sua casa sem trancas e sem nenhuma guarda para proteger a sua família e seus empregados, sob o argumento de que, se mostrassem proteção e medo, coisas ruins acabariam acontecendo. Enquanto o mundo desmorona na rua e a França se encaminha pra uma guerra intestina, Montaigne sonha com os canibais da América, descreve de forma lamuriosa as dores causadas por pedras nos rins, trata da sua irregularidade no banheiro, investiga como um homem pode vencer uma multidão enfurecida se não demonstrar medo.
O texto é adornado com inúmeras citações dos ensaios, as quais mantêm a sua utilidade até os dias atuais, atestando a perpetuidade da obra. Quando Montaigne surge, a aparição é ainda mais deliciosa do que os fatos ocorridos na sua vida. Algumas frases revelam o espírito observador e pernóstico: “O homem que ocupa o trono mais elevado da Terra continua sentado sobre o seu traseiro”; “O silêncio, tal como a modéstia, ajuda muito em uma conversação”; “Ninguém está livre de dizer bobagens; o imperdoável é dizê-las de forma solene”.
É inquestionável a importância e a atualidade da obra de Montaigne. Trazendo o autor/personagem/objeto de análise para o foco, Sarah Bakewell revela os detalhes daquele que considera ser o primeiro homem moderno que já existiu. Não suficiente, ela revela o detalhe que transformou Montaigne em um escritor tão singular: a capacidade de se colocar na situação do outro e entender a posição contrária. Segundo a autora, este momento único surgiu da observação da sua gata: Montaigne estava escrevendo e a gata começou a pedir-lhe atenção. O escritor francês e o felino trocaram um olhar e, no seu íntimo, Montaigne viu o mundo pelos olhos do outro; viu-se como a gata, encarando um ser envolvido com outra atividade quando podia estar brincando e relaxando. Deixou tudo de lado e cedeu aos folguedos. Nesta troca de olhares, segundo Bakewell, Montaigne definiu a essência da sua obra: ver o mundo pelos olhos do outro. É uma lição que faz muita falta nos tempos atuais, mas que Os ensaios não cansam de nos lembrar, com a sua tranquila segurança de que os tempos passam, mas os homens continuarão sendo os mesmos enquanto não forem capazes de se colocarem nos sapatos do seu semelhante.
::: Como viver :::
::: Sarah Bakewell (trad. Celso Nogueira) :::
::: Objetiva, 2012, 400 páginas :::
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Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
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