O futuro é uma astronave

por Lúcio Carvalho (24/08/2012)

O transumanismo considera desnecessário que o homem conviva com limites impostos pela natureza

Desde priscas eras um dos grandes fascínios dos seres humanos tem sido perscrutar o futuro, aquilo que não veio ainda, o desconhecido. Isso se refere tanto a lugares não idos (como na atualidade o mundo interplanetário ou, nos tempos remotos, o continente vizinho), seres não vistos pelo olho humano ou até mesmo situações inimagináveis. Duas soluções elementares, mas não complementares, foram organizadas a partir do dilema da eterna permanência no agora lá no extinto tempo dos ancestrais e que vicejam ainda hoje. A primeira é a investigação científica, o desenvolvimento de seus métodos e resultados técnicos e, a segunda, o livre exercício da imaginação ficcional, expresso desde a mitologia antiga até o pleno desenvolvimento do gênero sci-fi na atualidade. Hoje parece que as duas vertentes enfim aprenderam a conviver, embora muitas vezes pareça que uma queira assumir o lugar da outra. É a impressão que se pode guardar a partir da notícia, publicada inicialmente na Human Reproduction, de que já nasceram e estão entre nós as primeiras crianças geneticamente modificadas do planeta.

A notícia é embaraçosa, mas nem tanto quanto a de que o homem que durará 1.000 anos possivelmente também já tenha nascido, e ande por aí em algum lugar deste mundo, vivinho da silva. A soma assombrosa de anos resultaria do produto da adição de biotecnologia de ponta, nanotecnologia, super-fármacos mais um punhado de engenharia genética aplicada. Não seria mais fantasioso imaginar que possam, inclusive, tratar-se da mesma pessoa. Quem mais teria condições de reunir características tão abismais que uma criança que, ao nascer, já trouxe programadas as informações que o converteriam num tipo de Matusalém pós-moderno? Por sorte ou azar (é difícil decidir), essa pessoa ainda é um modelo perceptível apenas no terreno da ficção científica, tendo os geneticistas preocupados com os problemas reais do ser humano, já derrubado a teoria aventada por Aubrey de Grey, que trouxe para o campo científico especulações espetaculosas, ganhando as luzes de uma mídia interessada em números impressionantes e declarações apenas presumivelmente científicas.

Famoso por apresentar, no canal de divulgação científica Discovery Channel, programas como “A Física do Impossível” e “O Mundo do Futuro”, baseados em seus livros, o físico norte-americano Michio Kaku personifica como ninguém a releitura das pitonisas de Delfos ao alardear previsões estupefactantes, para um futuro próximo, como o fim do câncer e dos computadores com a facilidade de quem anuncia o possível resultado de uma partida de futebol. O físico, entretanto, não opera com enigmas, mas a partir de especulações que contam, segundo ele, até com data para concretizar-se. Kaku é um pesquisador que prolonga o estudo de algumas teorias quânticas, como a da teoria das cordas, e faz da popularização do conhecimento científico e de especulações tecnológicas e desenvolvimentistas produtos que encontram interessados em muitos lugares, inclusive em canais televisivos pretensamente sérios e editoras comerciais.

Kaku poderia seguir o caminho de divulgação científica, iniciado pelo astrônomo Carl Sagan e, mais recentemente, por Richard Dawkins, mas se distancia destes ao travestir-se numa espécie de pregador da tekhnè, do saber fazer, buscando na imaginação e na fantasia argumentos capazes de converter uma população fascinada pelas possibilidades da tecnologia às teorias transumanistas, corrente de pensamento da qual é um dos principais entusiastas. O humanismo encontrado no trabalho de Sagan, por exemplo, não se presta ao ofício do convencimento, mas do ceticismo, razão pela qual se diferenciam radicalmente. Mas o transumanismo vai um pouco além de pretensões científico-filosóficas ao postular ideais pouco científicos, coisas como a imortalidade corpórea ou super-capacidades.

Entre outras coisas, o transumanismo considera desnecessário que o homem conviva com limites impostos pela natureza, como o sofrimento, as deficiências, doenças e, principalmente, o envelhecimento. Conta-se que seus seguidores e expositores já se preparam, inclusive a partir da ingestão de substâncias e medicamentos, para uma vida longeva e longe dos males que afetam os seres humanos comuns, sem se preocupar se isso venha a se confirmar ou não, porque, apesar de travestir-se de um tipo de neo-filosofia, o transumanismo não deixa de ser um tipo de crença, de culto, já que não se limita a explanar princípios e procurar comprovação teórica, mas chega a buscar seguidores entre pessoas ávidas por superar a condição humana, o que nas bordas do séc. XXI tornou-se algo aparentemente irresistível.

O que a ciência normal garante, por outro lado, é que mesmo que seja viável uma ampliação da expectativa de vida em alguns dos termos dos transumanistas, a precariedade do corpo físico e o declínio das funções vitais continuam garantidos, até porque o grande investimento que é feito na indústria de fármacos atual, via Big Pharma, consiste em medicamentos de uso prolongado que não buscam curas definitivas para os males terrenos, mas tornam os seres humanos dependentes de medicamentos de uso contínuo e, consequentemente, criaturas doentes. É o que alguns cientistas, como o Nobel de Química de 2009, o americano Thomas Steitz, têm denunciado ao apontar o abandono de pesquisas de sucesso em prol da manutenção do mercado da doença e da cura.

Imaginar o futuro é um exercício tão antigo quanto os exercícios de mecânica celeste que os gregos e outros povos antigos faziam ou as maravilhas legadas à humanidade por gênios como Leonardo da Vinci, o que se pode comprovar a partir de seus esboços. Imaginar os recursos que estarão disponíveis no futuro é parte do desenvolvimento científico e tecnológico e uma necessidade incessante de reescrever-se o futuro, já que o tempo presente é sempre acachapante, é a própria realidade. Mas conhecer a realidade está longe de ser a finalidade exclusiva da ciência. A necessidade de modificá-la pode ser seu verdadeiro motor, quer seja para uma exploração mais efetiva dos recursos naturais ou para qualificar-se a experiência da vida humana, nem que a partir de pesquisas laboratoriais. Dessa necessidade provavelmente resultam também as pesquisas que se utilizam da manipulação genética do ser humano, como no caso do anúncio dos bebês geneticamente modificados, o que leva a pensar-se em outras coisas também, como o aborto seletivo ou os assim chamados designer babies, ou seja, crianças feitas sob medida, possibilidade questionada por boa parte dos bioeticistas.

Sob o apelo de criar-se pessoas totalmente livres de imperfeições, deficiências ou doenças derivadas de causas genéticas, laboratórios que se utilizam das técnicas de reprodução assistida têm sido pródigos na oferta comercial de descendentes livres de defeito ou, como em até alguns casos, pessoas com características previamente definidas. Inicialmente destinados às pessoas com problemas na reprodução, mas ainda assim desejosas por perpetuar a espécie, não é difícil imaginar porque muitas pessoas têm procurado ajuda nesse sentido. Em sã consciência, todos desejam uma vida livre de percalços, principalmente se estes podem ser evitados através do simples descarte de embriões “defeituosos”. Essa é a promessa das técnicas de diagnóstico pré-implantação para doenças hereditárias – DGPI. Mais do que uma promessa, uma realidade concreta que tem aberto a possibilidade de uma intervenção ainda maior naquilo que a natureza costuma resolver como numa espécie de loteria. Trata-se de um domínio da técnica como há poucos séculos quase ninguém ousaria imaginar e que, tratado sem o cuidado ético devido, resulta em situações e problemas que já vem afetando a realidade em alguns países.

O recente desenvolvimento de tecnologias de detecção de alterações cromossômicas para gestantes através da simples análise sanguinea (não se trata do mesmo que o DGPI, destinado a embriões não implantados) vem causando um abalo profundo nas taxas de natalidades de crianças com síndromes genéticas, como a síndrome de Down por exemplo, e isso tanto nos países em que o aborto é garantido por lei como naqueles em que é vedado, chegando-se a reduções que beiram os 90%, de acordo com a Down Syndrome International. Alguns paises europeus já começam a seguir o exemplo da Nova Zelândia, que recentemente teria adotado como política governamental o encaminhamento de gestantes com filhos diagnosticados com síndromes genéticas à interrupção gestacional, ao invés de promover o aconselhamento genético.

É o que denunciou ao Tribunal Penal Internacional um grupo de pais de crianças com deficiência, alegando que a política pública lá adotada tem características de genocídio. Segundo um dos líderes do movimento, o governo de seu país agiria por razões econômicas, competindo o nascimento de crianças com deficiência em custo do qual a sociedade poderia desobrigar-se, segundo o raciocínio adotado. Outros países, como Alemanha e Inglaterra, também já estariam estudando formas de inserir os novos exames em seus respectivos programas públicos de rastreameto pré-natal sem que isso, contudo, signifique que se adotem políticas semelhantes às da Nova Zelândia. A tecnologia estaria causando o confrontamento, segundo reportagem da Deutsche Welle, das opiniões de cientistas, juristas, religiosos, ativistas feministas e a própria comunidade de pessoas com deficiência. Para o ator Sebastian Urbanski, que nasceu com a síndrome de Down, se estaria apenas fazendo seleção eugênica. Em um debate, ele teria calado os presentes ao dizer que “também somos seres humanos”.

Se aceitar a condição humana e, com ela, os devidos entraves naturais, pode ter se tornado insuportável para as pessoas no mundo contemporâneo, a necessidade de que um conjunto de ideias forneça as respostas e soluções é cada vez mais imediata. A ficção científica da literatura e do cinema, como ocorreu durante todo o séc. XX, parece ter deixado de satisfazer uma sociedade que tem se acostumado a portar consigo, e cada vez mais, recursos da tecnologia da informação, trazendo desde já uma aparente imersão no futuro. O Admirável Mundo Novo de Huxley em muitas coisas já envelheceu e a ética do mundo liberal vem se mostrando cada vez mais insuficiente para dar conta das diferenças e complexidades emergentes de um planeta que começa a mostrar seus limites geofísicos, apontando para problemáticas também impensáveis há cerca de um século, como a sustentabilidade e os novos entraves biopolíticos a um projeto econômico global que aporta em pleno séc. XXI com muito pouca renovação, se comparado ao desenvolvimento tecnológico do qual hoje se dispõe.

O cenário é palco de questões que envolvem não apenas as decisões globais ou sociais mas, principalmente, repercutem no âmbito do indivíduo, na esfera pessoal, na vida de cada um. Se as técnicas de DGPI irão ou não levar aos designer babies, se o aborto seletivo será dado como faculdade do juízo meramente individual de uma sociedade que se acostuma cada vez mais a gozar de todos os predicados da democracia ou, pelo menos, aquelas pelas quais é possível pagar para obter-se, se a imaginação ficcional sucumbirá a realidades plenamente acessíveis e o homem chegar mais próximo da imortalidade, como querem os transumanistas, é este o sinal definitivo de que uma nova humanidade já está aí? De que os limites, a despeito de não encontrar-se imediatamente uma contrapartida social que sequer solucione problemas elementares como a fome e a violência, serão dados apenas por saltos tecnológicos, como elos de uma cadeia evolutiva sem fim, em um mundo tão ideal quanto os imaginados por ficcionistas, sem circularidade ou história?

Não é o que pensa, por exemplo, o historiador Francis Fukuyama, o próprio ideólogo do “fim da história”, para quem as mudanças e os problemas de um mundo serializado e uniformizado seriam insustentáveis porque a sociedade planetária estaria em dívida ainda com problemas com origem na Idade Média, como fundamentalismos religiosos e a miséria. Se sim ou se não, se melhor ou pior, é preciso decidir, antes de ir com pressa ao futuro, a que futuro se pretende ir, antes que não reste alternativa – como no cinema de ficção mais pueril – a partir para a vida em outros planetas (possibilidade também já divulgada na mídia, com direito à passagem exclusiva de ida), por culpa da inutilização das próprias condições de vida na Terra e apesar de todas as promessas por novas engenhocas e de toda a fé que se possa extrair das novas ideologias tecnicistas. Pelo menos até agora, são ideias que têm se mostrado incapazes de sobrepujar as mazelas próprias dos seres humanos como igualmente aquelas que eles, no exercício do seu livre arbítrio, vêm escolhendo como destino a despeito de todas as previsões possíveis.

Lúcio Carvalho

Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).

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