Imperfeições da memória

A história de Julian Barnes reverbera até que o leitor encontre sua própria teoria sobre o romance.

“O sentido de um fim”, de Julian Barnes

A memória nunca é exata, nem na juventude e muito menos na velhice. Estudos da mente constatam que, a cada vez que uma lembrança é resgatada, ela reaparece com pequenas mudanças imperceptíveis. Manipulamos nós mesmos a nossa memória para fazê-la se adequar ao que julgamos ser a maneira exata com que os fatos se sucederam. Ou seja, mentimos para nós mesmos, e o motivo pode ser conforto, orgulho, controle. Julian Barnes utiliza toda essa falta de certeza das lembranças para estruturar seu livro vencedor do Man Booker Prize de 2011, O sentido de um fim. Narrado por um homem idoso, ele evidencia toda a incompletude da história que se conta, causada pelas memórias falhas e a ausência de mais testemunhas ou documentações.

Dividido em duas partes, o romance começa com Tony Webster relembrando seus tempos de escola, em que convivia em um grupo formado por mais dois garotos, Alex e Colin. A história parte do momento em que um quarto membro é adicionado a essa reunião de jovens mentes inteligentes, como eles se consideravam: Adrian, um garoto isolado, sério e que pareceu ser bem mais superior em inteligência e sagacidade que seus colegas. Essa primeira parte narra uma gostosa trama escolar em que a amizade é um forte elo que liga esses garotos inseguros do que encontrarão na vida, que aguardam ansiosos pelas responsabilidades dos adultos, suas aventuras, dilemas e problemas, mal vendo a hora de conseguirem uma namorada, ir para festas, viver a vida como se ela fosse um dos livros que leem.

Mas “o que você acaba lembrando nem sempre é a mesma coisa que viu” (p. 9), diz Tony. Da escola para a faculdade, eles nem tinham ideia de que o que faziam naquele tempo já determinaria o que seriam no futuro. Os amigos vão para diferentes universidades, Adrian consegue entrar para Cambridge, Tony arruma uma namorada, Veronica, e esporadicamente os amigos se reencontram, cada vez menos, se tornando mais diferentes e afastados. Até Adrian se suicidar, e o grupo de quatro voltar a ser três, e os três se dispersarem – o namoro com Veronica acaba, a vida segue em frente com o trabalho, uma nova mulher, uma filha e pronto, chega ao ponto em que ele é um velho contando sua história.

– O autor –

A segunda parte concentra-se num reencontro inusitado com esse passado. Uma herança inesperada que envolve a vida de Adrian, Tony e Veronica, e que na verdade é o estopim para esse monólogo do narrador – pois o texto se constrói não como uma narrativa normal, com início, meio e fim, ou não é assim que parece ao leitor. A impressão é estar ouvindo um velho contar sua história a quem quiser ouvir, mas colocando no meio dela suas teorias, sua filosofia, aquelas discutidas por ele e seus amigos na juventude, enquanto tenta desenrolar os fios que ainda o prendem a Veronica, sua família e ao amigo suicida. E, nesse monólogo, evoca a reação do tempo na sua vida, nas suas lembranças, tão desconexas e inexatas, impossíveis de serem confirmadas ou corrigidas pelos outros envolvidos – pois ou todos já se foram, ou estão esquecidos. Sem documentos para comprovar o que conta, nada além de sua própria memória debilitada. E como Adrian sentenciou em uma antiga aula, essa história se torna uma “certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas de documentação.”

O que se confirma no fim é que Tony não é um narrador confiável. A única certeza que o leitor tem é do que ele se tornou: um homem confortável com sua solidão, ciente de que não fez da sua vida nem metade do que esperava que ela fosse em sua juventude. Um homem que tem uma ideia de como a vida funciona e o que se faz dela:

Você aposta num relacionamento, ele fracassa; você passa para outro relacionamento, ele fracassa também; e, talvez, o que você perca não sejam duas simples somas de números negativos, mas a multiplicação do que você apostou. Pelo menos, é essa a impressão que dá. A vida não é feita só de adição e subtração. Tem também a acumulação, a multiplicação de perdas, de fracassos.

A conclusão de O sentido de um fim é uma acumulação de dúvidas. De incertezas sobre o que realmente aconteceu a Tony, Adrian e Veronica. Julian Barnes trabalha com essa inexatidão da memória e implanta esses questionamentos na cabeça do leitor, que, como um historiador, fica tentado a reler tudo, a rever os documentos fornecidos pelo narrador para tentar, enfim, dar um sentido ao final do livro. E é assim que ele consegue fazer a história reverberar até que o leitor encontre sua própria teoria sobre o romance.

::: O sentido de um fim :::
::: Julian Barnes (trad. Lea Viveiros de Castro) :::
::: Rocco, 2012, 160 páginas :::
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Amálgama




Taize Odelli

Escreve no R.izze.nhas




Amálgama






MAIS RECENTES


  • Tiago M. Franco

    É sem dúvida uma excelente obra. Com este livro Barnes prova que um livro pequeno pode ser uma grande obra

  • Julio Cesar Mulatinho

    Terminei de ler o livro agora mas acho que ainda vou ficar ruminando-o na mente durante um longo tempo.

  • Claudio Faria

    Sabe, não senti essa acumulação de dúvidas a que você se refere. A meu ver todas as questões e dúvidas mais importantes se esclarecem no fim. O que ficou sem resposta é tão natural, é tão “certo” não tê-las, afinal, quando temos todas as respostas para os fatos cruciais de nossas vidas? Não fazemos exatamente isso, completamos as lacunas com nossos julgamentos? Achei o livro espetacular, verdadeira maestria do Barnes ao tratar de forma tão elegante, econômica e precisa algo tão fluido como a memória e suas armadilhas. Nas últimas páginas me peguei prendendo a respiração ao reconhecer, através de Tony, a mesma necessidade de “reescrevemos” o passado, muitas vezes de forma inconsciente, não intencional. Marquei vários trechos, e fiquei particularmente admirado naquel no qual Tony, ao rever sua visita à casa de Verônica, afirma que “talvez” as coisas não tenham sido exatamente como ele as interpretou na época. Um pequeno maravilhoso livro.