Vicente Vilardaga relata de dentro o funcionamento das engrenagens do jornalismo
Sem levar em consideração os canais de sempre – isto é, sites especializados, congressos e encontros acadêmicos e publicações teóricas – não é comum ver o jornalismo brasileiro tratar de si mesmo. Essa carência de debate se torna ainda mais problemática num momento em que o jornalismo, no Brasil e no exterior, tem sofrido com revezes bastante consideráveis, como a onda de demissões em massa nas empresas jornalísticas, o fechamento de veículos e a falta de um modelo de negócios sustentável para dar fôlego à arrecadação. Em alguma medida, esse debate está relacionado ao fato de os jornais, revistas, emissoras de TV e até mesmo portais na internet não necessariamente estarem habituados a tratar de seus problemas e tensões em público. Em outras palavras, é como se a mídia se colocasse num pedestal para analisar os problemas e as crises dos outros e, ao mesmo tempo, se recusasse ser a vidraça quando os jornais ou o jornalismo é notícia.
Um trágico exemplo disso aconteceu há exatos 13 anos, por ocasião da morte da jornalista Sandra Gomide, assassinada por Antônio Marcos Pimenta Neves, à época diretor de redação do jornal O Estado de S. Paulo. Antes do crime, Sandra e Pimenta mantiveram um relacionamento amoroso por quatro anos, num envolvimento que mostra o quão perverso e nocivo pode ser a mistura do público e do privado. Em À queima roupa, o jornalista Vicente Vilardaga desenvolve um rico e interpretativo relato do caso, mostrando não somente o início e o fim do envolvimento de Sandra com Pimenta, mas, também, a cultura jornalística das redações brasileiras na década de 1990. Os mesmos veículos que, muitas vezes, acusam condutas e práticas pouco transparentes por parte das empresas e do governo são aqueles que permitem o abuso de poder, o assédio moral e a conduta imprópria por parte de seus profissionais mais gabaritados.
Nesse sentido, é interessante observar a proposta do livro de Vilardaga, que, conforme aprendemos ao final da obra, foi uma espécie de testemunha ocular do enlace amoroso de Sandra e Pimenta. Isso porque o autor desenvolve um relato que articula o jornalismo brasileiro e a cultura corporativa das redações da década de 1990 com a história econômica recente do país. A correlação não é simplória. Sandra e Pimenta participaram da cobertura de alguns dos principais momentos da história recente do capitalismo no Brasil, como nos desdobramentos do Plano Real e o leilão das teles, tudo isso sem mencionar a aviação brasileira. Esses setores estratégicos sofreram alterações decisivas na última década do século XX, assim como as trajetórias pessoais de Sandra Gomide, jornalista formada pela Cásper Líbero e repórter da Gazeta Mercantil e, depois, do Estadão; e de Antonio Pimenta Neves, ex-funcionário do Banco Mundial e jornalista da velha guarda, que alcançou o posto de diretor de redação da Gazeta Mercantil e do Estadão.
De forma bastante equilibrada, o livro mostra como as vidas desses dois personagens se cruzaram e, de quebra, como o relacionamento amoroso logo evoluiu para uma relação de benefícios no mínimo questionáveis para que Sandra ascendesse a postos de repórter especial e editora tanto na Gazeta como no Estadão. Mais: apresenta ao leitor, e esse efetivamente pode ser algo novo para boa parte do público, a engrenagem de uma redação: suas rotinas, suas disputas por espaço e como a visão de mundo dos patrões, em certa medida, acaba por contaminar a cobertura dos fatos – o político apoiado pelos jornais, em geral, é beneficiado na cobertura, enquanto os assuntos que não interessam são descartados para segundo ou terceiro plano.
Tão importante quanto isso é o fato de Vilardaga não ter deixado de lado o esforço de reportagem ao ouvir diversas fontes para compor esse amplo painel interpretativo sem a necessidade de forçar o texto para se adequar às expectativas de estilo. Dito de outra maneira, o autor consegue conjugar um relato equilibrado com um texto agradável ao leitor – não há rompantes de literatice ou de exercício de estilo. Há, sim, um rigor para com a precisão do que está sendo narrado. Há bom jornalismo aqui porque o autor não relaxa sequer por um instante em tentar alcançar o que aconteceu e por que aconteceu.
A propósito disso, nota-se que o autor a todo o momento se preocupa em reafirmar a necessidade do jornalismo demarcar seu espaço como tal, diferenciando-se de outras narrativas e de outras áreas da comunicação. Jornalismo e assessoria de imprensa não são a mesma coisa, ainda que recentemente há quem coloque os dois lado a lado. Essa premissa é fundamental para que não haja confusão sobre qual deve ser o papel da imprensa, exatamente num momento em que as novas tecnologias aparecem como o veneno-remédio para resolver todos os males.
À queima roupa mostra, enfim, que o jornalismo brasileiro poderia, sim, estabelecer mais análises e leituras sobre seu funcionamento para, de uma só vez, saciar a curiosidade do leitor comum e mostrar que não está imune a erros e que sua conduta, em alguns casos, pode merecer algum reparo. De mais a mais, esse tipo de análise pode, também, apontar novos caminhos e propor reflexão mais contundente e precisa sobre o trabalho jornalístico.
::: À queima roupa :::
::: Vicente Vilardaga :::
::: Leya, 2013, 304 páginas :::
Fabio S. Cardoso
Jornalista. Autor de Capanema (Record, 2019).