O riso de aprovação de Thomas Bernhard

Poucas páginas livro adentro e o protagonista de Horacio Castellanos Moya já se confirma como um dos personagens mais hilariantes da literatura latino-americana. E polêmico.

"Asco", de Horacio Castellanos Moya

“Asco”, de Horacio Castellanos Moya

A literatura se renova a partir de si mesma. Não há linearidade; tudo retorna ainda que séculos se interponham entre cada ciclo. James Joyce restaurou a epopeia de Homero milhares de anos após a Odisseia, e revisitando um clássico criou outro, ambos fundamentais. As tragédias shakespearianas ainda ecoam atuais e transpuseram oceanos, ganharam o Novo Mundo – Machado de Assis, o grande romancista brasileiro, agradece. Raduan Nassar, mais recente, também. Paulo Leminski, sucesso post mortem das redes sociais, deve parte do sucesso dos próprios haicais a Bashô, poeta do século XVII. Camus agradece a muitos: talvez sem Kierkegaard, Kafka e Dostoiévski, o profeta do absurdo seria apenas um jornalista comum e Jean-Baptiste Clamence, o protagonista moralmente ambíguo de A queda, não chegaria nem a uma ideia.

No romance de Camus, Clamence senta-se à mesa em um bar de Amsterdã e conta sua trajetória a um interlocutor invisível, o próprio leitor. Quarenta anos depois, já em 1997, a conjunção entre bar, monólogo e interlocutor invisível se repete. Trata-se de Asco, terceiro romance lançado por Horacio Castellanos Moya, que chegou recentemente ao Brasil graças ao projeto Otra Língua, coordenado por Joca Reiners Terron para a editora Rocco.

É possível que o leitor brasileiro nunca tenha ouvido falar em Horacio Castellanos Moya. A ideia do Otra Língua é justamente dar visibilidade a tantos bons autores invisíveis da América Latina. Asco é também um raro exemplar da literatura salvadorenha a decorar as prateleiras de livrarias nacionais.

Há algo de muito familiar em sua estrutura, e o autor não esconde suas intenções. Em nota ao final do livro, conta que a obra nasceu de um exercício de estilo para imitar o austríaco Thomas Bernhard, tanto na prosa como na postura crítica à própria cultura. Edgardo Vega, o protagonista, é um iconoclasta. Como o personagem Franz-Josef Murau do livro Extinção, de Bernhard, ele retorna ao lugar de origem para um funeral. Aos seus olhos, toda a nação salvadorenha é ridícula e comodista, e o país que emerge após mais de uma década de guerra civil não é em nada diferente do que viu o início dos confrontos. Os cem mil mortos são apenas uma cifra varrida para debaixo do tapete em um país que se acostumou a enterrar a própria história. Para a descrença de Vega, reencarnação literária de Thomas Bernhard, o fato da população ainda aspirar às carreiras militares só pode ser justificado por uma mentalidade imbecil, repugnante e estúpida – afrontas usadas e repetidas à exaustão no romance.

Talvez a palavra mais empregada para descrever Asco até agora tenha sido diatribe – escrito violento e injurioso ou crítica acerba. Disso não há dúvidas: poucos livros são tão injuriosos quanto Asco. Em cem páginas, Horacio Castellanos Moya desconstrói toda a cultura e a história recente de El Salvador – nem mesmo a gordurosa culinária local escapa das investidas furiosas de Edgardo Vega. Das cervejas aos times de futebol, dos pontos turísticos às universidades, dos militares à guerra civil: tudo passa por seu crivo diabólico em um jorro descontrolado e catártico de pura aversão. Para ele, a estadia em El Salvador é a abominação mais odiosa que seu destino pode lhe apresentar sem matá-lo. Mas Moya utiliza a ira do protagonista para fazer rir. Não o riso discreto e persistente no canto dos lábios, mas o riso hilariante da gargalhada que passa vergonha em público. Poucas páginas livro adentro e Vega já se confirma como um dos personagens mais hilariantes da literatura latino-americana. E polêmico.

Moya conta que em 1997 recebeu, por meio de sua mãe, ameaças de morte de um homem revoltado com um romance curto recém-publicado. Assustado, avisou sobre o ocorrido a algumas agências internacionais de imprensa, mas em seus país a maior comoção veio de um colunista que afirmava que ele, na verdade, queria imitar Salman Rushdie e se promover às custas de uma ameaça de morte inventada. Por via das dúvidas, foram mais de dois anos até que colocasse novamente os pés em território salvadorenho. Quando o fez, foi tido por corajoso por seus amigos: “O que você está fazendo por aqui? Quer que matem você?”, diziam. Enquanto isso, passou seu tempo entre Guatemala, México e Espanha; em cada país recebendo pedidos para escrever um Asco local. Moya publicou outros cinco romances na sequência, mas em El Salvador é conhecido até hoje como “o autor de Asco” – e há quem aguarde uma continuação.

Horacio Castellanos Moya poderia afirmar, com o bom humor característico da obra, que Asco foi inteiramente psicografado enquanto Thomas Bernhard murmurava em seu ouvido palavras do além. Não seria um absurdo. Depois do romance, Moya encerrou qualquer exercício de imitação. Cumpriu em Asco sua função histórica: revisitou o setting de A queda e insuflou vida novamente no austríaco genioso – o livro leva o subtítulo Thomas Bernhard em San Salvador. Felizmente a literatura continua ignorante das noções de tempo e promove inocente o diálogo entre os vivos e os mortos enquanto gargalhamos e passamos vergonha com os impropérios de Edgardo Vega.

::: Asco :::
::: Horacio Castellanos Moya (trad. Antonio Xerxenesky) :::
::: Rocco, 2013, 112 páginas :::

Share Button

  • Santos

    Não consegui perceber hilaridade na obra. Talvez porque, desde a primeira palavra até o último ponto final, pareceu-me que o livro tinha sido escrito por um brasileiro e retratava o Brasil. Não ri nem chorei ao lê-lo, mas fiquei abismado com as semelhanças que pude identificar entre a narração do autor e várias situações semelhantes no Brasil. Diria que o livro é “deprimente”, no sentido que nos joga à cara tudo aquilo que como povo preferimos jogar para debaixo do tapete. El Salvador se olha no espelho e o que vemos é o Brasil… Comprem, leiam, deem de presente, doem a bibliotecas. Altamente recomendável.