O peemedebismo de Marcos Nobre

Relacionado aos protestos apenas de modo incidental, ensaio discute o sistema político brasileiro ignorando aspectos históricos e ideológicos.

"Choque de democracia: Razões da revolta", de Marcos Nobre

“Choque de democracia: Razões da revolta”, de Marcos Nobre

A primeira observação, inevitável, é: Choque de democracia não é um livro sobre os protestos. De modo estrito e mesquinho, também não se pode dizer que seja um livro, pois existe apenas em formato digital e é somente um ensaio, com algo equivalente a trinta páginas. Por apenas cinco reais, vale a pena para quem estiver interessado nas ideias de Marcos Nobre, que tem feito algum barulho no meio da ciência política com sua tese sobre o peemedebismo. Mas os protestos são apenas a justificativa para o e-book existir, e não há no livro uma avaliação satisfatória desses eventos.

No momento em que surgiu o e-book, eu tinha outra posição sobre a tese de Nobre acerca do que seria o “peemedebismo”. Achava que sua avaliação do quadro político capturava bem o sentimento de ausência de oposição e voraz negociação de cargos em quaisquer governos por parte dos partidos que compõem a “base aliada”, construindo uma hegemonia fisiológica em vez de ideológica. Além disso, um texto anterior assinalava que o modelo parecia estar em vias de esgotamento — algo que teria se tornado patente com a explosão dos protestos por todo o Brasil durante o mês de junho. Assim, haveria certa “presciência” de Nobre quanto à insustentabilidade social e política do peemedebismo.

No entanto, com o benefício da distância (há mais de um mês os protestos diminuíram radicalmente de tamanho e parecem estar restritos, agora, ao black bloc carioca e sua atuação contra Sérgio Cabral), é possível ver que os protestos se transformaram em uma espécie de teste de Rorschach aplicado à política. As avaliações sobre seu significado com frequência revelam mais sobre as ideias prévias do analista do que sobre a verdadeira natureza das manifestações. Parece ser o caso, indisfarçado até, do ensaio de Nobre, dedicado mais a explicar a formação do peemedebismo ao longo dos governos do que a associar as revoltas a uma insatisfação com esse estado de coisas.

A argumentação poderia se valer do fato de os protestos, reconhecidamente, não terem tido um alvo claro, exceto como expressão de uma deficiência representativa intensa na sociedade brasileira. A crise de representação estaria necessariamente ligada ao fenômeno do peemedebismo na interpretação de Nobre, pois este teria criado uma situação política na qual

quem nasceu na década de 1990 em diante […] não assistiu a qualquer polarização política real, mas somente a polarizações postiças, de objetivos estritamente eleitorais.

Conforme veremos, essa afirmação não está totalmente equivocada, mas apresenta inúmeras deficiências da tese em estado reduzido. Por ora, é preciso problematizar até que ponto a crise de representação de fato é uma expressão do descontentamento da sociedade com o peemedebismo. Igualar os dois planos está longe de ser uma associação natural.

Em primeiro lugar, os partidos políticos como os conhecemos estão em crise há décadas em todas as partes do mundo democrático. Na Europa, em especial, a falta de alternativas entre os principais partidos gera até mesmo o avanço de opções que se acreditava jogadas na lata do lixo da História, como o neonazismo na Grécia e o ultranacionalismo xenófobo na França, representado por Le Pen. Nos EUA a situação não é diversa: o bipartidarismo radical não tem funcionado para equacionar disputas políticas de modo adequado, levando à série de filibusters praticados pelo Partido Republicano radicalizado e à falta de alternativa para a esquerda, forçada a aceitar políticas do Partido Democrata quase idênticas às de seu rival. Se o fenômeno da crise de representatividade é global, talvez diga mais respeito às contradições trazidas pela globalização nas últimas duas décadas do que à dinâmica interna da redemocratização brasileira, embora esta tenha suas particularidades.

Segundo, a identificação dos protestos com a oposição ao peemedebismo é arriscada se não houver uma reconstituição adequada dos fatos que levaram às ondas de manifestantes. Todos vimos que tudo começou com o MPL em São Paulo protestando contra o aumento na tarifa de ônibus, mas poucos apontaram a participação em peso, de primeira hora, de partidos como o PSOL e o PSTU, permitindo que os números raquíticos do MPL fossem ampliados, produzindo o efeito em cascata inesperado em todas as cidades brasileiras. O papel do aparato repressivo também não pode ser ignorado: as grandes manifestações da segunda-feira, dia 17 de junho, pareceram muito mais um ato de desagravo à atuação bárbara da Polícia Militar na quinta-feira anterior do que um protesto específico contra o sistema político.

Ainda que o descontentamento com a atual configuração dos nossos partidos e instâncias de representação popular esteja presente de forma brutal (pois é natureza de qualquer protesto apresentar descontentamentos…), não se pode afirmar que exista essa ligação com o peemedebismo, exceto em um plano simbólico, difícil de avaliar por essência. Conforme dito acima, o ensaio se dedica pouco a essa dimensão e parece apenas traçar um paralelo entre protestos e peemedebismo, apenas por estarem inseridos em um mesmo contexto. Acaba ficando a impressão, talvez injusta, de conveniência analítica — e que a tese do ensaio seria a mesma com ou sem protestos.

Feita a crítica, talvez minuciosa em excesso, à pertinência do livro, seja dito que a contribuição de Marcos Nobre é muito bem-vinda. Os debates dos quais participou recentemente, em especial com André Singer, são necessários para que tenhamos uma compreensão o mais ampla possível da nossa atual condição política. No final das contas, pouco importa para a fatura do texto que os protestos lhe confiram autoridade — ainda mais por não ser possível antecipar todos os efeitos que as manifestações causarão daqui para frente. Trata-se de uma análise do sistema político brasileiro, e assim deve ser encarada.

Entretanto, creio que este seu ensaio erra em demasia. É preciso registrar que está programado para breve o lançamento de um livro pelo autor, no qual se pode esperar que os tópicos abordados no e-book de modo mais condensado sejam mais bem desenvolvidos. De todo modo, para simplificar a crítica, esta será apresentada em três partes. Na primeira, aponto os problemas do “passado”: como a leitura de Nobre deforma a avaliação do processo histórico brasileiro, condicionando e simplificando demais a análise. Na segunda, os problemas do “presente”: a consequência das afirmações do texto seria um quadro eleitoral sem qualquer polarização, algo que não se verifica no momento. Na terceira, os problemas do “futuro”: ao advogar o “bom combate” ao peemedebismo, Nobre introduz uma agenda política específica e a defende, sem deixar isso muito claro. Não seria um problema, se a discussão ideológica necessária não tivesse sido soterrada, no restante do texto, pela quimera do peemedebismo.

O mundo não começou no Centrão

Talvez o maior defeito do ensaio, do ponto de vista analítico, seja a tendência de Nobre a tratar o peemedebismo como um fenômeno bastante representativo da política na redemocratização. Ele entende o conceito como a “blindagem” que o sistema político construiu contra “a força das ruas”; uma capacidade de ignorar sistematicamente os anseios da população e responder às crises costumeiras da democracia sem afetar o sistema em seus fundamentos. Identifica a origem dessa blindagem no chamado Centrão, grupo numeroso na Constituinte conhecido por travar a inclusão de propostas progressistas, de fato constituído em grande parte pelo PMDB. Uma das razões para a criação do PSDB, inclusive, foi a discordância dos tucanos com o resultado das manobras do Centrão.

Parte da crítica corrente ao PMDB é encampada por Nobre: ausência de ideologia (ou melhor, ideologia das conveniências), conforto em apoiar qualquer partido (desde que fisiologicamente recompensado) e, não menos importante, força nas eleições proporcionais. Para o autor, o PMDB é a manifestação mais fiel do fenômeno, que não se resume a esse partido. Tratar-se-ia, portanto, de um sistema político razoavelmente fechado e pouco representativo da população, baseado no poder das oligarquias regionais e frequentemente obstáculo para o avanço democrático e social do país.

Não há problema em identificar o peemedebismo hoje, tal como existe — aliás, o melhor do livro é o desenho de como algumas medidas dos governos de PSDB e PT acabaram por fortalecer o poder federal, favorecendo a alimentação do peemedebismo no Congresso. O que precisa ser considerado, entretanto, é que esse fenômeno, além de dificilmente ser particular ao Brasil (quase qualquer sistema multipartidário o apresenta, em maior ou menor grau), também está longe de ser novidade em nossos partidos.

Desde o Império, no qual havia o ditado “nada mais parecido com um saquarema [conservador] do que um luzia [liberal] no poder”, existe a dificuldade brasileira em conciliar a necessidade de um governo central forte e a exigência de autonomia regional, além da complicada equação entre representação e representatividade. Como as eleições eram muito restritas até 1945, os problemas típicos que o peemedebismo apresenta só puderam se fazer presentes em uma democracia de massas. O regime de 1946, ainda longe de ser plenamente democrático (afinal, a extinção do Partido Comunista e a negação de voto aos analfabetos tinham um papel excludente muito grande), pelo menos passa a demonstrar com mais clareza o funcionamento da política em meio a todas essas contradições.

Nesse sentido, o PSD, partido que elegeu dois presidentes no período (Dutra e Juscelino), já se mostrava um representante muito forte do peemedebismo. Formado em sua maior parte pelas hostes políticas dos interventores estaduais de Getúlio Vargas no Estado Novo, o PSD possuía uma máquina eleitoral gigantesca e disputava cargos no governo mesmo quando estava na oposição — nunca ficou dessintonizado do poder. Exemplos máximos dessa postura são a candidatura abandonada de Cristiano Machado em 1950 (quando a maior parte do partido pulou no barco de Getúlio) e o apoio ao golpe em 1964, aceito com a pretensão de eleger novamente Juscelino em 1965 (eleição que acabou não se realizando pela permanência dos militares no poder e consequente acirramento da repressão política).

O livro de Lucia Hippolito sobre o PSD apresenta bem todas as contradições que envolviam o partido. Apesar de ter encabeçado o governo Kubitschek, que se notabilizou pelo fomento à modernização nacional (daí a dimensão “reformista”), a constituição da legenda não era muito diversa do que hoje é o PMDB: composto por grandes nomes da política regional, orientados sobretudo à manutenção de sua presença na máquina estatal, e mestre em atuar como o “fiel da balança” na frágil democracia brasileira. Como Hippolito aponta, nos dois momentos em que o PSD renunciou à sua função de equilibrar os polos houve graves crises institucionais: o suicídio de Vargas e a radicalização generalizada que culmina no golpe de 1964.

A ausência de qualquer menção ao antigo PSD no ensaio de Nobre é um índice de como sua análise falha em integrar o sistema político brasileiro à sua História e à sociedade que, pelo menos em teoria, representa. Afinal, se a persistência de formas de peemedebismo desde o Império em nosso ambiente político parece um dado inescapável — e mesmo as ditaduras de Vargas e dos generais falharam no fim das contas em suas tentativas de projetar um novo quadro —, ignorar nossa trajetória parece pavimentar o caminho para não entender a funcionalidade social do que seria o peemedebismo.

Pode-se argumentar que essa questão não é tão relevante ao objetivo do ensaio, que é descrever a formação e o funcionamento do peemedebismo atual. É uma opinião mais sobre a estrutura do texto do que sobre o mérito do ponto, mas ainda assim é difícil escapar à impressão, no livro de Nobre, de que o sistema atual se constrói a partir da redemocratização e que os defeitos atuais surgem a partir daí. Na última parte da crítica, deixarei claro o quanto de distorção ideológica acaba surgindo como resultado dessa omissão na análise — e o resultado é menos desinteressante do que parece.

Polarização: existe ou não?

O artigo de Nobre citado acima se chama, para não deixar dúvidas, “Fim da polarização”. A discussão da tese de Singer sobre o lulismo (livro que resenhei aqui) dá oportunidade à exposição do peemedebismo como real hegemonia política nacional, transformando as consecutivas disputas entre PT e PSDB em “falsas polarizações”, conforme citação do e-book acima. Entretanto, Nobre não deixa de apontar que isto se deu em um processo ao longo dos governos de ambos: primeiramente, o governo FHC estabeleceu dois polos no sistema, liderados pelos dois partidos; depois, o governo Lula cooptou parcela significativa do polo tucano, tirando-lhe o chão e inviabilizando a continuidade da polarização. A hegemonia peemedebista estaria então consolidada.

Embora posterior a “Fim da polarização”, o mais forte índice dessa hegemonização poderia ser a formação do novo PSD, o partido organizado por Gilberto Kassab como forma de aproximar-se do PT, desidratando em especial o DEM (antigo PFL e até hoje aliado do PSDB na maior parte do país). Assim, formada a maior “base aliada” da história do Congresso democrático, estaria configurada afinal a hegemonia do peemedebismo, sendo a vitória de PT ou PSDB nas urnas apenas um detalhe; não importa quem vença, o peemedebismo seria o mais forte.

Mas como interpretar as movimentações políticas em outros partidos? Nos últimos anos, aliados históricos do PT como o PSB, o PDT e o PCdoB (que chegaram a formar o não tão famoso “bloquinho”, acostumado a votar a favor do PT até mesmo em seus tempos de oposição) aproximaram-se cada vez mais do PSDB e de seus aliados, especialmente para compor bases em assembleias legislativas e obter cargos nos governos estaduais e municipais. Se por um lado isso parece confirmar a tese de Nobre, com o peemedebismo avançando inclusive sobre os partidos historicamente considerados de “esquerda”, evidencia-se a falta de avaliação ideológica dessas alianças e o quanto elas se sustentam quando as polarizações reais surgem na discussão congressual.

Para entender o quadro, dois textos de Fernando Limongi, cientista político, são essenciais. O primeiro, feito com Rafael Cortez, deixa claro como a chamada “oposição” (que frequentemente se reduz a PSDB, DEM e PPS, ignorando a quantidade de lideranças de outros partidos avessas ao governo petista, inclusive no PMDB) ainda tem força — não apenas eleitoral — e como são organizadas as alianças estaduais, justamente em torno dos dois polos que Nobre diz serem apenas “falsas polarizações”. O segundo desmonta a afirmação de que nosso sistema político seria bastante sui generis, em especial no que se refere à sua funcionalidade.

O fato é que a polarização ideológica esteve e está presente no embate entre PT e PSDB. O que se percebe, com frequência, é o fato de na última década o PSDB ter tido grandes dificuldades para encontrar um discurso oposto ao PT sem descambar para a defesa de uma agenda excessivamente conservadora (como em 2010) ou resumir-se a uma anódina afirmação sobre sua melhor capacidade gerencial (especialmente em 2006, mas também em 2010). No entanto, as diferenças entre as políticas públicas dos dois partidos são palpáveis até hoje — talvez a discussão quanto ao modelo de capitalização das distribuidoras de energia elétrica seja um bom exemplo das visões distintas em jogo. Não se pode confundir a ineficiência comunicativa de um dos polos do sistema com ausência total de alternativas no espectro político — por mais que o peemedebismo o parasite de um lado e de outro, de acordo com as conveniências.

A distorção do quadro atual no ensaio de Nobre dá ensejo à sua necessidade de propor uma alternativa — muito embora esta já exista em sua análise: o “social-desenvolvimentismo”, esmiuçado na próxima seção. No entanto, a existência real de uma polarização externa ao peemedebismo, conforme colocado acima, acaba por dificultar a própria utilidade da proposta do autor, ainda mais considerando a permeabilidade das alianças eleitorais brasileiras — as alternativas que polarizam o sistema, PT e PSDB, comungam apenas da necessidade, nem sempre percebida, de dar a volta sobre o peemedebismo, seja por hegemonizar o processo eleitoral, seja por construir uma força social capaz de superá-lo. O fato de esta ser uma polaridade menor não a tornaria menos polarizada, por assim dizer, e a denúncia de Nobre sobre o “fundo peemedebista do PSDB” parece jogar a toalha muito cedo para um partido que, segundo ele próprio, descolou-se da lógica peemedebista durante a maior parte do período democrático recente.

Por fim, toda a crítica desta parte pode ser resumida em uma pergunta, que o ensaio deixa sem resposta: como ignorar as afinidades eletivas dos políticos brasileiros sem resumir tudo a um jogo de legendas, ou seja, como substituir apropriadamente a visão do senso comum sobre a “farinha do mesmo saco”? A questão é mais relevante do que parece: as alianças provocadas por realidades locais costumam produzir contradições aparentes no quadro nacional, mas nada que não esteja presente em outras democracias ao redor do mundo. Para entender melhor o ensaio, talvez seja necessário responder a outra pergunta: qual é, verdadeiramente, o alvo de Nobre quando mira o peemedebismo?

“Social-desenvolvimentismo”: uma agenda política escondida

Ausente de outros textos de Nobre, mas bastante forte nesse ensaio, é a ideia de um novo paradigma político-econômico no Brasil, em substituição ao nacional-desenvolvimentismo, esgotado durante os anos 1970 e enfim derrubado pela crise da dívida nos 1980 e pela hiperinflação subsequente. Tratar-se-ia do “social-desenvolvimentismo”, associado aos governos tucanos e petistas (embora muito mais claramente a estes últimos). A ideia de nomear assim as atuais políticas de incentivo ao desenvolvimento combinadas aos avanços sociais (que não se resumem à transferência de renda, é bom frisar) já vem sendo tratadas por alguns autores, como Marcio Pochmann.

No ensaio, o social-desenvolvimentismo surge como o paradigma político que buscou superar a crise do nacional-desenvolvimentismo, passando a incorporar políticas sociais à estratégia do Estado de fomentar o desenvolvimento econômico do país. Qualquer semelhança com a política dos governos tucanos e petistas (embora o autor enfatize que o governo Lula foi mais fundo no estabelecimento dessa política) não é mera coincidência: Nobre identifica o social-desenvolvimentismo como um paradigma travado, que tenta se estabelecer nas poucas brechas oferecidas pelo peemedebismo. A partir daí pode-se perceber melhor o porquê de tantos circunlóquios para apresentar a tese principal desta crítica: o peemedebismo como o autor o constrói se caracteriza, especialmente, pela oposição silenciosa (por não se manifestar dessa forma eleitoralmente) às políticas progressistas de corte social-democrata dos últimos vinte anos — ou seja, uma estratégia política conservadora.

Em outras palavras, o peemedebismo de Nobre é apenas uma forma conceitual de se referir ao conservadorismo como este tem se manifestado no Brasil: patrimonialista, com presença em quase todos os partidos do espectro, muitas vezes cioso de seus privilégios (seja oriundos do Estado ou não) e firme na manutenção dos costumes e da ordem. O que é uma posição ideológico-política que pode ser questionada em diversos aspectos e defendida sob outros acaba sendo retratada de forma restrita, apenas por sua estratégia de ocupação dos espaços institucionais no período da redemocratização. Em outras palavras, o peemedebismo é o nome dado ao modus operandi do conservadorismo patrimonialista brasileiro, procurando transformar a crítica de Nobre, ideológica em essência, em uma avaliação comprometida unicamente com a normalidade democrática, tanto que sugere a seguinte “frente de ação” contra o peemedebismo:

a formação de um bloco no poder mais enxuto e aguerrido, unido em torno de um programa comum de reforma institucional claramente antipeemedebista e direcionado a uma aceleração dos aspectos distributivos do novo modelo social-desenvolvimentista.

Outro indício é o medo do autor de renovação do peemedebismo:

pode ser que as forças da inércia mais uma vez mostrem força suficiente para retardar e mesmo travar a passagem ao modelo social-desenvolvimentista.
Um desdobramento que vai nesse sentido é o da renovação do próprio peemedebismo, com o surgimento de um peemedebismo “repaginado”, “jovem guarda”.

Não se trata aqui de considerar que o conservadorismo nacional seja imune a críticas, mesmo em sua versão mais republicana. Muito pelo contrário: o verdadeiro teste para uma democracia é poder contar com a presença da maior diversidade possível de posições ideológicas, inclusive aquelas afeitas à manutenção do status quo. Discordo da maior parte destas visões, mas não se pode combatê-las negando-lhes a legitimidade por elas obtida em ambiente democrático — e o ensaio de Nobre, sem dizer, flerta com a consideração de que, em uma democracia saudável, não deveria haver espaço para essa ideologia. Toda a quimera do peemedebismo é uma forma sub-reptícia de negar a presença do conservadorismo enquanto ideologia, reduzido a uma geleia geral.

O efeito negativo dessa construção, como se pode notar, é a dificuldade em entender a verdadeira tarefa para aqueles que desejam disputar o debate político: aqueles que negarem o paradigma “social-desenvolvimentista” poderão ser considerados “peemedebismo jovem guarda” sob essa visão, mesmo que estejam propondo alterações radicais ao patrimonialismo tradicional. Se se trata da tentativa de melhorar as instituições brasileiras, é preciso compreender qual a visão de país implícita do “peemedebismo”, por mais desorganizada e aleatória que esta possa parecer à primeira vista. Caso contrário, abraçaremos qualquer “desenvolvimentismo-alguma-coisa” em nome da melhoria de um sistema político que não foi criado a partir do nada.

Não tenho a pretensão de, com esse longo texto, ter oferecido a melhor visão possível sobre o ensaio de Marcos Nobre. Tenho certeza de que muitas críticas à minha própria crítica são possíveis. Mas creio que o conjunto de características que considerei na argumentação do autor aponta para uma dificuldade maior de expressão, da qual este texto também padece: elaborar uma intervenção no debate público que consiga exprimir, após reflexão e análise, uma posição plenamente coerente em relação a um contexto no qual as mudanças têm sido intempestivas e inesperadas. Se o Brasil vive tempos confusos, nada mais justo que eu, Nobre, ou ambos, e talvez todos os outros, fiquemos um tanto confusos também.

::: Choque de democracia: Razões da revolta :::
::: Marcos Nobre :::
::: Companhia das Letras (e-book), 2013, 33 páginas :::



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